J. Pereira Tavares, Três autógrafos de Camilo, Vol. X, pp. 260-263.

TRÊS AUTÓGRAFOS

DE CAMILO

O SR. Capitão Fernão Marques Gomes teve a gentileza, que neste lugar agradecemos, de nos oferecer, para cópia, cinco cartas, dirigidas por CAMILO CASTELO BRANCO a seu pai, e dois outros autógrafos do mesmo, relativos a homenagens prestadas em 1884 e 1885 ao grande liberal de Aveiro, companheiro de José Estêvão − Manuel José Mendes Leite −, por ocasião dos 75.º e 76.º aniversários natalícios deste ilustre aveirense.

Publicamos hoje três desses preciosos autógrafos do autor de A Brasileira de Prazins, referentes a homens que em Aveiro nasceram. Os que dizem respeito a Mendes Leite, um dos quais, pelo menos, já foi dado à estampa, ficam bem nas páginas do Arquivo, desconhecidos como são da maior parte dos leitores. O terceiro é uma carta, inédita, que vem esclarecer as circunstâncias, em que outro aveirense ilustre − Manuel de Melo − visitou, em S. Miguel de Seide, o famoso autor de tantas obras-primas da literatura nacional.

EM HONRA DE MENDES LEITE

É de crer que o primeiro dos escritos que se seguem tenha sido publicado. Foi-o o segundo, em folheto intitulado − Parabéns −, que um grupo de amigos e admiradores de Mendes Leite organizou para lhe ser presente no dia 18 de Maio de 1885, em que completava setenta e seis anos.

Esse folheto abre com as palavras de CAMILO, a que se segue a colaboração de A. F. RODRIGUES CORDEIRO, ALEXANDRE DA CONCEIÇÃO, ALEXANDRE DE SEABRA, AUGUSTO RIBEIRO, BENTO CARQUEJA, CARLOS FARIA, EDUARDO COELHO, FERNANDO VILHENA, F. PALHA, JOÃO EDUARDO NOGUEIRA, J. J. RODRIGUES DE FREITAS, JOSÉ LUCIANO DE CASTRO, MENDES LEAL, ANTÓNIO ALVES MENDES DA SILVA RIBEIRO, JOAQUIM DE ARAÚJO e TOMÁS DE CARVALHO. / 261 /

I

Foi há muitos annos; mas não me lembra quando, nem onde vi Mendes Leite. Sou de um tempo antigo em que os grandes luctadores, como elle, delineavam perfis grandiosos, estaturas epicas; e a mocidade contemplava-os com respeito e inveja. Mendes Leite e José Estevão eram dois nomes laureados, n'uma alliança de sacrificios, dois filhos queridos da Liberdade, assinalados de cicatrizes na defesa da Mãe estremecida. Quando os labios do grande orador balbuciaram o ultimo gemido, devia ver inexpremivel a angustia do seu valente camarada. E parece q, desde essa hora funesta, o nome de Mendes Leite, esbatido nas brumas de um preterito quase obliterado na memoria dos seus coevos, se foi esvanecendo, retrahindo-se na saudade, no desalento de uma perda irreparavel. Mendes Leite vira cahir á volta de si os gigantes da sua ala de batalhadores. Deu por terminada a sua missão na hoste militante; mas não pôde, ainda assim, esconder a sua egregia fronte veneravel entre a geração de pygmeus q lhe succedeu. Eil-o erecto no seu pedestal de trez quartos de seculo, proferindo ainda eloquentes liçoens de coragem, de desprendimt.º de honras vans, e de apaixonado amor a Liberdade. E, á volta d'esse pedestal, entre os que se curvam respeitosos, vim eu, obscuro admirador e amigo de Mendes Leite, saudar tambem o glorioso ancião nos esplendores do seu occidente.

S. Miguel de Seide 2 de Maio de 1884.

Camillo Castello Branco

II

A justa veneração que doura e illumina a idade de Mendes Leite desculpa o paradoxo de o filicitarmos por q hoje, 18 de maio, completa setenta e seis annos. Se não fosse um respeitoso affecto, uma quase poesia sancta que nos inleva em frente d'um homem que symbolisa o cyclo pugnacissimo das liberdades patrias, crueldade seria irmos recordar-lhe que o maior numero dos seus camaradas do mais avançado piquete da guerra ao despotismo, são mortos. Que jubilo pode sentir Mendes Leite, n'este seu anniversario, se o felicitamos por q ainda vive com os olhos da alma fitos na procissão de fantasmas queridos que o precederam no abysmo... do esquecimento! Ah! O terrivel nunca mais! Que melancolia não será a sua lendo trez paginas que lhe consagrou, nos Parabens de 1884, um amigo de 40 annos, Alfonso de Castro! E Affonso / 262 / de Castro, que tambem era meu amigo de 40 annos, não volverá a saudar o bravo de tantas batalhas civilisadoras. Morreu.

