A
REORGANIZAÇÃO das armas da cidade de Aveiro, como consequência da
doutrina preconizada na circular da Direcção Geral da Administração
Política e Civil de 14 de Abril de 1930, foi sancionada oficialmente já
em 1938.
Não viria agora, tantos anos
já passados, comentar o relatório(1)
e parecer apresentado na Associação dos Arqueólogos Portugueses, em sua
sessão de 20 de Janeiro de 1926 e elaborado pelo sr. Afonso de Dornelas,
se não tivesse anotado e ordenado algumas referências e notícias
heráldicas, capazes de poderem contribuir para esclarecer o grande
problema dessas armas de domínio, que, apesar de tudo, ficou sem solução
no citado trabalho apresentado à Associação dos Arqueólogos Portugueses.
Esse problema, que seria
interessante procurar esclarecer, não só para haver uma ideia perfeita
acerca do principal símbolo heráldico das armas da cidade de Aveiro, mas
também para a possível correcção das armas cuja constituição ficou
estabelecida na data apontada, trata da origem da águia que caracteriza
o selo municipal aveirense.
Os elementos que vou
aproveitar, lealmente o confesso desde já, não são daqueles que resolvem
o assunto só com a sua presença.
No entanto, embora
deficientes, alguma coisa nos dizem de positivo, sendo ainda, até agora,
os únicos que podem ser aproveitados para subsidiar a hipótese que vou
formular.
/ 6 /
I
Pondo de parte uma variante
das armas da cidade, apresentada por VILHENA BARBOSA,
em que as armas em questão foram substituídas pelas armas do apelido
Cirne(2),
fantasia ou lapso que não tem qualquer valor histórico-heráldico, o mais
velho selo municipal de Aveiro é constituído por uma águia.
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I − Armas de Luís Álvares de
Aveio (ou Aveiro) segundo a Armaria Portuguesa. |
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Ou só, ou
acompanhando as quinas e a esfera armilar(3),
numa confusão, há muito explicada, com a iluminura da
carta de foral; ou ladeada do sol e da lua
(4),
como refere apenas VILHENA BARBOSA; coroada ou não, o que é certo é que
o símbolo principal das armas de Aveiro é uma águia sobre um mar. Isto,
mesmo, é o que informou a Câmara Municipal / 7 / daquela cidade, num
ofício dirigido ao Presidente do Congresso da República, a propósito de
um incidente levantado por naquela Câmara Alta terem confundido, numa
pintura mural, as armas de Aveiro com as da família Cirne.
VILHENA BARBOSA segue a
origem romana da águia, o que, aliás, é justificação sempre feita para
resolver assuntos destes.
II
Antes, porém, de expor os
meus comentários, não quero deixar de dizer que, já muito antes de mim,
um nome de grande relevo na historiografia nobiliárquica nacional,
BRAAMCAMP FREIRE, fez reparos que embora sem serem directos às armas de
Aveiro, com elas se vão relacionar, como adiante
mostrarei.
Ao tratar, na sua
indispensável Armaria Portuguesa(5),
do apelido Aveio(6),
dá-lhe estas armas que encontra iluminadas no Livro
do Armeiro Mór
(7):
De prata sete faixas dentadas de
azul; franco cantão de vermelho, com águia bifronte de prata, coroada de
oiro, partido de azul com uma cruz potenteia de oiro, contornada de
vinte cruzetas em grupo de cinco, sendo as do meio inclusas numa
memória, tudo de oiro.
Sob o apelido (patronímico)
Álvares, descreve as seguintes armas, baseado
no Espelho da Nobreza(8):
Cortado: o 1 de vermelho, águia de
duas cabeças de prata, coroadas de oiro partido de azul, cruz de oiro
cantonada de quatro memórias do mesmo; o II de azul, três faixas ondadas
de prata. Timbre: uma águia de prata coroada do mesmo.
Ao tratar do apelido
(patronímico) Alves, remete para Álvares.
III
Vejamos agora o que sobre as
armas apresentadas, e outras, nos diz SANTOS FERREIRA
(9),
outro autor heráldico de justa nomeada.
/ 8 /
Segundo este autor, temos
por armas dos Álvares (de Aveiro), as seguintes:
Cortado: o I de vermelho, com uma
águia de prata, picada de negro, partido de azul com uma cruz solta de
oiro, de pé recurvado a uma e outra parte; o II de prata com quatro
faixas requifadas de azul.
Para os Alves,
escreve:
Cortado: o I de vermelho, com uma
águia de prata de duas cabeças coroadas de oiro, partido de azul com uma
cruz potenteia cantonada de quatro aneletes de oiro; o II de azul com
três bandas ondadas de prata.
