O conhecido trajo de Viana, uma das maiores unidades da
indumentária regional portuguesa, não abandonado ainda em
/
143 /
absoluto, conquanto banido do uso corrente(10),
inclui também o antigo colete, bordado com decorações comuns às artes populares
portuguesas. Na nossa Província, que particularmente aqui procuramos
estudar, desenhou o colete o pintar MIGUEL ÂNGELO LUPI no quadro «Lavadeiras no Mondego» (reproduzida no
Almanaque
ilustrado do Ocidente para 1884 e na Revista Ilustrada de 30 de
Setembro de 1890), com ele alcançando ser premiado na Exposição de
Paris de 1878, onde o vendeu par 4.000 francos; pintou também o colete o aguarelista
ALFREDO ROQUE GAMEIRO, que muito se prendeu ao pitoresca dos trajos desta Província; deste último artista reproduzimos
já dois desenhos e uma aguarela (figs. 46, 70, e 28) e daremos agora a
sua composição Lavadeiras no Rio Mondego em que toma por tema os trajos populares femininos de Coimbra (fig. 80).
Ao grande pintar de costumes que foi
FRANCISCO JOSÉ DE RESENDE não passou despercebido o elevado valor estético
do
colete, e perfeitamente o fixou nos quadros reproduzidos pela nossa
figura inicial e pela n.º 9, de mulheres da Murtosa, de magnífico
pormenor e vivo colorido; nada ali falta; perante esses esplêndidos figurinos, toda a descrição se torna desnecessária; lamentamos apenas
não podermos reproduzir também a delicada
policromia dos originais.
O próprio povo, na sua especial filosofia
− na poesia das quadras para
ele compostas e logo assimiladas, quando exprimem e consubstanciam o seu
pensamento − consagrou também o colete como peça de vestuário delicada, porque protege
o coração;
cantava ele antigamente, e repete hoje ainda, muito embora tivesse
desaparecido o motivo que o inspirou:
Toma lá colchetes d'oiro,
Aperta o teu coletinho;
Coração que é de nós
dois
Deve andar conchegadinho...
Em Cantanhede procurou-se restaurar recentemente
o trajo local de 1870,
para a rancho regional; aproveitou-se o elegantíssimo colete, um tanto
estilizado; mesmo assim alterado, empresta às raparigas que o envergam
um encanto e uma
graça extraordinários.
Da cintura para baixa, o
vestuário feminino popular de toda a
Beira Litoral acumulava grande número de peças; um ou dois saiotes
grossos, de flanela ou de baeta, duas saias de baixo, pelo menos (a
segunda das quais, sobre a polheira, era de mais fina bretanha e
dispunha de larga folha bordada e de entremeios), e, como peça última, a
saia de cima, que, não raro,
aparecia também em duplicado; algibeira exterior ou por baixo
/ 144 /
da saia de cima, avental, e, para determinados serviços (lavoura,
transportes, caminhadas) a faixa de lã que repuxava tudo para a cinta,
onde tufava, libertando mais os movimentos.
|
Fig. 81 −
CAMPONESA DOS ARREDORES DE COIMBRA
vendendo flores no mercado da cidade.
Actualidade. (1940?) |
A saia de cima era fartamente rodada, vulgarizando-se muito as chamadas
de sete panos. Tudo isso engrossava a figura, como as nossas estampas
permitem avaliar, e recatava absolutamente os contornos do corpo.
Esse número de saias, bem como o seu farto rodado, que
tanto compunham a silhueta feminina e a valorizavam esteticamente,
tem-se aligeirado muito, sobretudo nas cidades e centros mais
desenvolvidos de população, onde a gente moça usa apenas uma saia de
baixo e uma de cima, aproximando-se, como
/
143 /
sempre, da moda senhoril, que chegou já recentemente a banir
a própria camisa, para adelgaçar a linha, fazendo assentar a
cinta-espartilho sobre a combinação, de tecidos muito finos; é a
moderna preocupação de reduzir o volume aparente do corpo.
A camponesa da Beira Litoral resiste ainda a tais aligeiramentos e, mais recatada, continua a usar saia rodada, vestindo,
por baixo, saia e saiote; condescende em diminuir o comprimento dela, como, por exemplo, a nossa figura 81 documenta
para a região de Coimbra, mas conserva-a com a roda e o
pregueado antigos; a Beira Litoral, aliás, já no segundo quartel
do século XIX usava saia pela meia perna, como das litografias
que temos reproduzido se verifica.
Nos arredores de Coimbra,
quase sempre também, ainda
hoje a saia se enfeita, em baixo, com duas ou três idas de fita
de veludo ou de seda, dispostas paralelamente (fig. 81); é esta uma
curiosa sobrevivência dum pormenor decorativo muito
antigo na Província, que à beira mesmo de Coimbra, em contacto imediato com a cidade, resiste tenazmente ao figurino
constantemente renovado; são ainda algumas raparigas das
fábricas, que passam diariamente oito horas, e mais, na cidade,
as hortaliceiras do mercado, as leiteiras, que não abandonam a
saia empregada (ou plissada, como hoje elas dizem) de quatro
panos, isto é, feita com quatro larguras do tecido (que mede,
em regra, 70 a 75 centímetros), ornamentada, em baixo, com
três idas de fita, como usavam as suas avós (figs. 32 e 33).
Havia saias de 15 panos (!) do Norte ao Sul da Província, em
Ovar, na Gafanha, em Coimbra e em Leiria.
Há quarenta anos, há trinta, mesmo, era assim empregada
e ornamentada a saia da tricana de Coimbra, cujo trajo de então
a fig. 82 reconstitui expressamente, e o manequim da fig. 2;
de mais recuada época já as nossas estampas 57 e 62 disseram
alguma coisa.
Este nome de tricana de Coimbra, sem significado social
hoje em dia, mas conservado pela força da tradição e pela
auréola de lenda literariamente entretecida à volta de tudo o
que diz respeito a Coimbra, terra onde a mocidade de Portugal
passa a melhor época da sua vida e à qual, pela saudade de si
própria, para sempre fica ligada, provém, afinal, duma peça
de vestuário.
«TRICANA», esclarece o Vocabulário de BLUTEAU já acima
citado, «Em Coimbra he manteo de mulher»; a contraprová-Io,
estão, por exemplo, as relações do vestuário com que de 1724
a 1727 várias mulheres deram entrada no Hospital da Universidade, publicadas pelo Prof. VERGÍLlO CORREIA nos interessantes comentários
Sobre o Trajo Regional, do Diário de Coimbra de 4 de Abril de 1935, a propósito da comissão de Etnografia
então instituída, e de que ambos nós fazíamos parte.
/
146 /
Nessa «lista de 10 mulheres, de
todas as idades e estados,
da cidade, do arrabalde, dos arredores e da região, vemos o uso da
tricana, de cor azul, ser corrente, completando o trajo
ordinário: uma mantilha ou um capotinho, um colete, e um
capelo, touca ou lenço. Os sapatos raramente figuram, o que
significa que, como hoje, a mulher do campo andava descalça.
|
Fig. 82
− TRICANA E FUTRICA DE COIMBRA Trajos de 1919 |
Eis o trajo da mulher do povo, do centro do país, em tempo
de D. João V».
A extensão vocabular, do vestuário à portadora, regista-se já em
dicionários subsequentes: «TRICANA» − Saia de camponeza, manteu. −
Figuradamente: Mulher que usa de tricana», define correctamente FR.
DOMINGOS VIEIRA (1874). MORAIS, FARIA, CONSTÂNCIO, etc., já por
palavras idênticas haviam dito coisa aproximada.
/
147 /
[Vol. VII - N.º
26 - 1941]
Mas não só em Coimbra a mulher do povo adaptou a si o
qualificativo de tricana; de igual forma era conhecida a rapariga
tecedeira de Guimarães(11), a rapariga de
Ílhavo, a de Aveiro também.
De todas porém, uma apenas subsiste na realidade, mantendo o seu prestígio antigo e trajando com especial donaire:
é a de Aveiro.
A de Coimbra vive unicamente na Literatura, e na saudade
dos que ainda a conheceram, há vinte anos e mais, que de tanto
data a transformação vertiginosa operada na vida citadina dali.
Passou a tricana de Coimbra, mas alguma coisa ficou do
seu trajar dos últimos tempos, a recordar justamente o que a
cidade tem de mais característico, o que lhe dá nome, poesia e
riqueza também, isto é: a sua vida académica; ficou o
vicente,
graciosa fita preta, por via de regra, de veludo, que aconchega
à nuca o lenço, ou a touca, de seda, cobertura de cabeça da mulher
coimbrã de hoje em dia (fig. 2).
