FALAR no ducado de Aveiro é evocar alguns dos períodos mais célebres da história de
Portugal, períodos de poderio, fraqueza ou tragédia. A estes está ligada a Casa
de Aveiro, que teve origem num grave desastre pessoal
e acabou com uma das mais emocionantes tragédias políticas
da Nação portuguesa.
Governava El-Rei D. João OO, o monarca forte que orientou os destinos de
Portugal para dias de imorredoira glória. Eis
que subitamente um profundo desgosto o feriu na sua dupla qualidade de
Rei e de pai: o seu único filho legítimo, o príncipe
D. Afonso, falecia a 13 de Julho de 1491, por ter caído desastrosamente do cavalo que montava.
Como pai chorou com mágoa a perda do filho querido;
como Rei inquietou-se profundamente com a falta de sucessor
no trono, pois D. Afonso havia falecido sem descendência.
Mas D. João II tinha um filho bastardo, havido de D. Ana de
Mendonça, chamado D. Jorge de Lencastre, nascido em Abrantes
aos doze dias de Agosto de 1481. Então passou o Rei a empregar todos os esforços para que o bastardo que muito amava
fosse declarado herdeiro do trono. Não conseguiu, porém, realizar os
seus intentos.
Na idade de três meses fora D. Jorge mandado pelo pai
para Aveiro, a fim de ser criado e educado aqui sob as vistas
da princesa D. Joana sua tia, a qual vivia em clausura no mosteiro de Jesus em Aveiro.
D. Jorge esteve nesta vila até o falecimento de D. Joana, em 12 de Maio
de 1490. D. João II
legitimou D. Jorge e engrandeceu-o tanto quanto pôde, tendo-o
feito duque de Coimbra, mestre de Avis, e de Santiago, e no
seu testamento de 29 de Setembro de 1495 fez-lhe uma larga doação de
senhorios de diferentes terras e povoações, entre as
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quais a «villa de Aveiro com suas lezirias e ilhas de dentro
da foz».
Esta importante doação foi posteriormente confirmada por
D. Manuel l, em 27 de Maio de 1500, e acrescida ainda, por
alvará do mesmo dia, com a vila de Torres Novas.
D. Jorge, duque de Coimbra e senhor de Aveiro, foi o
tronco donde saíram os duques de Aveiro e que deu origem à
Casa do mesmo nome. Contudo D. Jorge não entrou na posse imediata de
todos os senhorios a ele doados, porque alguns
deles, estando ainda em poder de outros donatários, só por
morte destes entrariam na casa de D. Jorge. Este faleceu em 22 de Julho
de 1550.
O primeiro duque de Aveiro foi D. João de Lencastre (1501-1571), filho de D. Jorge. Não se sabe ao certo a data em que
lhe foi dado o título. Diz D. ANTÓNIO CAETANO DE SOUSA nas Memórias históricas e genealógicas dos grandes de Portugal
que o título lhe foi concedido por D. João III em 1 de Janeiro
de 1547.
Numa carta de D. Sebastião, de 30 de Agosto de 1557,
assinada pela Rainha regente, lê-se que D. João III tinha feito
mercê do título de Duque de Aveiro a D. João de Lencastre
ainda em vida de D. Jorge, seu pai, por uma carta missiva a este enviada, e que mais tarde, quando D. João casou com
D. Juliana de Lara e Meneses, filha do terceiro marquês de Vila
Real, lhe dera o título de duque «de juro para seus herdeiros
e sucessores de sua Casa» e que o herdeiro da Casa, enquanto
fosse vivo o duque, se chamasse marquês de Torres Novas.
Ora este casamento efectuou-se em 3 de Fevereiro de 1547
em Almeirim, de modo que esta data aproxima-se muito da
indicada por CAETANO DE SOUSA.
Na carta a que nos estamos referindo e que não passou pela Chancelaria,
confirma-se o título de duque de Aveiro a
D. João de Lencastre e seus herdeiros que dele descenderem,
e igualmente o de marquês de Torres Novas ao filho varão,
lídimo herdeiro. Podemos considerar, portanto, como data definitiva da formação do ducado de Aveiro o dia 30 de Agosto
de 1547.
O segundo duque de Aveiro foi D. Jorge de Lencastre,
filho do primeiro duque de Aveiro. Foi um valoroso militar;
acompanhou El-Rei D. Sebastião à África em 1574 e aqui voltou
na desastrosa expedição de 1578. Tomou parte na batalha de
Alcácer-Quibir, comandando um corpo de cavalaria organizado
à sua custa, e lá perdeu a vida heroicamente quando carregava
sobre o inimigo para libertar a artilharia que este já quase tinha
tomado.