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II − Armas dos Álvares,
segundo a Armaria Portuguesa. |
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E tem ainda:
Auço (de Luís Álvares)(10)
De vermelho, semeado de aneletes e
cruzetas de oiro, com contra-chefe ondado de prata, aguado de azul, e
uma águia de duas cabeças, estendida de negro, armada e coroada de oiro,
brocante sobre o semeado.
/ 9 /
Na Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira(11)
faz-se referência às armas de Luís Álvares de Aveio ou Aveiro,
supondo-se que este indivíduo teve armas-novas anteriores a 15 de
Agosto de 1509, isto é, anteriores à conclusão do Livro do Armeiro
Mór. Mas qual a base para afirmar que eram armas-novas? No entanto
chamo a atenção para o facto delas serem semelhantes às que no
Espelho da Nobreza, de CRASBEECK, aparecem como sendo as dos
Álvares.
IV
Até aqui estive apenas a
enumerar diversos elementos que vou agora tentar pôr em ordem, de modo
que, se não nos deixam concluir nada de positivo, podem ao menos
deixar-nos supor alguma coisa de novo e de mais aceitável acerca deste
problema de heráldica de domínio, do que aquilo que foi oficializado em
1938.
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III − Armas dos Álvares (de
Aveiro), segundo o Armorial Português. |
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/ 10 /
Tornarei a retroceder à
Armaria Portuguesa, de BRAAMCAMP FREIRE, e transcrevo uma nota que, a págs. 45 ali se lê:
«− A. M. Fls. 134-V. com a designação de
«Luiz Álvares
d'Aveio». Na última das cartas de Lopo de Almeida a D. Afonso V,
datada de 26 de Maio de 1452, fala ele por duas vezes no marido de
Sancha de Bairros, ao qual chama primeiro Mosé Frances, e logo
abaixo Mossem Daveiro. Diz que era um bom cavaleiro, o qual crê
será feito então Vice-Rei de Sardenha; e que em Nápoles, lhe havia
ele dito, e era homem de verdade, que Afonso V de Aragão e Nápoles
havia feito, com a estada do Imperador Frederico III e da Imperatriz
Leonor, em Nápoles, despezas espantosas, algumas das quais enumera
(Provas da H. G. da G. R. I, 644).
Este Mossem Daveiro terá alguma
relação com Luiz Álvares Daveiro?
As armas que na A. M. se lhe pintaram
não são, seguramente
portuguesas.»
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IV − Armas dos Álves, segundo o Armorial Português. |
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A hipótese que pode, senão
solucionar o caso, ao menos
colocá-lo, talvez, no caminho das possibilidades, é de que as
armas de Aveiro teriam tido origem nas armas de Mossem
Daveiro, o misterioso marido daquela importante dama que
sabemos chamar-se D. Sancha de Bairros.
Apenas pelo seu tratamento de
Mossem podemos admitir que fosse de origem catalã, visto os nobres deste
país
/
11 /
usarem tal designativo. Podia também tratar-se de algum português
que ali tivesse ganho suas cartas de nobreza.
De qualquer dos modos o que se sabe de positivo é que
em Aveiro teria casa ou grandes haveres, o que lhe traria
influência indiscutível, tanto que de Aveiro o apelidavam
e mesmo talvez assim se chamasse. Que foi pessoa de elevada gerarquia,
basta o facto de se falar nele para Vice-Rei da Sardenha para não termos
dúvidas sobre isso.
Agora outro problema: Luís Álvares de Aveiro, citado
na Livro do Armeiro Mór, a que se dão armas, tanto no
apelido Aveio (= Aveiro?) e sua redução a Alves como
ainda na variante Auço, seria descendente de Mossem de
Aveiro?
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V − Armas dos Áuços,
(de Luís Álvares) segundo o Armorial Português. |
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Na região de Aveiro há muitas famílias denominadas com
o patronímico de
Álvares, algumas de ascendência histórica, mas que não sabem, ou não podem, entroncar, em Luís
Álvares.
Embora BRAAMCAMP não tenha encontrado cartas de
brasão
com as armas de Álvares (de Luís Álvares de Aveiro) o que
é certo é que elas se encontram abertas em pedras de armas.
Na Museu de Machado de Castro existe uma pedra
armoriada
/
12 / referente ao Dr. Matias Álvares Mourão(12), e bem assim se encontram na muito conhecida Casa de Mateus,
junto a Vila-Real.
No entanto, a ligação genealógica que neste caso podia
resolver o assunto, escapa-se-nos.