O trajo da tricana de Coimbra de há quarenta anos foi
delicadamente cantado por MANUEL DA SILVA GAIO, poeta que sentiu e viveu
a cidade como poucos; merece a pena ouvi-lo:
...Ninguém como ela traja
A gosto do namorado;
Lenço de pontas atrás,
Chalinho de sobraçado,
Chinela curta, a fugir,
Embora o pé seja leve
E pequenino de ver
Na meia branca de neve;
Corpete todo a estalar,
Saia subida e ligeira,
Aventalinho tamanho
Como folha de figueira...
As citações seriam infindáveis, como infindável é ainda
a saudade de quem nos lábios e nos braços das tricanas de
Coimbra queimou descuidadamente a melhor parte da sua
mocidade doirada, agora distante, viu alvorecer o amor, e
emurchecerem-lhe também as primeiras ilusões...
Nascer para a vida, afinal!
/148 /
Voltemos ao trajo; e seja agora para arquivar o descritivo perfeito que
o espírito curioso doutro grande amigo das velharias de Coimbra − o Dr.
OCTAVIANO SÁ − dedicou à tricana em 1935, no Primeiro de Janeiro de 14
de Abril, passado depois à sua colectânea coimbrã «Nos Domínios de
Minerva» em 1939:
«Usavam então na cabeça um lenço, a que chamavam cachené, de cor, com
grandes ramagens, servindo unicamente para a nuca, apertado atrás, à
altura do pescoço, por forma que ficasse uma das pontas escondida
debaixo do lenço e caísse a outra num elegante abandono sobre um dos
lados do peito.
Vestiam «chambres» brancos, talhados em quartos,
ornamentados à altura
dos peitos com uma rendinha quase gomada, a contorná-los, e muitos deles,
nesses quartos que lhe subiam até ao pescoço, formando uma pequena gola
de lindo enfeite, tinham umas pregas para maior realce ou fantasia. As
mangas fofas, apertadas nos pulsos, terminavam por uns punhos largos e
rendados, vindo esses chambres a meter-se, à altura da cinta, debaixo
das saias.
Estas eram sempre de pano preto lustroso, rodadas, até à altura do
artelho, tendo a maior parte dessas saias uma barra larga de veludo e
debruadas em toda a roda com uma fitinha de lã.
Usavam então os saiotes encarnados, de pano próprio para
ajudar a fazer o rodado das saias de fora.
As meias, confeccionadas por elas, eram brancas, de interessantes
rendados.
O avental, descaindo até aos joelhos, era um adorno interessante
pelas fantasias delicadas, e que quebrava a monotonia das
saias negras.
A chinelinha, a brincar-lhes no peito do pé, a desprender-se com o andar
cadenciado, saltitante, de gáspeas de verniz, formando bico, tinha arte
nos pespontos ou no debruado, em arrebiques e bordados semelhando rendas
de bilros.
Por último, o xaile, de várias cores, lisos ou de ramos e de cercadura
vistosa, franjado, tomava aspectos, sobre o busto, no contorno das
formas, duma graciosa e caprichosa escultura saída das mãos de artista
portentoso.
Vinha prender-se ao alto no ombro esquerdo, num delicado nó, para deixar
livres os braços, como asas soltas para os espaços infindos ...
......................................................................................................................................
Com a evolução, no decorrer dos tempos, a «tricana» tomou
aspectos senhoris, e quase acompanhou a moda representada nos figurinos
desenhados para os ateliers das grandes costureiras.
......................................................................................................................................
A «tricana» de Coimbra de hoje modificou o vestuário;
/ 149 /
subiu as saias, confeccionadas com os melhores panos, até à
altura dos joelhos, veste blusas de seda, enrola-se num xaile de
merino, calça sapatos de salto elevado, e traz na cabeça um paninho de seda preta, como uma touca, preso dum lado e outro
do pescoço por uma fitinha de veludilho, quase por debaixo do
queixo, a que chamam «vicente».
Esta invenção é recente. Deu-lhe o nome um titular, muito
conhecido como estudante da nossa terra, porque nela soube gozar
a sua descuidosa, e alegre mocidade, deixando a atestá-la páginas e
livros de exaltação e saudade de Coimbra, e que mais tarde foi
aplaudido como dramaturgo no Teatro Nacional. Ao emoldurar, com essa fitinha, o rosto duma das mais lindas tricanas
que soube amar, ficou para sempre ligado o seu nome à nova
moda, mas para não perder o conceito da cantiga em voga, esqueceu-a
quando partiu com o canudo de bacharel...
Estas são as tricanas desta terra, cujo trajar actual
quase
aburguesa a nova camada de raparigas, produto duma época e
duma «civilização»... (pág. 194).
Também a JÚLIO DANTAS, para quem a tricana de Coimbra
«foi uma obra secular e amorosa do estudante», o vicente serviu
de tema a algumas breves páginas de boa prosa coimbrã(12):
«A rapariga de Coimbra mudou; é já inteiramente diferente
do que era há quinze e há vinte anos; mas apesar da sua decadência, do seu futriquismo, da sua descaracterização, ainda constitui um tipo
aparte. Ficou-lhe qualquer coisa de ancestral, de
inapagável, de hereditário no gesto de traçar o xaile, no movimento de atar o lenço; apesar dos seus sapatos de salto, ainda se lhe
adivinha, no ritmo no andar, a ousadia airosa da chinela
que lhe tremeu na ponta do pé; vou jurar que a sua vulgaríssima saia de costureira ondula ainda com a mesma graça musical com que, em pleno século
XVII, descendo ao sol a Couraça
de Lisboa, saracoteava a sua vasquinha curta de serafina encarnada; e se a chinela e a meia branca desapareceram, se as
filigranas de oiro já não lhe brincam nas orelhas, se se perdeu
o embiocado do lenço e o avental de ponta que seduziram João
Penha, alguma coisa existe, alguma coisa ficou, um pormenor
vivo, uma nota curiosa, um pequeno traço especial que, ainda hoje, nos
faz conhecer à légua as raparigas de Coimbra: o
«vicente».
..............................................................................................................................................
Uma fita de veludo preto, da largura de um dedo, que lhes
afoga o pescoço. O enfeite mais singelo e mais despretensioso
do mundo. E, entretanto, a graça, a expressão, a viveza, o
/ 150 / sugestivo encanto que essa simples fita, passada sob a barba e
presa atrás às pontas do lenço de pongé preto que lhes envolve
os cabelos, empresta à fisionomia da mondégide pagã que é a
mulher de Coimbra! Para compreender o poder de sedução do
«vicente» é preciso ter visto, algum dia, a carnação luminosa e
inconfundível da tricana.
..............................................................................................................................................
Toda a gente o pode pôr; só à tricana é que fica bem.
..............................................................................................................................................
Para as raparigas de Coimbra, o «vicente» não é, apenas,
a moda que passa; é a jóia que fica. − «São as nossas pérolas», − dizia-me uma, embrulhada no seu
xaile rico de ramagens,
à beira de Santa Cruz. E outra, descendo o mercado abraçada
a uma cantarinha de barro da Cegonheira: − «É o nosso coração». Bem sabia ela porquê. Nenhuma tricana ignora que o
primeiro «vicente» nasceu de um romance de amor» ..............
É outro o caso da tricana de Aveiro, à dolência sentimental,
palidez doirada e distinção inata que tornavam a tricana de
Coimbra inconfundível, a de Aveiro opõe ainda hoje a graça
viva, activa, o requebro aliciador, quase andaluz, que incendeia
pela vibração.
Ambas produto do Meio; uma, porém, intelectual e bem falante, trazendo em si
toda a nostalgia duma balada, cismadora
como um choupo da beira do Mondego à hora do Poente, dir-se-ia qualquer
coisa de imaterial, produto de gerações sucessivas de sonho; a outra, esquiva como asa de gaivota, airosa como vela
branca tocada da aragem cortante da laguna, toda
realidade, encarna soberanamente a irradiação luminosa da Ria, o espelhamento da sua paisagem
de alvas salinas, o próprio
espírito de aventura das suas águas aliciantes.
Sente-se-lhe a graça à
distância, como o ar salgado impregnado de iodo, nos lábios do viajante à medida que se aproxima
de Aveiro...
Que contributo trouxeram ao trajo estas mulheres extraordinárias?
Como o adaptaram e o viveram?