Havia casado com D. Madalena Giron, filha do quarto conde
de Ureña e irmã do primeiro duque de Ossuna, fidalgos espanhóis. Do casamento nasceu apenas D. Juliana, depois terceira
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duquesa de Aveiro, que entrou em litígio com seu tio D. Álvaro de
Lencastre por causa do ducado e Casa de Aveiro.
Filipe II resolveu a questão dando o título a D.
Álvaro, com a condição
de este casar com D. Juliana, o que de facto sucedeu, sendo portanto D.
Álvaro o quarto duque de Aveiro, como ele mesmo se intitulou (Dominus
Alvarus quartus dux de Aveiro ).
O filho primogénito, também chamado D. Jorge, casou com uma dama
espanhola, D. Ana Manrique de Cardenas e Lara, e faleceu depois do pai,
mas ainda em vida da mãe, tendo deixado como herdeiro o seu filho D.
Raimundo, que veio a ser o quinto duque de Aveiro, tendo ganho a demanda
em que seu tio, o marquês de Porto Seguro, lhe disputava o título e
herança da Casa de Aveiro.
Depois da morte do Rei D. João IV e na regência da Rainha D. Luísa de
Gusmão, D. Raimundo partiu para Madrid a oferecer os seus serviços ao
Rei de Espanha, que lhe concedeu o título de duque de Ciudad-Real. Por
esse motivo foi condenado em Portugal a ser executado em estátua e à
confiscação dos seus bens. Sua mãe e irmã foram expulsas de Portugal e
juntaram-se com D. Raimundo.
D. Pedro de Lencastre, tio de D. Raimundo, propôs-se herdeiro do ducado
e Casa e ganhou o pleito em 1668, por sentença da Relação de Lisboa,
pelo que foi o sexto duque de Aveiro. Tinha seguido a carreira
eclesiástica, e foi bispo da Guarda, de Braga, Presidente da Mesa do
Desembargo do Paço e Inquisidor-mor do reino.
Feita a paz entre Portugal e Espanha em 1668, a irmã de
D. Raimundo, D. Maria Guadalupe, moveu uma acção contra D. Pedro a
disputar-lhe o ducado, mas tendo ele falecido entretanto, foi dada a
sentença a favor de D. Maria, que por isso foi
a sétima duquesa, com a condição de fixar residência definitiva
em Portugal e prestar vassalagem ao monarca português.
D. Maria Guadalupe nascera em Azeitão em 1630 e casara
em Espanha em 1665 com o fidalgo castelhano D. Manuel
Ponce de Leon, sexto duque de Arcos. Ora nem um nem outro
eram primogénitos. Por isso no contrato de casamento, feito
em Madrid, a 17 de Agosto de 1665, estipularam que, se herdassem as
casas de Aveiro e de Arcos, elas se conservariam
separadas e se dividiriam logo que tivessem dois filhos, escolhendo o mais velho a que quisesse. Tendo enviuvado, voltou
para Portugal com seu segundo filho D. Gabriel de Lencastre
Ponce de Leão(1) a quem deu o ducado e casa de Aveiro,
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doação que o filho mais velho confirmou depois da morte da mãe.
Foi, pois, oitavo duque de Aveiro D. Gabriel que nasceu a 9 de Agosto de
1667 e faleceu a 22 de Junho de 1745, não tendo contudo deixado de
sustentar demanda com alguns fidalgos que lhe disputavam o ducado e a
Casa. Venceu a questão em 1729, e prestou vassalagem a D. João V, em 2
de Maio de 1732. D. Gabriel morreu solteiro e jaz em Aveiro, na igreja
do convento de Jesus, em vistoso mausoléu.
A sucessão no ducado motivou nova demanda entre D. António de Lencastre
Ponce de Leon e D. José de Mascarenhas, quinto marquês de Gouveia.
Venceu este o pleito, pelo que foi o nono duque de Aveiro. Foi também o
último.
Ia extinguir-se de uma vez para sempre tão nobilíssimo
ducado. A desgraça entrara em casa de D. José de Mascarenhas: um seu
antepassado fora condenado à morte em estátua, por traição à Pátria; e
agora, aquele, ia sê-lo também, mas a morte real e cruel, acusado
igualmente de réu de alta traição ao Rei e à Pátria.