Com o apelido Aveiro, encontra-se enterrado numa
capela, da igreja de Santiago, da cidade de Coimbra, um
Afonso Domingos de Aveiro. Desta capela foi administrador, em 1514, seu terceiro
neto Pero de Alpoim. Este Afonso
Domingos de Aveiro seria parente de Mossem de Aveiro ou de Luís Álvares de Aveiro?
O exame das armas apontadas leva-me a admitir a
possibilidade de relação entre estes elementos registados aqui.
O que pensar desse exame?
1.º As armas apresentadas para
Álvares, que deve ser
a forma inicial deste assunto heráldico, e base das
variantes que se encontram em Alves, Aveio,
Aveiro e Auço, são, indiscutivelmente, estrangeiras. Já o articulista da
Enciclopédia Portuguesa e Brasileira reconhece e admite essa
origem;
2.º Elementos que se destacam destas armas:
a) a águia
b) a cruz
c) as faixas
a) A águia: bifronte e coroada era a águia da casa de
Áustria. Assim era a águia das armas de Carlos V.
Em diversas concessões de mercês de armas a portugueses, como em Pero Rodrigues do Amaral e
António Rodrigues, por exemplo, ela se encontra,
além de ser possível achá-la nas armas da família
portuguesa do apelido de Nápoles, embora a águia
bifronte se tenha transformado em duas águias. Nas armas do reino das Duas Sicílias, lá aparecem também duas águias;
b) A cruz, com pé
recurvado, chã, potenteia, só ou
acantonada de outros atributos, sugere-nos a cruz
das armas de Jerusalém, que também se vê nas
maneiras citadas, figurando, até, no nosso brasonário, na composição das armas do apelido Moniz de Lusignan;
/ 13 /
c) As faixas, ou bandas, requifadas ou ondadas,
eram,
possivelmente, a parte mais identificativa das armas, ou alusão ao facto basilar justificador da
mercê nobiliárquica.
Representariam estas faixas ou bandas, o mar,
com seu característico ondulado? Essa referência
e o facto da sua ligação com Aveiro, porto de
mar, serão a síntese simbólica que nos poderia interessar? Seriam,
ainda, porventura, as armas da família de Mossem de Aveiro, e não
estaremos, assim, senão em frente de um acrescentamento?
3.º A constituição das armas que eu chamo iniciais (Álvares, de Aveiro), com um franco-cantão,
é
absolutamente estrangeira.
Veja-se agora a transição deste arranjo heráldico de família, para o
arranjo heráldico de domínio, respeitante a Aveiro:
1) Reparando nas diversas armas antigas atribuídas por
vários autores e documentos à cidade de Aveiro, pondo de parte aquela
modalidade constituída pelas armas dos Cirnes, nota-se, sem esforço, que
são variantes das mesmas armas atrás estudadas.
Lá estão as mesmas figuras e peças: a
águia, coroada ou não, sozinha ou acompanhada, sobre ondas ou plena no
campo.
2) A variante das armas dos
Álvares, que aparecem
sob a rubrica do apelido Auço, é, também, atribuída como armas de Aveiro.
3) Embora seja do nosso conhecimento o aparecimento de peças e figuras e, até, de águias, acompanhadas em heráldica de
domínio por luas e estrelas, deve notar-se a semelhança que existe entre
essas armas, e a variante registada no apelido Auço.
Repare-se: sob o mar em ponta, uma águia, sendo bifronte nas armas de
apelido Auço; nestas, o campo do escudo é semeado de cruzetas e
memórias. Ora, de uma cruzeta surgir uma estrela, ou um sol radiante;
ou de uma memória aparecer uma lua ou um crescente, é facílimo de
dar-se.
Note-se, no entanto, que admito perfeitamente, neste particular, a
influência da tradição. popular que tanto usa do sol e da lua nas suas
mais variadas manifestações.
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Em resumo:
1) Há possibilidade de Luís Álvares de Aveiro ser
descendente de Mossem de Aveiro, que esteve
ao serviço do rei de Nápoles e das Duas Sicílias, ou de Aragão;
2) As armas de Luís Álvares de Aveiro são de
origem estrangeira, possivelmente italianas;
3) As armas de Aveiro,
antigas, confundem-se absolutamente com as de Luís Álvares e suas variantes, se é que não são as
mesmas, embora nos escape a causa desse facto.
O problema que se encontra, ao ler o relatório referido no início
deste trabalho, continua em aberto, infelizmente.
No entanto, está agora posto com outras bases, que podem
dar maior possibilidade de solução aos investigadores que se
resolvam a tentá-lo.
ARMANDO DE MATOS |