Vimos alguns aspectos do trajo de Coimbra, vimos também
alguns do de Aveiro, que se completam agora com as nossas
figuras 87 a 89.
Em Coimbra, ficou o mistério duma fita preta de veludo a
cingir o pescoço (fig. 2); em Aveiro, como vamos ver, ficará a
graça incomparável dum minúsculo xailinho de merino a envolver o busto
(fig. 89).
«O vestuário moderno da nossa tricana comparticipa tanto
da moda senhoril que só o xaile, em declínio e reduzido a quase nada, diferença uma tricana de uma senhora», escrevia
o Dr. ALBERTO SOUTO no semanário O Democrata de 17 de Julho
/ 151 /
de 1937, justificando a orientação que deu à exibição aveirense
em Lisboa no grande cortejo folclórico de 30 de Maio desse ano.
...«Não é agasalho, nem conforto, nem peça útil,
esse xaile
levíssimo e quase transparente que as nossas tricanas usam.
É arte, arte delas, arte de indumentária popular, arte
aveirense!
E, socialmente, é um mero símbolo da sua popularidade,
da sua condição, da sua classe, da humildade da sua ascendência.
..............................................................................................................................................
Xailes iguais podem pôr às costas
todas as mulheres
de Portugal, mas o que nenhumas outras mulheres conseguem
é deixá-lo cair, apanhá-lo, dispô-lo e utilizá-lo com as linhas, o ar
e a graça das tricanas de Aveiro que dele fizeram o mais distinto e fino atavio da feminilidade popular portuguesa.
Essa maneira de pôr o xaile, aliada ao
tipo feminino e ao carácter
das nossas raparigas, é a nota característica e inconfundível do povo
aveirense».
De quando datará o xaile na
região?
O problema, que à Etnografia muito interessa, põe-se para
toda a Província, e mesmo para o país inteiro.
Se percorrermos velhas estampas, quadros de costumes, ou lermos
descrições de trajos antigos, chegaremos facilmente à conclusão de que o
xaile não tem fundas raízes no nosso país.
A obra de ALBERTO SOUSA, abundante colecção de estampas
do Trajo popular em Portugal nos séculos XVIlI e XIX, só da 1.ª colecção de litografias de PALHARES (1840-1860) reproduz
dois casos de xaile: numa açoreana da ilha de S. Miguel, e o
da nossa fig. 18 − mulher de Aveiro vendendo mexilhões e
ovos moles.
Em data posterior, mesmo, também só recenseia dois outros
casos: a mulher de Coimbra conduzindo água da fonte ou do
Mondego, que reproduzimos com o n.º 19, (Colecção PALHARES,
série 3.ª, 1850-1870) e um desenho de MANUEL DE MACEDO, posterior a
1850, de lugar indeterminado.
Fora disso, capuchas, mantéus,
mantilhas, josesinhos, capas,
capotes, saias pelas costas, é o que se encontra agasalhando criadas,
vendedeiras de fruta, saloias, camponesas, lavadeiras, leiteiras,
adelas, colarejas dos mercados, peixeiras da Ribeira, mulheres
do povo em toda a escala profissional.
E assim mesmo, repare-se que não só hoje a mulher que trabalha se apresenta em corpo (figs. 83 a 85); já antigamente o fazia;
as nossas gravuras documentam-no expressivamente, sendo digno
de nota o desenho de 1835 que representa o povo da Vista Alegre
(fig. 52); podíamos acrescentar-lhe o grupo de Foz de Arouce,
da obra de 1826, Sketches of Portuguese life... a que no princípio destes apontamentos nos referimos: estão em corpo as suas
duas fiandeiras, de larga saia rodada e colete, coberta, uma
/ 152 /
delas com o grande chapéu de travincas, outra de lenço; e fora
da Província não faltam exemplos também, antigos.
|
Se quisermos verificar agora como e quando o
xaile fez a
sua aparição nos dicionários, por falta de elementos mais completos
nas bibliotecas de que
dispusemos, temos de limitar a nossa colheita de momento ao seguinte:
O Diccionario de la lengua castellana... compuesto por la Real Academia
española, editado em 1739, regista:
«Xales. s. m. Lienzo recio, y gruesso, que sirve para cubrir
las cargas. Es voz antiquada»
e exemplifica com uma passagem do fuero de Aragon.»
A 5.ª edição do mesmo dicionário, já de 1817, esclarece, revelando
evolução no emprego da peça:
«Chále. Especie de mantileta que usan las mugeres, suelta y tan ancha en
los extremos como en el medio.»
|
Fig.
83 − MULHER DA REGIÃO DE AVEIRO cerca de 1900.
(da monografia A Beira de LUÍS CHAVES). |
Em Portugal, a 2.ª edição(13) do Dicionário de ANTÓNIO MORAIS SILVA (1813) ensina:
«Chále, s. m. (do Hespanhol).
Lenço pintado de marca mayor, que as mulheres trazem pelos hombros,
dobrado
de sorte que fica em tres pontas, sendo o lenço quadrado.
Os Inglezes chamão chales a uma porção de certo longor, e
largura do tecido mui fino de lã de camello, de commum
amarella; que as mulheres lançavão ao pescoço, e as pontas
enrolavão ao redor do corpo até a cintura, e são assás caros;
véi da India Oriental. (a Shale)».
Na 4.ª edição acrescentou-se: «são mais famosos os chales
de Cachemira (Wolney Voyages)».
/ 153 /
O Novo Dicionário crítico e etimológico da língua Portuguesa, de
FRANCISCO SOLANO CONSTANCIO, já regista o vocábulo chale na sua 3.ª
edição, de 1852, notando:
«Chale, ou Xale, s. m. (do Pérsico e Arab. xale, e não do Hespanhol,
como diz Moraes, cinta de lan finissima, de seda ou de algodão), tecido
de lan finissima, de seda ou de algodão fabricado na Asia, e
particularmente em Cachemir, que os homens trazem como cinta, e em
turbante, e as mulheres sobre os hombros. Os de Cachemir são os mais
estimados; são mais
ou menos largos e tambem os ha quadrados bordados sem
avesso, tecidos do pello de certas cabras. Na Europa, e particularmente
em França, Allemanha e Inglaterra, se fazem á imitação dos de Cachemir
do mesmo pello de cabra, de lan finissima merina, de seda, algodão, e de
mistura d'ellas».
EDUARDO DE FARIA, no seu Novo Dicionário (2.ª ed., 1851) descreve
chale
da mesma forma, com os mesmos termos até,
mas dá-lhe também a acepção de «lenço grande de lã que as mulheres
trazem sobre os hombros, qualquer lenço de seda ou outro estofo, no
mesmo tamanho e para o mesmo uso, que o chale.».
Pelo que respeita à etimologia da palavra, que lhe denunciará a origem,
ANTENOR NASCENTES, no seu recente Dicionário Etimológico da Língua
Portuguesa (Rio de Janeiro, 1932), dá para xaile a seguinte etimologia:
«CHALE − Do persa shal. IBN BATUTA» IV, 109, fala de uma cidade Xaliat,
na Índia, na qual se fazia uma fazenda que tinha este nome. Os chales
da Índia eram importante objecto de
comércio para a Companhia das índias e na segunda metade
do século XVlII estavam em moda na Inglaterra, donde passaram aos
demais países. DALGADO relaciona, com dúvida, o persa ao
sânscr. cheIa».
Por sua vez, Monsenhor SEBASTIÃO RODOLFO DALGADO, acima
invocado, nota no seu Glossário Luso-Asiático (I, 252) que «os nossos indianistas antigos não conheceram o vocábulo».
A data mais antiga que pôde encontrar foi 1786, extraída de JÚDICE BIKER,
Colecção de Tratados, VIII, 234: «Offereço a V. Ex.ª pelo honrado
Naraena Rao Vital as peças seguintes; 2 xales; 2 mamudes, 1 peça de atala».
Mas em PIETRO DELLA VALLE,
Viaggi, III, 182, de 1623, verificou já o
termo Scial, da Pérsia, com a acepção atribuída hoje a xaile.
Também THEVENOT, Voyages, III, 1I0, de 1666; BERNIER,
Voyages, II, 265, de 1668; GROSE, Voyage, 183, de 1750; RAYNAL,
Histoire, II, 24, de 1770; FRA PAOLINO, Viaggio, 150, de 1786, deram
conta do objecto e lhe registaram o nome.