Ahi está mais uma recordação pungente que as nossas congratulações vão levar a Mendes Leite. D'aquelles que o saudaram aos setenta e sinco annos já cahiu um dos que apparentavam mais vida. D'estes que hoje o saudam qual será o q, no anno proximo, lhe envie a saudação d'alem-mundo n'um dolorido rebate de saudade!

Estes livrinhos dedicados á magestosa ancianidade de Mendes Leite não deviam chamar-se Parabens; antes lhes chamassemos umas achêgas q vamos carreando para a immortalidade do seu nome na gratidão dos vindouros. A posterid.e, quando ler estas paginas de tão variada collaboração, dirá: Este homem foi muito querido e respeitado por tantos que o viram sem o prisma insidioso da politica. Parece que elle, se a teve robusta e indomavel, foi exclusivamt.e a politica do sacrificio pessoal ao bem da collectivid.e Egoismo, se o teve, foi o da primasia na honra inflexivel. E, com tudo, depois de haver arrostado bravamt.e os adversarios nas pugnas do braço e do espirito, nas batalhas e nos pensamentos, morreu sem inimigos.

S. Miguel de Seide.

Camillo Castello Branco


MANUEL DE MELO

Este aveirense mereceu de CAMILO um esboço de perfil literário, que com os de outros (Guilhermino de Barros, Alves Mendes, Carlos Braga, José Augusto Vieira, Augusto Gama e Narciso de Lacerda) publicou na Boémia do Espírito (págs. 216-219 da 2.ª ed., 1903).

Manuel de Melo nasceu em Aveiro no dia 7 de Abril de 1834. Tendo emigrado para o Brasil, exerceu no Rio de Janeiro as funções de guarda-livros do «Banco Rural e Hipotecário»; mas a sua irresistível tendência para os estudos literários levou-o a estudar as principais línguas europeias: e a afirmar-se filólogo de raro merecimento. A biblioteca particular de Manuel de Melo, que depois da sua morte passou para o Gabinete Português de Leitura, foi assiduamente frequentada pelo seu amigo Machado de Assis, grande romancista e poeta brasileiro, que o honrou dedicando-lhe uma das mais belas composições do livro de poesias intitulado Phalenas (1870). A atestar a profunda erudição filológica que possuía, deixou Manuel de Melo dois volumes: «Da Glótica em Portugal» (1873-1889) e «Notas Lexicológicas» (1880).  / 263 /

CAMILO teve dele conhecimento por informação de José Feliciano de Castilho, que a seu respeito lhe escreveu do Rio de Janeiro. Diz-nos isso o romancista no esboço acima referido, onde se lê também o seguinte: − «Há quatro anos, encontrei no Bom Jesus do Monte Eduardo de Lemos − tão querido da colónia brasileira... Pedi-lhe notícias de Manuel de Melo. Descreveu-mo como quem o admirava e adorava. Era guarda-livros, tinha uma livraria selecta, conhecia todas as línguas da Europa, conversava com os seus escritores mais distintos; a sua casa, pequena e artisticamente alfaiada, era uma delícia, em que ele gozava, no estudo, as horas feriadas do emprego comercial, que lhe dava sobejo estipêndio para as regalias do espírito».

Miguel de Melo, julgado por CAMILO como «um dos primeiros homens doutos que escrevia em português sem mácula», faleceu em Milão no dia 4 de Fevereiro de 1884. Sabendo quanto o nosso escritor o estimava, deu-se Marques Gomes pressa em o informar do acontecimento. Em resposta, escreveu CAMILO a carta que a seguir se reproduz, na qual se refere à visita que Manuel de Melo lhe fizera em Junho de 1883, e a que ele alude no esboço. Eis a carta:

             Ill.mo Ex.mo Sr.

Quando o snr. Manoel de Mello honrou esta casa, ao despedir-se, dei-lhe um abraço, disendo: «Não nos veremos mais» − É natural − respondeu elle. imaginava eu então q o primeiro a seguir a eterna viagem, seria eu. Questão de dias. Deu-me V. E.ª uma noticia q me impressionou tristissimamt.e Ha dous mezes q o Eduardo de Lemos me disia no Bom Jesus que Mel de Mello era duplamte feliz, pelo mtº q era querido no Rio, e pela doce e serena existencia q vivia entre os seus livros e as suas Suaves obrigaçoens. E vem a garra da morte empolgar ao acaso o homem novo, feliz, util para deixar o desgraçado ou o infame funesto, um na sua esterqueira, e o outro na plena e vigorosa satisfação das suas torpezas. Nada de philosophias. Fechemos os olhos, e esperemos o pontapé do Accaso.

De V. Ex.ª

Adm.or e Cr.º obgdo

C de V. Ex.
7/2/84

Camillo Castello Branco

JOSÉ PEREIRA TAVARES

NOTA - Na grafia original das cartas, que mantivemos nesta reconversão, o «q» apresenta um til por cima, impossível de reproduzir.

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