Eram os duques de Aveiro os mais poderosos fidalgos do reino; só
eles e
os duques de Bragança tinham direito a tratamento de Excelência. A alta fidalguia portuguesa e os jesuítas
não viam com bons olhos a acção governativa do enérgico secretário de
Estado, Sebastião José de Carvalho e Melo, mais tarde marquês de
Pombal, que lhes tinha cerceado muitas das suas regalias, colocando
aquela e estes numa subalternidade a que de bom grado não queriam
sujeitar-se. Por isso, o ministro e o soberano eram envolvidos na má
vontade de fidalgos e jesuítas. Irritava mais ainda a fidalguia o facto
de Sebastião de Carvalho ser de mediana nobreza.
O duque de Aveiro queixava-se também em especial de que o Rei não
autorizava o casamento de seu filho D. Martinho com uma irmã do duque de
Cadaval, nem lhe deixava usufruir certas comendas que os duques seus
antepassados haviam possuído, embora não pertencessem à Casa de Aveiro. Os
Távoras também alegavam certos agravos da parte do Rei.
Assim se formou a conjura conhecida na História por conspiração dos
Távoras. E na noite de 3 de Setembro de 1758, pelas onze horas, quando
el-rei D. José recolhia ao paço de
Belém, vindo da Quinta do meio, um grupo de indivíduos a cavalo disparou
bacamartes contra a sege real, ferindo gravemente o rei. Tinha havido
evidentemente o propósito de o assassinar.
A investigação e o Tribunal deram como principais culpados do regicídio
o duque de Aveiro − chefe da conspiração − os marqueses de Távora e
alguns criados. O tribunal, em 12 de Janeiro
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245 / de 1759, condenou-os à morte, em condições extraordinariamente dolorosas, e à confiscação dos seus bens.
Em particular, o duque de Aveiro foi condenado a ser
posto num cadafalso alto, para o castigo ser visto de todo o
povo, e aí «rompido» vivo e as oito canas dos braços e pernas
partidas; depois exposto numa roda, e queimado vivo, e as
suas cinzas deitadas ao mar; foram confiscados os seus bens;
derribados ou picados os seus brasões, a sua habitação arrasada
e o terreno salgado.(2) Assim se fez, e, no local do palácio do
duque em Belém, foi colocada uma memória de pedra de cinco
metros de altura, ainda hoje existente.
A duquesa de Aveiro, a seguir à prisão do marido, foi
internada no convento do Rato, onde. morreu em 1761 na
maior mIsérIa.
O filho, marquês de Gouveia, nasceu em 26 de Novembro
de 1740 e morreu com 63 anos, em 30 de Dezembro de 1805.
Foi também preso a seguir ao regicídio, e só em 1777,
após a morte de D. José, pôde sair das prisões da Junqueira,
vivendo depois das pensões que os marqueses de Alorna e da
Fronteira lhe davam, até que por fim o Príncipe Regente D. João lhe deu
uma mesada de cem mil reis.
Assim acabou numa tremenda tragédia a poderosa família
dos Aveiros, em cujas veias circulava sangue real, e cujo brasão
eram as armas nacionais.
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Aveiro possui poucas
recordações dos seus antigos duques.
A principal é o edifício do extinto convento de S. João Evangelista, de freiras carmelitas, hoje mutilado.
Este convento foi fundado pelo duque D. Raimundo no
palácio que herdara de D. Beatriz de Lara e Meneses, filha
de D. Manuel de Meneses, quinto marquês e primeiro duque
de Vila Real, e de D. Ana da Silva, e casada com D. Pedro de Médicis,
filho de Cosme de Médicis, grão-duque de Florença
e príncipe da Toscana.
Tendo vivido em Espanha e enviuvado em
1604, ela voltou
para Portugal, recolhendo-se no mosteiro de Jesus em Aveiro,
e mandando então construir o referido palácio cerca de 1614, que
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que passou a ocupar definitivamente em 1625. Em 1647, D. Beatriz deixou
em testamento os seus bens a seu sobrinho o duque D. Raimundo, com
vários encargos, entre os quais o de fundar um convento no palácio que
ela mandara fazer em Aveiro.
Tendo D. Beatriz falecido no ano seguinte, aos 4 dias de Junho, D.
Raimundo passou a habitar no palácio, até que em 1657 conseguiu licença
régia para fundar o convento, que veio a ser construído em 1659, e
habitado por freiras carmelitas, e extinto em 1879, pela morte da última
religiosa professa.
FRANCISCO FERREIRA NEVES |