Vejamos agora um pouco do que lá fora se passava com o uso do
xaile,
que possivelmente ajudará a explicar o problema
/ 154 / português; a moda, entre nós, foi sempre muito subsidiária
do estrangeiro.
Em França, há uma gravura muito conhecida, representando
«Un bal sous Louis-Philippe» (posterior a 1830) em que uma das damas
aparece envolvida em magnífico xaile de larga
franja, descendo, em bico, até meia perna. Era peça de vestuário que a
esse tempo andava ainda pela alta roda; conheço outra, de
1816, do jornal inglês de modas The Repository, apresentando também, em
dama elegante, um rico xaile bordado
e franjado.
E não aparecem muitos mais exemplos gráficos; pode acrescentar-se,
talvez, a revista francesa de modas La Mesangère, que
por 1800 incluía nas suas ilustrações a estampa colorida duma
patinadora em Paris, vestindo xaile franjado, mas muito curto, dobrado a
meio e não passando da cinta.
O xaile parece, na verdade, ter proveniência oriental;
esclarecem satisfatoriamente a sua introdução e difusão na
Europa dois artigos de MAX VON BOEHN na grande obra La Moda (tradução espanhola de 1929); como a história do
xaile nunca
foi tentada, que nós saibamos, para Portugal, afigura-se-nos de
utilidade reunir aqui esses elementos, tanto mais que se trata de
obras pouco vulgares na Província; ligados ao que dos nossos
dicionários dissemos já, ficar-se-á compreendendo melhor o
problema do xaile português.
Referindo-se à moda de 1802, nota MAX VON BOEHN (voI.
5.º
de La moda) que...
«La aversión a ocultar las formas hizo que desapareciese
por completo el uso de la capa y en cambio, proporcionó
una soberania despótica aI chal de cachemir. Esta prenda
tenía todas las perfecciones, pues era de una tela suave y
caliente, con elegantes dibujos, de elevado precio, y sentaba admirablemente, por lo que, bajo diferentes formas,
subsistió durante un siglo. Primero apareció en forma de
challargo (seis anas de largo por dos de ancho) en Londres,
en 1786, costava de 100 a 200 táleres y tuvo tanta aceptación que se hicieron imitaciones de algodón para las classes
menesterosas. El mismo Napoleón fué impotente contra el
entusiasmo que por el chal sintieron las francesas. La importación deI cachemir auténtico estaba castigada con severas
penas, pero esto era naturalmente un incentivo más para
que se llevase, y el emperador hubo de tolerar que la emperatriz Josefina poseyese de 300 a 400 chales de cachemir,
cada uno de los cuales costaba de 15.000 a 20.000 francos, tolerancia
que no fué óbice en más de una ocasión para
que, llevado de la cólera, destrozase algunas de aquellas
prendas con sus propias manos.
También en el ajuar de la emperatriz María Luisa había
/
155 /
varios chales de 1.200 a 5.000 francos uno, y las damas de menor
alcurnia podían proporcionarse chales aI precio de 600 francos en la
tienda que Corbin tenía en la calle de Richelieu. Los chales que
costaban menos de cincuenta luises de oro eran menospreciados, aI decir
de la señora
de Remusat, y las damas se jactaban deI precio que habían pagado por los suyos. EI favor que alcanzó esta prenda se debía, no sólo a que su
posesión constituía un lujo en el que podían competir las damas con sus
rivales, sino también a que el llevarIa era un arte verdaderamente personal. El chal no
se echaba sobre el cuerpo, como la capa, sino
que la que lo llevaba se envolvía en él y podia, en la manera
de manejarIo, revelar un estilo propio, demostrando su gracia, su
elegancia y su gusto en la manera de desplegarIo y recogerIo. No se
decía entonces: «Esa dama va bien vestida», sino: «Esa dama va bien
envolta». Hablando de la emperatriz Josefina dice la señora Remusat: «Se
envuelve con una gracia que sólo en ella he observado». Si alguna
dama hubiese estado en duda acerca de si sabía ponerse el chal con la
mayor elegancia, habría podido consultar con la señorita Gardel, artista
que, además de exhibirse en los teatros de París con la danza deI chal,
daba lecciones de actitudes. En 1808 aparecieron en París las primeras
capas de pieles para las señoras, pero el chal
coexistió con ellas, y en 1812 se pusieron de moda, desde Viena, los
chales turcos cuadrados, que valían de 2.000 a 3.000 florines». (Vol
5.º, Págs. 143 a 145.)
No volume seguinte (pág. 134), volta o autor a ocupar-se do xaile
escrevendo:
«El Chal. Con el predomínio de las grandes mangas no podían las damas
usar la capa; por esto la moda, fuera de la «rotonda», que en Viena se
denominaba «arrolladora», no conoció durante veinte años capa alguna y
se complació en inventar abrigos y pelerinas de todas clases, importando el albornoz de Argel, la mantilla de Andalucía, el
velo de pano de China, de Oriente, y dejando, sobre todo, que continuase
imperando el chal de Cachemira, de cuya aparición nos ocupamos aI
tratar deI período desde 1790 aI 1817. Su precioso tejido, sus colores y
dibujos hermosos, y sobre todo su elevado precio, le conservaron el
favor de las damas hasta muy entrado el segundo imperio, de
modo que con igual predilección lo usaron tres generaciones seguidas. En
el ajuar de boda de la duquesa de OrIeans se contaban doce chales de
Cachemira, seis índios legítimos y seis franceses. Se calculaba,
entonces que el chal de Cachemira que llevaba en su ajuar de novia una
francesa
/ 156 /
de la clase media costaba, por término medio, 875 táleres. Victor Hugo
quiso comprar a su esposa uno de estos chales con los primeros derechos
de autor que cobró, y que importaban 700 francos; pero por esta cantidad
no pude adquirir un chal legítimo, yhubo de contentarse con uno de los
que fabricaba en Francia el barón Ternaux. La única cosa que Adela
Schopenhauer encontró en Fulda digna de notarse fué que no se veía allí
ningún chal legítimo, o aI menos no
supo verIo.»
Outros historiadores do trajo em França se referiram
também ao xaile na alta sociedade; A. DEBLAY (Histoire Anecdotique du
Costume en France, pág. 107), resume da seguinte maneira o assunto:
...«les femmes de la cour de Napoléon
n'auront d'autre ressource pour
se garantir du froid que le shall, amplification des fichus menteurs et
des écharpes de l'ancien régime. Le shall tenait une large place dans le
costume des Merveilleuses, grâce à la variété d'effets que l'on pouvait
obtenir par la façon de le draper; comme son nom l'indique, il était
d'importation
orientale et l'on raconte que son introduction fut un souvenir de
l'expedition d'Egypte; en tout cas son succès fut considérable, et il
n'est pas sans intérêt de remarquer que, sous le second Empire, il
revint à la mode avec au moins autant d'intensité.»
E MIGUEL ZAMACOÏS (Le Costume): «N'oublions pas le châle en cachemire,
d'un prix élevé, qui sera plus tard, dans les corbeilles de mariages, un
signe d'aisance et de respectabilité sociale» (pág. 58).
Assim se terão passado as coisas também em
Portugal;
recordo-me perfeitamente de no princípio deste século ouvir falar em
Ílhavo e em Aveiro de xailes de seda que os capitães de navios traziam
de suas viagens e que depois as famílias a quem eram oferecidos mostravam às visitas como objectos raros e
de
muito preço.
Recordo-me também das senhoras aparecerem em bailes envoltas em
belíssimos xailes e com eles dançarem, o que produzia sempre encantador efeito. Dalguns ouvia dizer que tinham
vindo da Índia, e de outros que eram comprados em Cadiz.
O xaile de merino preto, de dobrar a meio, e com pequeníssima franja,
era por esse tempo objecto que as senhoras da sociedade não desprezavam
e que não tinha baixado ainda às classes populares como actualmente.
Não vai isto além de 1900, época em que era corrente o uso do
mantéu,
visto que, ainda depois dessa data, inúmeras vezes presenciei eu o
desfilar de baptizados pelas ruas de Ílhavo,
/
157 /
envergando a ti' Rosa do Gil (a comadre mais conceituada da vila) o
mantéu rico de cabeção, de magnífica baeta preta e
levando na cabeça enorme chapéu de feltro ornamentado com
fita de veludo em volta, redução já, no entanto, dos famosos
chapéus de meia moeda, de travincas lançadas à copa, a que nos
referimos acima.
|
Fig.
84 − MULHERES DO POVO NO MERCADO DE LEIRIA (Actualidade) |
Assim compreendo, pois, a evolução do agasalho feminino popular; em
muitos lugares da nossa Província ainda hoje o xaile não foi totalmente
aceite; vimos já como a mulher se agasalha lançando pelas costas uma
saia dobrada, à laia de
mantéu; e frequentemente anda em corpo, dum e outro caso
/ 158 /
é flagrante exemplo a região de Leiria, que as nossas figs.
84 e 85 documentam.
|
Fig.
85 − TRAJOS POPULARES DE LEIRIA (Actualidade) |
De cerca de 1900 ê a nossa figo 83, da região de Aveiro;
e de 1908 será a figura 86, em que o xaile, muito modesto, aparece já
pelos ombros duma aguadeira da cidade, descalça.
O desenvolvimento das indústrias de tecelagem no país
baratearam e promoveram a difusão do xaile, como, aliás, tem
/
159 /
condicionado e descaracterizado todo o trajo, acabando com os
particularismos regionais que as indústrias caseiras alimentavam.
Hoje, pouco importaremos, daquele artigo; só os xailes de
grande luxo, para salão, e os de lã dos Pirenéus, de especial
agasalho.
Completa-se agora, com as nossas figuras 87 a 89, de tricanas de Aveiro
desde 1910 até à actualidade, a evolução − e a deformação também, pois
vai-se tornando peça inútil na composição do vestuário − do xaile que não deixou de ser complemento
altamente expressivo e valioso da indumentária feminina permitindo,
como dizia VON BOEHN, un arte verdaderamente personal à mulher, que
podia, en la manera de manejarlo, revelar un estilo propio, demostrando su gracia, su elegancia y su gusto en la manera
de desplegarlo y recogerlo.
Reside justamente aí, também, o grande segredo e o maior encanto da tricana de Aveiro, como, com
grande intuição estética, mais duma vez tem sido afirmado.
Ao xaile da tricana de Aveiro se referiu em 1919 o escritor local
RENATO MELO FRANCO, na Ilustração Portuguesa de 5 de Maio; estavam
então em moda as grandes franjas (figs. 87 e 88); desse artigo se
extratam os períodos seguintes, como depoimento fidedigno:
|
|
Fig.
86 − AGUADEIRA DE AVEIRO cerca de 1908. |
... «O asseio de que se revestem,
e que por vezes vai até
ao exagero, rescende frescura inebriante. É certo que o seu
trajo não ostenta o carácter primitivo doutros tempos. O francesismo dominador invadiu tudo, alterando em sucessivas
mudanças a originalidade das regiões. A mantilha de pano preto, tão graciosa, que lhe envolvia o busto gentil, debruada
de larga fita de veludo, abas amplas, rematando no alto das
costas com um feixe de fitas também de veludo, foi geralmente
/ 160 /
abandonada, para ser substituída pelo vulgar xaile de merino,
de longas franjas de seda entrançada.
........................................................................................................................................
|
Contudo, não há mulher
alguma por esse país que possua a arte, como ela, de lançar um xaile
sobre os ombros ou ostente com a sua graça um lenço de seda na cabeça.
Qual! A nenhuma outra pertence esse privilégio. É só dela, é de sua
natureza.
Depois, ninguém há que a
exceda no apuro do calçado. Como ela segura a chinelinha de verniz na
ponta dos dedos, a deixar ver todo o pé na meia branca muito repuxada!»
Um ponto de referência valioso para se datar o uso do
xaile em Aveiro
encontra-se
num folhetim do Dr. TOMÁS DE CARVALHO, no Campeão do Vouga de 31 de Outubro de 1852; estava
então em Aveiro um circo equestre, e a cidade despovoara-se, em
determinado domingo, para assistir ao espectáculo; o folhetim
intitula-se, mesmo, Aveiro no circo. TOMÁS DE CARVALHO faz o elogio
rasgado da tricana, já então assim chamada, «com a sua saia de
pano azul finíssimo, com a sua capa gentil e graciosa, como lenço de
seda lavrado», e anota:
|
Fig.
87 − TRICANA DE AVEIRO, DE XAILE
E CHINELA − 1910 a 1915 − Duma
aguarela de ALBERTO SOUSA, pertencente ao Museu de Aveiro. |
«Senhoras e tricanas
deram-se
/ 161 /
rendez-vous no circo equestre. Era aí que o famoso lustre devia
atraír a aristocracia burguesa e popular de Aveiro. Em cima o chapéu
Levaillant, em baixo o lenço de seda airosamente lançado em volta do
colo gracioso ; nos camarotes o xaile de cachemira, no anfiteatro a
capa tricanesca. Nas janelas o sapato de verniz, ou botinas de cetim, no
terreiro a sapata gentil e apertada, podendo conter apenas a extremidade
de um pé o mais chinêsmente formoso».
Em 1852, portanto, era o
xaile o grande luxo da sociedade elegante; as
tricanas usavam a mantilha, a que TOMÁS DE CARVALHO dá o nome de capa
(em 1842, LICHNOWSKY, como vimos no princípio destes apontamentos,
encontrara as aguadeiras de Aveiro embrulhadas em capotes).
Em 1884, no 3.º número da revista
Archivo
Photographico, JOAQUIM DE
MELO FREITAS, comentando duas fotografias de tipos populares femininos
de Cambra e de Arouca, fornece-nos outro ponto de referência para a
difusão do xaile; Arouca não faz parte da Província da Beira Litoral,
mas limita-a, a Nordeste, e interessa igualmente a este
esboço notar o que por lá se passava em matéria
de trajo; Cambra, ficava-lhe a Sul, e é hoje o Concelho de Vale
de Cambra, incluído na área provincial.
/
162 /
|
|
Fig.
88 − TRICANA DE AVEIRO, DE XAILE calçando já sapato. (Trajo de
gala − 1918 a 1935) − Duma aguarela de ALBERTO SOUSA, pertencente ao
Museu de Aveiro. |
...«As mulheres usam chapelinhos redondos de S. João da Madeira
debruados a veludilho, às vezes um casibeque de pano escuro, casimIra
ou saragoça, orlado de fitas. Quando de chita dão-lhe o nome de
chambres ou blusas e por baixo trazem coletes de linho apertados com atacador.
|
Segue-se depois a saia, que é
de fazenda, chita ou serguilha (tecido composto de linho e lã). Um lenço
prende-lhes os cabelos ou os deixa soltos ao desdém. Na falta de
casibeque usam um outro lenço farfalhudo de pontas
cruzadas sobre o peito com
gentileza extravagante, ao passo que nos pés trazem umas chinelas
recortadas e ligeiras de que têm ufania, se não andam descalças, o que
em certos casos tentadores é deveras mais bonito.
Em poucas freguesias
algumas raparigas trajam capoteiras, que simulam mantilhas, e capas que
descem até ao artelho.
Vai-se vulgarizando o
chale e para uso mais ordinário servem-se do
mandil, um bocado de pano de lã, tecido grosseiro que lhes cobre as
costas, e cujas pontas se repartem, uma trilhada debaixo do braço e a
outra por cima do ombro. |
Fig.
89 − TRICANA DE AVEIRO − Trajo de
passeio. Actualidade. Duma aguarela de ALBERTO SOUSA, pertencente ao
Museu de Aveiro. |
Antigamente usavam
chapéus largos de muitos feitios, com borlas, cordões, maçanetas; os
casacos eram muito curtos e tinham atrás no pano do meio urna pequena aba. Mal chegavam à cinta; eram designados com o nome de
roupinhas ou jaqué conforme a fazenda era boa ou
/
163 /
[vol.
VII - N.º 26 - 1941]
ordinária. As roupinhas eram quase sempre de pano azul e guarnecidas de
botões na frente. Por baixo usavam o colete de lã e algodão (cotim)
muito decotado com riscados de seda e veludo preto.
Nas freguesias de Arões, e Junqueira, e nos lugares de Cepelos e Roge as
camisas são bordadas no peito, e de grandes folhos no pescoço».
Interessa destacar este termo
mandil aplicado a cobertura de costas,
espécie de xaile; como «pano grosseiro, de anediar
as bestas depois de escovadas» e como «pano ordinário de aventais de
cozinheiros, de roupa de lacaios em corpo, sem capa», o cataloga o
Dicionário de MORAIS (além doutras acepções que não têm cabimento aqui), abonando-se com ANTÓNIO PEREIRA
RÊGO,
Instrução de Cavalaria e Súmula de Alveitaria, e com JERÓNIMO
CÔRTE-REAL, Naufrágio de Sepúlveda.
Por nossa vez, podemos
acrescentar, historicamente, o passo
da Miscelânea, de MIGUEL LEITÃO DE ANDRADE, referido a Fez, onde
se lê «Mandil, que he pano», (pág. 177 da 2.ª ed.); e, pelo que respeita à Beira Litoral, encontrámos em Arrancada do Vouga a lembrança viva de
saias de mandil, que as mulheres vestiam
sobre o saiote e a saia branca,
não há muitos anos ainda; ali se define mandil como tecido preto, de
lã, para vestuário feminino exterior, menos grosso que o bureI. Era de
fabrico local.
Ao mandil se refere TEÓFILO BRAGA (op. cit.,
I, 361) supondo-o trajo
que tivesse desaparecido e notando que se mantinha na Córsega, onde,
segundo GREGOROVIUS, era aborígene, «porque nos próprios usos etruscos
se vêem mulheres com eles»; consistia num «pedaço de pano de cor que
lhes cobre os rostos, que se põe liso no alto da cabeça e é enrolado em
volta do picho, de modo que se lhe não vê os cabelos».
TEÓFILO BRAGA, a meu ver sem fundamento plausível, identifica o mandil
com o rebuço do Algarve e com «o lenço de cores vivas amarrado na
cabeça deixando o rosto a descoberto»,
do Norte de Portugal, e tira daí conclusões sobre um fundo étnico comum
que explicaria, a par da influência da incorporação romana, a unidade da
civilização ocidental.
O mandil é mais um caso do vocábulo que primitivamente designava o
tecido transitar para o artefacto.
Outra cobertura de costas, da nossa Província, no género de
xaile
ligeiro, muito mais estreito, era o
lambel, de que em Torre de Bera pude
ver um bom exemplar branco, entretecido
de fios cor de rosa e azuis.
Usavam-no ali para ir à missa.
Também em Lisboa as elegantes do Passeio Público se
envolviam em xailes de Tonquim e em manteletes (Ruas de Lisboa, por J.
J. GOMES DE BRITO, I, 247).
/ 164 /
Na nossa Província, quando o
xaile começou a popularizar-se, as senhoras abandonaram-no e passaram a usar capas,
como era moda já antes de 1900.
Hoje em dia − a nossa fig. 89 o documenta
− o xaile da
tricana de Aveiro não é mais do que uma recordação, reduzido
como foi a proporções que diríamos... meramente simbólicas.
Evolucionou diversamente de Coimbra, onde o grande luxo
é o chamado xaile de 8 pontas
− grande rectângulo de merino
ou de pano adamascado que se dobra primeiro ao meio e depois
em diagonal, resultando daí, efectivamente, oito ângulos; manda o
preceito que as duas pontas exteriores sejam mais curtas que
as de baixo, afim de em breve relance de olhos se verificar que se
trata dum xaile de oito pontas... São peças de elevado
custo, a que nem toda a mulher pode chegar; não se tiram por
menos de 400 escudos, e daí para cima, até 600.
Explicado sucintamente, e compreendido, ao que parece, o
problema do xaile na Beira Litoral, que, no entanto, merecia e bem
justificava um estudo monográfico que pusesse em relevo
o seu acentuado valor na composição estética do vestuário feminino − notado por MAX VON BOEHN e por DEBLAY dum modo
geral, e reclamado para a tricana de Aveiro pelos escritores
locais RENATO FRANCO e ALBERTO SOUTO − pouco mais nos deteremos já
nesta primeira tentativa de agrupamento e esboço do panorama do trajo
popular na Beira Litoral, através apenas de
alguns aspectos seus que ainda nos foi possível surpreender e
coleccionar, como por mais duma vez temos declarado, espontaneamente reduzindo a essas despretensiosas proporções o âmbito
e o valor do presente trabalho.
Nem sempre era fácil, também, desenvolvê-lo muito mais, por falta de
elementos de informação como se requeriam; assim,
da Figueira da Foz, por exemplo, onde, apesar do seu cortejo
folclórico de 1938 e da nossa observação directa, mal pudemos
registar alguns velhos aspectos de indumentária local, reproduzindo, ainda assim, uma litografia, anterior a 1875, debalde
procurámos depoimentos publicados de que nos socorrêssemos;
deparou-se-nos unicamente o que SANTOS ROCHA registou com
os seus Materiais para a História da Figueira nos Séculos XVII e
XVIII, pouco pormenorizado, aliás, como se vai ver, pois se pusermos de
parte os trajos senhoris, que neste momento nos não ocupam, apenas
aproveitamos daquele eminente arqueólogo a notícia de que os homens
menos abastados usavam no século dezoito «véstia ou jaqueta azul ou preta, às vezes de veludo,
colete de pano igual ou de baetão, linho ou chita, camisote de
linho e capote azul ou preto», não se encontrando notícia de
gabão; e que as mulheres da mesma época, e de igual condição
social, «trajavam no verão a saia de serafina, melania ou durante
preto, azul, cor de canela, etc., e roupinhas de chita ou de primavera
/ 165 /
verde, no inverno a saia de baeta, castor ou camelão de
riscas, verde, encarnado, de todas as cores do arco íris, e roupinhas de baetão. Por cima capa ou capote branco de pano de linho, ou
de outro pano alvadio, amarelo, cor de rosa ou encarnado.
Na cabeça, a mantilha de baeta preta ou
frisada. Em jóias, o fio de contas ou cordão com um Cristo,
brincos e cadeados e botões, tudo de
ouro» (pág. 236, op. cit.).
É lícito perguntar se isto constituiria o trajo verdadeiramente popular
ou se, como parece mais provável, o da classe burguesa. Os bibliógrafos
locais consultados nada mais puderam acrescentar.
Como esta, outras dificuldades surgiram, algumas das quais
insuperáveis até.
Concluamos rapidamente, portanto; outros mais afortunados, com melhor
informação virão a completar os nossos breves apontamentos de agora.
Do vestuário popular feminino, sempre mais complicado que o do homem, é
ainda parte integrante, e muito expressiva,
por sinal, o lenço da cabeça.
Consiste fundamentalmente num quadrado de tecido que se dobra em
diagonal e se lança pela cabeça; tal como para o xaile, a maneira de
pôr o lenço é variadíssima e permite obter
efeitos pessoais de graciosidade e de verdadeira composição estética;
são quatro palmos de chita, lã, ou seda; e no entanto,
é extraordinário o partido que a serrana, a camponesa ou a peixeira, a
própria mulher da cidade, conseguem tirar de tão prestimoso e singelo
atavio.
As nossas figuras documentam largamente o que possa haver de fantasia,
de gosto pessoal e até de utilitarismo na maneira de pôr o lenço por
toda a Beira Litoral; vemo-lo lançado solto sobre a cabeça (figs. 4,
53, 73, 76); caído para trás, preso apenas pelo chapéu (figs. 1, 16, 24,
31, 35, 47, 49, 50, 55, 56, 60, 74, 77, 78, 90); forrando a aba do antigo chapéu, pela parte
:inferior (figs. inicial, 9, 23) ; de pontas entaladas na aba do chapéu
(figs. 3, 4, 29, 68); dando nó singelo, à frente (figs. inicial, 16 a
19, 43, 46, 57, 61, 62, 70, 71, 75); atado ao alto da cabeça (fig. 7);
atado atrás, na nuca (figs. 3, 27, 311, 34, 69); atado ao lado (figs.
30, 69, 82); lenço à padeirinha, que na cidade de Coimbra
chamam, agora à espanhola (fig. 81); de pontas cruzadas atrás,
e voltando à frente (fig. 56); de pontas cruzadas, sem nó, entaladas no
capote (fig. 59); lenço soqueixado (figs. 6, 20, 21, 28, 32, 66); por
fim, cruzado no peito, a agasalhar, como vimos, quando estava em moda o
colete exterior (figs. 21, 27, 35).
Em algumas dessas estampas podem-se observar cumulativamente, e
comparar, modos diversos de pôr o lenço (figs. 3, 4, 16, 25, 63, 76 e
80).
/ 166 /
Complemento do lenço, por
toda a nossa Província, era o
grande chapéu de travincas à copa; evolucionou diversamente
no final do século passado, resultando daí uma variedade notável de chapéus que a mulher ainda hoje usa, sem que possamos
explicá-los todos; no Museu de Ílhavo temos procurado reunir um exemplar
de cada, para futuro estudo.
A peixeira de Aveiro, a camponesa ao sul da Mealhada, a
sardinheira de Ançã, a lavradora de Montemor o Velho, as da
Abrunheira e de Tentugal, usam ainda um chapéu bastante
largo, de feltro preto e fitas de veludo, exemplificado nas nossas
figs. 24, 38, 56 e 67; já a peixeira de Ílhavo, ao lado e em contacto
directo com a de Aveiro, usa o chapéu de abas perfeitamente
encostadas à copa, alta, e assim a gafanhoa, a mulher de Rocas, a de
Cacia, a de Eixo, a de Vagos e de Mira, a gandaresa da
orla até Leiria (figs. 3, 7, 25, 27, 29, 30, 34, 49, 50, 60, 69, 78,
e 90). Como explicar o fenómeno?
A galinheira da Murtosa, a peixeira daí e de Estarreja,
adoptaram outro tipo de chapéu, de copa muito baixa e um
pouco de aba, quase plana (figs. 72 e 74); em Ovar usam esse e o de
Ílhavo, talvez mais este último; na Bairrada a
mulher usa muito o chapéu de homem enterrado pela cabeça;
assim vindima, assim carrega a canastra, assim vai à fonte.
Problema apenas enunciado, o chapéu feminino da Beira Litoral merece cuidada monografia que o explique historicamente e o
interprete em face da Estética do vestuário, de que constitui uma peça altamente expressiva.
Outro complemento muito vulgarizado,
quase indispensável até, do vestuário feminino, pelas suas qualidades utilitárias, é o
avental, destinado a proteger a parte anterior da saia; encontramo-lo em
toda a Província, em todas as profissões, e até
como simples adorno, bordado e rendado, reduzido a proporções
minúsculas como são os das nossas figuras 2 e 81. Esquematicamente é um rectângulo de chita, de riscado (fig. 90), de serguilha,
e também de cambraia e de seda, pendente da cinta, franzido
em cima na junção ao cós ou cabeção, e alargando para baixo;
cinge-se ordinariamente por duas fitas à cinta dando laço atrás,
mas não falta quem use uma fita só que dá volta à cinta e vem
abotoar ao próprio avental, do lado oposto àquele donde partiu.
Por vezes tem alças que vão aos ombros e se cruzam nas
costas; outras vezes tem peito e protege igualmente a blusa.
É peça de vestuário com muitos séculos de existência(14);
como todo o trajo, tem evolucionado também, sujeito à influência
/ 167 /
das modas (fig. 1 a 4, 7, 24, 27, 29, 56, 60, 72, 73, 75, 78, 81, 82,
90);
e a propósito se dá aqui registo ao que, a seu respeito, pessoalmente observámos não há muitos anos, que ajuda a compreender a
interpenetração constantemente operada em matéria de modas, dificultando
em extremo identificação, fixação de datas e de proveniências.
|
Fig.
90 −
MULHERES DE EIXO na fonte da Quinta de S. Francisco. |
Haverá uns quinze anos apareceram na Figueira da Foz, a
passar Agosto, umas famílias espanholas, como é usual; naquele ano
porém, como trouxessem crianças, vieram com elas as respectivas criadas;
traziam estas uns aventais a que pouco faltava para serem verdadeiros
vestidos; tinham peito e costas, e quase cobriam a saia em toda a roda;
na realidade, eram práticos e davam comodidade; logo notados pelos
veraneantes do mês, de tal modo foram copiados que daí a pouco não havia
criada na cidade que os não tivesse também, e de então para cá tornaram-se de uso corrente por toda
a parte.
/ 168 /
Não haverá 30 anos ainda, talvez, que era vulgar encontrarem-se pelas aldeias mulheres a caminho da fonte fazendo
meia;
em casa, fazer meia era o serão obrigatório das criadas, quando não
fiavam; as pastoras, enquanto guardavam o gado, as pescadeiras,
sentadas na areia à espera das redes, todas faziam meia, conseguindo por vezes, à custa de relevos e de abertos, fazer decoração interessantíssima em tão singelo artefacto.
Até nisso se revelava o primor do acabamento que a mulher
portuguesa põe sempre em tudo o que por suas mãos é tocado,
transfigurando, pela arte e pelo carinho com que trabalha, humildes
farrapos em artefactos que são o enlevo dos olhos;
uns pontos cruzados, uns franzidos, umas pregas, fitas, vidrilhos, uma
rendinha, isto junto a policromia adequada, é quanto basta
para fazer do trajo feminino um verdadeiro poema de delicadeza
e de graça.
Dessas meias, que a mulher outrora fazia em casa, já dificilmente se encontrará algum par; o fabrico mecânico avassalou
tudo, e por toda a parte se compram hoje, feitas já.
Nos arredores de Leiria (Vieira, Monte-Real, Rigueira de
Pontes, etc., pela Gândara até à Guia) está muito em uso uma
espécie de meias de lã sem pés, que as mulheres enfiam nas
pernas, quer de verão, quer de inverno; conhecem-se pelo nome
de canos e tenho-as encontrado nas três cores naturais: brancas,
cor de castanha, e pretas. São trabalho caseiro.
Na Lousã e imediações a mulher protege-se dos tojos com
uma espécie de polainas de lã, parecidas com os canos da Gândara de
Leiria.
É frequente, num lugar e noutro, resguardarem
as pernas,
mas andarem descalças.
Sem calçado nos aparece habitualmente a mulher de trabalho da Beira Litoral; as nossas figs. inicial, 9, 13, 16 a 21, 25, 27,
29, 33, 38, 45, 47, 55, 59, 61, 72 a 78, 81, 83, 86, assim a representam.
Do modo como ela calça é mais escassa a documentação
datada que permita estabelecer cronologia. Todo o litoral da
Província usou, e usa ainda, a
chinela que as nossas figs.
1 a 7,
23, 24, 26, 28, 32, 53, 56, 64, 65, 67, 68, 70, 82, 87, documentam;
desde a mais modesta, para uso diário, até à graciosa chinelinha dos domingos, das tricanas de Aveiro e de Coimbra, pespontada e decorada com abertos, forrada a pelica branca, e inscrita
há muito, como vimos, nos registos da literatura regional; Ovar,
Estarreja, Murtosa, Ílhavo, Mira, Ançã, Figueira da Foz, etc., não
a abandonaram ainda; no trabalho caseiro, quando não anda descalça, a mulher da Província calça
chinelo de trança ou de pano,
com sola de cabedal ou de corda, ultimamente de borracha.
De inverno, é de rigor, ainda, o
tamanco de bezerro, ou
mesmo de verniz, Com sua luzente biqueira de latão, e sola de
madeira de laranjeira, acácia ou nogueira.
/
169 /
Para a zona de Leiria é muito vulgar um sapato grosseiro de carneira,
com meio salto, e presilha de abotoar ao lado; vê-se da cor do cabedal e
em preto (fig. 60).
Mas o sapato citadino, de salto alto, vai invadindo o país inteiro e
desterrando as formas rústicas, mais tradicionais. Já antigamente se
usou sapato (figs. 57, 58), mas sem a pretensão de se confundir com o da
senhora, como os das figs. 88 e 89.
|
Acessórios do trajo são, ainda, os
ouros que a mulher exibe com maior ou
menor profusão, e a que sempre foi particularmente afeiçoada; também
neste sector, como em tantos outros do povo português, o Vouga é a linha
divisória de gostos e tendências: a linha onde tudo muda − costumes, tradições,
festas, como dizia RAUL BRANDÃO (Vale de Josafat, pág. 275), e
que JAIME DE MAGALHÃES LIMA explicava localizando na Murtosa e em
Ílhavo, respectivamente, os dois pontos de fixação duma corrente
migratória nórdica e doutra mediterrânica: «dois e só dois caudais de
sangue de diferente cor e diversa substância, alimentam e animam essas
multidões: tem um a veia mãe em Ílhavo, e outro na Murtosa» (Os povos do
Baixo-Vouga).
|
Fig.
91 −
MURTOSEIRA RICAMENTE OURADA, trajando de luto. Fotografia do 3º quartel
do séc. XIX. |
Para o norte do Vouga a mulher carrega-se muito mais de cordões,
grilhões de grandes elos, cruzes de Malta que por vezes assumem
proporções descomunais, estrelas, corações rendados, filigranas; veja-se a nossa figura 91, fotografia duma
murtoseira do 3.º quartel do século passado, que apesar de trajar de
luto (jaqueta de seda preta, saia de fazenda da mesma
cor, com barra de cetim, e faixa de merino de lã, também preta),
exibe enormes arrecadas, colar de grossas contas, grande coração, e uma avantajada cruz de Malta que ainda hoje existe em
/ 170 /
poder dum lavrador da freguesia do Bunheiro e pesa aproximadamente meio
quilo!
No cortejo folclórico de Aveiro, de 1939, pude ver mais do
que um desses paramentos ricos, impressionantes pelo tamanho, sem faltarem à delicadeza da
execução; estamos, ainda assim, muito distantes da carga alegremente
suportada pelas famosas
ouradas
de Entre-Douro e Minho (Santa Maria, Areosa, Perre, Afife, Carreço, etc.
); luxo supremo que mal se compreende, tão vizinho anda do autêntico
mau gosto...
Para o Sul do Vouga essa decoração é mais parcimoniosa, conquanto, no
século passado, a mulher de Ílhavo usasse bastante ouro (figs. 16, 35,
71), bem como a dos arredores de Leiria; nem as nossas gravuras nem a
observação directa registam, cá para o Sul, os exageros do Norte, com raízes que topejam declaradamente pelos tempos pré-históricos; não se abandonou o
cordão ou fio de ouro, é certo (fig. 69), porque o primeiro dinheiro
ganho pela rapariga que vai servir, ou pela lavradora que inicia criação
de gado é para um cordão, e toda a mulher quer ter o seu ouro, mas não
se vêem os enormes mostruários que a murtoseira ou a ovarina, por
exemplo, se comprazem em apresentar sobre as blusas em domingo ou dia de
festa grada. Um crucifixo discreto, a que modernamente se acrescenta a
medalha esmaltada a cores com Nossa Senhora da Conceição, é o que mais
se encontra ao Sul do Vouga (fig. 56), até o extremo da Beira Litoral;
quando as posses são um pouco maiores, a mulher compra a libra rendada
ou a medalha estrelada a parecer moeda antiga, quando não é mesmo um
dobrão autêntico de D. João V ou de D. José.
Em toda a Província, no entanto, não se dispensa o
ouro nas orelhas,
sejam brincos ligeiros, como hoje se usam, sejam arrecadas pesadas, dos
séculos passados, argolas com sua conta de coral como na cidade de
Coimbra, outras de secção quadrada como no Campo, brincos à Rainha,
brincos à camponesa, brincos de laço e contas, brincos de campainha, de
fusos ou de cabacinhos (de remota ascendência), etc.
Para a mulher do povo, tudo isto é mais do que o
seu luxo
de ocasião: dir-se-ia parte integrante do seu corpo.
Se está de luto, envolve os brincos em pano
preto; mas não
os tira; nalgumas localidades, veste de luto o próprio crucifixo!
Figas de ouro, de prata, de coral, de azeviche, de variadíssimas
outras substâncias, cornichos retorcidos, amuletos diversos: porquinhos,
o numero treze, folhas de trevo, aros para retratos, aparceiram em
eclética e amável companhia com os símbolos do catolicismo, tradicionais
e respeitados: produto da moda lançada pelos industriais de ourivesaria,
mas obediência também ao fundo de superstição que vive sempre latente
no povo português.
Daqueles amuletos, possuo um exemplar curioso pela associação
/
171 /
[VoI. VII - N.º
26 - 1941] disparatada que apresenta, e pelo simbolismo que traduz,
verdadeira síntese da mentalidade popular: é constituído por um
sino-saimão, sobre o qual assenta um coração atravessado por duas setas
que se cruzam; à esquerda das setas, uma chave,
à direita, um crescente e uma figa, encaixando no cruzamento
superior das setas, Nossa Senhora da Conceição, coroada, pousando sobre
o globo e outro crescente, é de prata, antigo, e foi recolhido em São
Martinho do Bispo.
Por toda a Província predominou outrora o colar de contas de ouro (figs.
23, 26, 32, 33, 55, 58, 77, 91); hoje quase se não vê.
Já acima nos referimos também
às arrecadas de aljôfres
(fig. 79) da Beira-mar, em especial de Ílhavo, jóia delicadíssima
que os Museus avidamente recolhem, e várias vezes falámos, igualmente,
de botões de ouro e de prata, de vário tamanho, com que a mulher do povo
apertava o colete. Eram jóias, embora populares, cheias de carácter;
hoje em dia, a uniformidade é muito maior; e a criada de servir, a
camponesa, a peixeira, compram do mais moderno, sem preocupações de continuar
tradição, como antigamente; resulta daí usarem, muitas vezes, brincos e
fios que, pela sua delicadeza, não lhe ficam bem
nem condizem com o exercício das profissões grosseiras a que as suas
portadoras se entregam.
Antigamente o povo tinha outra consciência da sua posição na escala
social; era também cioso dela, mas respeitava hierarquias; não usava
nem se atrevia ao que lhe não ficava bem, ao que
não era próprio dele. Hoje pensa diversamente; o nivelamento tem-lhe
sido de tal forma apregoado e oferecido, que o vai dominando a
preocupação de escalar a posição imediata; então, aproxima-se quanto
pode, no vestuário, da classe, superior, para se igualar a ela e com ela
aparentemente se confundir.
Não é aqui o lugar de considerar se isto é um bem ou um
mal; mas à Etnografia compete tudo registar: não só práticas; tendências
também.
CONCLUSÃO
− Alguns aspectos do trajo popular na Beira Litoral desfilaram
e ficaram, ao mesmo tempo, arquivados nas páginas precedentes; alguns,
trazidos a livro pela primeira vez; outros, respigados de esquecidas
publicações, nem sempre fáceis de encontrar; todos se reuniram agora
para facilidade de consulta e de futuro comentário; as gravuras suprem
as insuficiências do texto (que são sempre forçosamente grandes em
descritivos e apreciações de indumentária!) e mostram, melhor que
nenhumas palavras, como o homem e a mulher desta vasta e variada região
geográfica se têm vestido durante alguns séculos: adaptação do trajo ao
Meio natural, e adaptação da moda emanada das classes superiores à sua
especial condição
social; quer dizer: problema de Geografia Humana, problema de Estética,
problema de Economia também.
/
172 /
Deixado o interesse histórico e etnográfico puramente local,
que fica algum tanto satisfeito, apesar deste documentário estar longe
de ser, ou de pretender ser exaustivo, interessaria relacionar o trajo da Beira Litoral com
os restantes que no País se
verificam, ou em passado conhecido existiram. Só dessa
forma se poderiam extrair algumas conclusões de ordem geral.
Um trabalho desses, porém, implica a organização prévia de
recenseamentos como o presente, quando melhores não possam
ser, para as restantes Províncias; sem eles, será inconsistente
quanto se pretenda estabelecer corno conclusão, sujeita sempre
a ser contrariada pelo resultado duma inventariação ampla.
Mas essas monografias provinciais não estão ainda feitas;
se alguma sugestão, portanto, se consente a quem sentiu e
viveu o problema para esta Província da Beira Litoral, e laboriosamente procurou esclarecê-lo, nós, lembraríamos a conveniência de, sem mais demora, pois muito se
vai perdendo diariamente, se recensear o trajo popular de cada Província, nos seus aspectos histórico e contemporâneo.
Traçar-se-ia depois, em face da distribuição geográfica das
peças mais representativas do vestuário, a carta indumental
portuguesa, não esboçada ainda, sequer.
Consequência da diversidade geográfica
− terras altas, terras de planície, terras de litoral de Ria e Mar − o trajo da
Província da Beira Litoral não se apresenta homogéneo; também
não coincide com a divisão provincial, e dificilmente algum trajo
coincidirá com uma grande zona administrativa, por menos artificial que ela seja. Nas subdivisões regionais é que se poderá
encontrar um ou outro pormenor de indumentária correspondendo à mancha geográfica; a carta indumental que vier a
tentar-se, deverá marcar, portanto, a distribuição das peças componentes que interessar registar, de preferência a pretender
localizar um trajo completo, que é presentemente unidade muito
rara na Etnografia portuguesa, e impossível de descobrir nesta
Província.
O significado do trajo da Beira Litoral, a sua estética,
considerando-o como construção artística que também, e grandemente, ele é, as suas condições psíquicas, são temas complementares do presente esboço, altamente tentadores; mas o seu
estudo exige tempo, absorve actividades, e obriga a dispêndios
incomportáveis para quem trabalha à margem da intriga oficial,
ignorado das altas esferas distribuidoras, vivendo humildemente
o seu sonho interior, usufruindo apenas o claustro místico das
ilusões que pela vida fora conheceu e amou.
O problema do trajo popular merece e exige a cooperação
oficial.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL |