A
mantilha, de que
vínhamos tratando (figs. 6, 53, 62 e 65), de camelão ou de boa baeta
preta, excepcionalmente cor de pinhão, debruada a tarja de veludo da mesma
cor, e que por vezes era lavrado, com ornatos relevados, consistia ordinariamente num manto
algum tanto rodado
que descia até o joelho, e se usava sobre o vestido inteiro ou
saia e blusa desirmanadas.
Nalgumas localidades tomava o nome de
capoteira; e recentemente, nos
cortejos folclóricos a que temos aludido, ouvimos
as suas portadoras designá-la também pelo nome de
capa, e,
ainda,
capote; indevidamente, supomos nós, pois capa e capote
talhavam-se de diferente modo da
mantilha.
Variava o seu acabamento de região para região; não seriam também
estranhos ao facto os meios de fortuna das suas
possuidoras; apresenta, às vezes, uma pequenina gola triangular, atrás; e em Torre de Bera pudemos observar um exemplar magnífico, com um belo laço de fita de veludo lavrado, de
nó fixado por uma roseta de vidrilhos, e caindo pelas costas abaixo em
cinco pontas.
BLUTEAU, no seu Vocabulario Portuguez & Latino...,
em 1716,
registava a mantilha em duas fases da sua evolução; a antiga,
com bico para cobrir a cabeça, e a de então, já sem ele;
mantilha de mulher, diz o erudito teatino, é «huma especie de veo,
ou capa sem cabeção, nem talho, à medida do pescoço, que se
poem sobre a cabeça, ou hombros; algumas saloyas a trazem pela cintura.
A mantilha he mais comprida que capinha,
& menos authorizada que manto. He mais usada nas Provincias, que na
corte. Mantilha de bicos, era a modo das mantilhas, que hoje se
usaõ, mas com grandes bicos para diante. Ainda hoje ha ciganas que usaõ
dellas. Muliebre pallium ou Palliolum, i.
Neut.
/
116 /
Mantilha tambem era huma especie de banda traçada, que
traziaõ as mulheres em lugar de capotes, & hoje so as usaõ as mulheres
do povo, & em lugar de mantos na Beira».
É interessante notar que em 1873, Fr. DOMINGOS VIEIRA, no
Grande Diccionario Portuguez, omite já estes significados de mantilha, registando apenas o
que corresponde à nossa figura 58, que data de 1814: mantilha munida
duma espécie de pala de cartão forrado que formava a côca lançada sobre
a cabeça. Estava já em
franca decadência a mantilha vulgar, e o dicionarista anotou apenas uma
forma antiga, que ele certamente conheceu mais.
Cremos que, originariamente, a mantilha não era trajo popular.
Principiou por ser usada na sociedade senhoril, e era então constituída
por uma capa mais rodada, que descia até o artelho, ou
pouco menos; assim a encontramos na Beira Litoral também, em gente fina.
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Fig. 66
− MANTILHA
Usada por «meia senhora» de Aveiro, a acompanhar saia de cauda.
Fotografia de CARLOS RELVAS, posterior a 1874. |
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Evolucionou muito, encurtando o seu comprimento; em compensação, foi
descendo na categoria social das suas portadoras, como é lei fundamental
de todo o trajo, passou à
classe que antigamente era uso chamar das meias senhoras, e,
para o fim do século XIX, já as tricanas de Aveiro e de Coimbra a
usavam; tornou-se então popular e por isso se regista nestes
apontamentos.
Em 1886 declarava TEÓFILO BRAGA (O Povo Portuguez...
/ 117 /
voI. I, 363) que a
mantilha (que
ele filiava no véu negro notado por ESTRABÃO nas mulheres ibéricas) acabara, havia poucos anos,
no Porto; mais adiante (pág. 376) porém, atribui-lhe origem
árabe. De certeza, fica apenas a sua antiguidade em Portugal.
No Branco e Negro,
n.º 93, de 9 de Janeiro de 1898, ALBERTO PIMENTEL
pronuncia-se pela tradição mourisca para os rebuços, biocos, e
mantilhas. No Panorama de 1857, pág. 324, um artigo
tendo por tema os trajos nacionais proclama que seria bem útil
que tanto os homens como as mulheres da classe secundária largassem o
uso moirisco dos capotes... por «oposto ao espírito
dum povo activo e industrioso!...»
Acompanhava-a muito um lenço branco de
bobinete levemente engomado, que
se colocava na cabeça de maneira a formar bico à frente, sobre a testa(1); atrás, o lenço caía livremente pela mantilha abaixo e apenas se
segurava à frente por meio duma laçada ou nó singelo; as nossas figs. 4
e 53 dão suficiente ideia dessa posição do lenço, à frente e atrás; o
arranjo registado nas figs. 6, 62 e 66, com todas as pontas metidas para
dentro, é muito menos popular.
Vimos pessoalmente mantilhas em Rocas, Vale de Cambra,
S. João da Madeira, Albergaria-a-Velha, Ovar, Murtosa, Estarreja, Águeda, Aveiro,
Ílhavo, Vagos, Pampilhosa, Coimbra, Almalaguês, Torre de Bera, Figueira da Foz, Buarcos, Quiaios, etc.
Com este mesmo nome de
mantilha, e abandonado já o
antigo significado, começou a vulgarizar-se, passado 1900, a
mantilha de renda, de proveniência espanhola, que os rendeiros da Galiza
introduziram calcorreando Portugal inteiro, de volumoso fardo às costas,
apoiado a um respeitável metro de
madeira, e apregoando sempre o seu característico: ren... dé...
ren... dé...
Ainda há trinta anos o rendeiro espanhol ambulante era uma
figura popularíssima da Província, criando amizadees e, por vezes
até, constituindo família em Portugal e fixando-se. É hoje comerciante
que raro aparece, conquanto se encontre ainda, uma vez ou outra; a camioneta, que domina a vida actual, tornou a sua existência
desnecessária; é condição do progresso acabar com
os regionalismos e nivelar civilizações.
Essa
mantilha de renda destinava-se apenas a cobrir a cabeça e usava-se
principalmente para a frequência da igreja, como hoje em dia novamente
se observa.
Importa, portanto, não a confundir com a antiga
mantilha
capoteira; são peças de vestuário totalmente diversas.
/ 118 /
À mantilha de renda se deve considerar referida a quadra
que por volta de 1907 se cantava em Aveiro e nós recolhemos:
Chamaste-me sevilhana
Pelo trajar da mantilha;
A tricaninha de Aveiro
É igual à (2) de Sevilha.
Sevilhanas se chamavam também essas coberturas de cabeça, em razão
evidente da sua proveniência.
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Fig. 67
−
MANTÉU DE SERGUILHA
Trajo popular de Aveiro
Fotografia de CARLOS RELVAS,
posterior a 1874. |
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Relacionado com a
mantilha-capoteira como vestuário popular de agasalho,
mais pobre, contudo, era o
mantéu, de que podemos apresentar, para a
nossa região, uma expressiva fotografia (fig. 67), duas litografias (figs.
16 e 17), três aguarelas antigas (figs. 57, 59, 61), e dois desenhos
de reconstituição (figs. 28 e 70); confeccionavam-se em baetão, burel, briche e serguilha:
cor de castanha, pretos, azuis, excepcionalmente
brancos; tinham um cabeção franzido, que os cingia ao pescoço por meio de duas fitas
− às vezes, de cores vivas, bem como o cabeção; ainda hoje
não é impossível encontrar o mantéu a uso entre mulheres de idade, por toda
a nossa Província.
Um exemplar expressivo de mantéu rico, de festa, é o que a fig. 68
reproduz, dum desenho de MANUEL DE MACEDO; a litografia, já do final
do século XIX, é hoje muito rara e merece
/ 119 /
bem a homenagem duns minutos de atenção, porque o trajo que
a pescadeira, ou camponesa (mulher de Ílhavo, diz unicamente
a legenda) enverga, é um modelo de louçania e de equilíbrio: sobre uma camisa branca de cabeção enfolhado, a rapariga vestiu
/ 120 / o gracioso coletinho que lhe enformava o busto, aconchegando o farto
seio, e que era mantido em posição por meio
de 3 pares de grandes botões de prata com sua travinca.
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Fig.
68 Litografia n.º 2 da colecção organizada pelo Sr. Coronel
FERREIRA LIMA e extraída de exemplares do «Almanaque Ilustrado das
Horas Românticas» de 1885 a 1891 (catalogada a pág. 28 do opúsculo
cit. do referido autor, alínea 13). Colorida. Desenho de MANUEL DE
MACEDO. Estas mesmas estampas, segundo se lê nesse trabalho,
vendiam-se montadas em cartões com títulos, e, 1898, na feira que
então se realizou na Avenida, em Lisboa, por ocasião do Centenário
da Índia. |
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A
saia de cima largamente rodada, de barra de veludo
recortado, que um ligeiro galão acentua ainda, foi repuxada
para a cinta e aí segura com uma larga faixa de cor, terminada
em franja nas pontas; da cintura pende a algibeira bordada a
lãs de cor e debruada a fita clara; a
saia de baixo, alvíssima,
aflora provocante, em consequência do levantamento a que a faixa obrigou
a de cima; meia branca, embora de algodão,
revela bem que o trajo é festeiro − trajar de função, como
dizia a Salineira, de BERNARDO DE MAGALHÃES; a chinelinha de
verniz preto remata, delicada e graciosa, o harmonioso conjunto.
Grossos cordões de ouro, um grande coração e enormes
arrecadas − todo o luxo tradicional da mulher do povo portuguesa − animam o rosto prazenteiro da rapariga e atestam as qualidades
de observação do artista que a desenhou.
Sobre esta indumentária singela mas alegre, assenta agora
o famoso
mantéu acima referido; é peça de excepção, como
dissemos; cabeção largo de veludo, debruado em recorte, cinge-lhe os ombros; e amplas bandas, de veludo também, a um
lado e outro, forram-no de alto a baixo, debruadas igualmente a fita
obedecendo ao mesmo motivo decorativo dos bicos que
todas as artes populares largamente empregam.
O lenço e o chapéu... são um verdadeiro monumento; outras figuras nossas
os registaram (4, 9, 10, 16, 17, 21, 23, 28, 32, 33, 45, 47, 52,
55, 59, 61, 62, 70); o lenço ainda presentemente se prende assim ao chapéu actual nalguns lugares da
Beira Litoral como temos observado em Ovar, em Sangalhos,
em Mira, e nomeadamente no Carqueijo, em Sargento-Mor, em
Luso e mais arredores da Mealhada; só o chapéu desapareceu,
reduzido a mais convenientes proporções; fabricavam-se em
Braga e no Porto e usavam-se um pouco por toda a parte;
além da nossa Província, onde se documentam abundantemente,
vemo-los, por exemplo, numa belíssima litografia de G. VIVIAN
representando a Torre dos Clérigos e o antigo mercado do Porto, noutra de J.
J. FORRESTER datada de 1835, da feira da
cordoaria, do Porto também, numa litografia de SÁ (oficina
da Rua Nova dos Mártires, de Lisboa), tendo em primeiro
plano o cruzeiro de Porto de Mós, nas litografias antigas das varinas de
Lisboa, noutra satirizando D. Miguel e a Junta do Porto (estampa
n.º 9 dessa colecção), etc.
Fazem lembrar os chapéus flamengos dos conhecidos
retratos do Infante D. Henrique, nas tábuas de S. Vicente, do
Museu das Janelas Verdes, e de D. Afonso V, no códice de Stuttgart, das
viagens do Cavaleiro de Ehingen.
Mas não sei se outra não terá sido a sua proveniência, pois
ainda hoje as camponesas moiras de Fez os usam, de formato
/
121 /
perfeitamente igual aos nossos, sem lhes faltarem as travincas
lançadas à copa, como se pode ver na gravura de pág. 270 do grande
descritivo Marrocos, do escritor JOSÉ DE ESAGUY.
Custavam, no último quartel do século passado, vinte e quatro
tostões e chegaram a ser cantados numa quadra popular de
Ílhavo que já noutro lugar(3) reproduzi:
Chapéus de meia moeda
Vende a Rita da Moleira;
Mal empregados são eles
A andar ao pó da Cambeia... (4)
Em Salreu chamavam-lhe chapéus de ver a Deus, certamente
por só em dias de festa aí serem usados.
Para o Norte eram conhecidos por
chapéus à vareira, deles
falando também a cantiga popular da terra da Maia:
Sou maiata, sou maiata,
Trago chapéu à vareira;
Também sei falar de amores
Como qualquer lavradeira.
Ao uso do
mantéu e do grande chapéu em Cantanhede, por exemplo, se
referiu em 1886 SANCHES DE FRIAS, nas suas Notas a lápis, Passeios e
Digressões peninsulares, deixando registado a pág. 96: «Da localidade
pouco há que dizer; é pobre e
feia. O único característico mais de notar encerra-se no traje
invariável, que vimos às mulheres e às crianças... um mantéu,
que lhes desce da cabeça, e um chapéu à serrana, ambos mais
vistosos e amaneirados do que a capucha de burel e o chapéu dos
pastores da Beira.»
Registamos também, já agora, duas interessantes descrições
do trajo feminino dos arredores de Aveiro: uma, de Cacia, Sarrazola, Quinta do Loureiro, Vilarinho e Paço, trazida a público no
semanário O Povo de Aveiro de 30 de Abril de 1939, incluída no
comentário ali feito ao cortejo folclórico desse mês e ano, na cidade
(já atrás transcrevemos desse mesmo comentário o que dizia respeito a
vestuário masculino):
«Colete em veludo preto guarnecido em volta com barra de seda vermelha
da largura de 3 cm. Nas costas um ramo de flores, em três cores,
vermelho, verde e amarelo.
/ 122 /
Havia também coletes em seda
amarela adamascada. Os coletes de
seda amarela eram debruados com uma barra de seda azul escura; os
vermelhos eram de barra de seda azul clara debruados com uma tira de 3 cm.
Os coletes apertavam com 3 pares de botões de prata grandes e ligados
por uma corrente. Havia botões lisos e lavrados. Os lenços eram de seda
em cores vermelha, verde, amarela, azul e
bordados em uma das pontas com um ramo, Tinham franja.
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Fig. 69 − RAPARIGAS DE CACIA
−
Actualidade. |
A camisa com gola e guarnecida a renda. As saias de castorina ou mescla
preta com barra de veludo em baixo e a toda a volta da saia. A largura
da barra de veludo tinha 3 a 4 cm.
As saias eram compridas deixando ver somente uma pequena parte da perna
e tinham muita roda. A algibeira, de qualquer
pano claro, com fita vermelha ou cor de rosa ou verde para atar à cinta.
O chapéu era preto como o que usavam as mulheres da Beira-Mar
− Aveiro. Debruado de fita de veludo preta e à volta da copa fita do
mesmo veludo. Chinelas de verniz ou de pano preto com biqueira de
verniz, meias brancas. Nas orelhas, argolas grandes em ouro; ao pescoço
um colar de contas em ouro com
um caracol pendente ou uma cruz.»
Evidentemente, o autor deste apontamento descreveu peças
de vestuário que tinha presentes, peças de excepção, em todo o
/
123 /
caso, pois os tecidos de que eram constituídas não andavam a
uso diário (veludos bordados, sedas, mescla, castorina, lenços
de seda); apesar disso, abstraindo do tecido, o trajo está bem descrito
e foi notado com exactidão.
Para se verificar, desde já, a grande evolução que se operou no trajo popular em 50 anos, pedimos o confronto daquela descrição
com a nossa figura 69, fotografia de três raparigas de Cacia, da
actualidade; desapareceu o colete, como por toda a parte, o lenço é
outro, o chapéu é outro.
A blusa incaracterística, copiada de figurinos internacionais,
banalizou por completo o aspecto da mulher do povo; salva-se ainda o
chapéu; o seu preço actual, elevadíssimo (40 escudos,
e mais), e a campanha contra o transporte de carregos à
cabeça(5), acabarão por o banir também dentro de poucos
anos.
Outra descrição de trajo popular feminino,
antigo, dos arredores de
Aveiro, encontra-se nas notas sobre Ílhavo doutros
tempos, da autoria do Conselheiro FERREIRA DA CUNHA E SOUSA,
acima extratadas já quando agrupámos o que se referia a vestuário
masculino:
«Nas mulheres, o vestido era da mesma forma que o dos
homens, de invariável simplicidade e uniformidade. Saia de serguilha (fraldilha) preta, colete de qualquer fazenda, não excluindo
o veludo carmesim, preso no peito por tema abotoadura de prata, de par; e no pescoço um par de botões de filigrana de ouro unia
o estreito colar da camisa; nenhum outro vestido; os braços só
cobertos com as mangas da camisa, lenço na cabeça e no peito,
de paninho azul com barras amarelas, e o capote, que era uma
capa curta, de pano azul guarnecida nas extremidades laterais, e desde
o pequeno cabeção, por uma fita de veludo preto; completava a vestidura o chapéu de larguíssimas abas guarnecido de
presilhas de fita de veludo preto.
Para a chuva havia o mantéu, também de serguilha preta,
uma espécie de saia aberta e comprida que tornavam sobre o
capote.
Em dias de casamento e festa o mesmo vestido, devendo a saia
ser azul, e o capote de bom pano azul, do mesmo talho dos
/ 124 /
de uso, mas comprido até cobrir toda a saia e com largas bandas
de cetim azul claro. Nestes dias, ou quando doentes ou convalescentes,
calçavam meias; fora destes casos, chinelas rasas ou tamancos, e quase
sempre descalças de pé e perna, o que não obstava a que o pé se
apresentasse sempre tão lavado e mimoso, além de geralmente bem feito,
que ninguém diria ser habituado a andar descalço.
|
Fig. 70 −
TRAJO ANTIGO DE ÍLHAVO −
Reconstituição feita em 1904 pelo aguarelista ROQUE GAMEIRO, Desenho
pertencente ao ilhavense Sr. Dinis Gomes. Gravura extraída do livro de
ROCHA MADAHlL, História e Etnografia, bases para a organização do Museu
Municipal de Ílhavo; 1934 |
E este trajo era de rigorosa uniformidade, a qual ia até à cor dos
lenços. Admitia-se ao domingo lenço branco na cabeça,
mas não de outra cor além da habitual − azul; era preto durante
o luto. O chapéu, sem diferença alguma assim no feitio e qualidade como nos ornatos (fitas e presilhas), mas simplesmente por
jeito que lhe davam ao colocá-lo na cabeça, deixava conhecer se a
portadora era rapariga solteira, casada, viúva, ou se era beata.
O lenço da cabeça sempre por dentro do capote, salvo quando punham o
capote de gala; então a ponta do lenço branco de paninho, cassa
/
125 / ou cambraia, e mais ou menos bordado a branco, estendia-se sobre o
capote. O cabelo era cortado, devendo contudo cobrir-lhe a testa até aos
sobrolhos. Deixar crescer o cabelo, apartá-lo por um
rêgo ao meio da cabeça e afinal atá-lo, foi uma campanha por longo tempo
sustentada com os maridos e pais, mas em que afinal ficaram vencedoras.»
|
Fig. 71 −
RAPARIGAS DE ÍLHAVO −
Com o trajo usado pelas pescadeiras em 1910. |
Compare-se a descrição e ajuste-se às nossas figuras n.os 16, 28, 52,
68, 70; veja-se agora como tudo aqui evolucionou rapidamente também; é de cerca de 1910 a fotografia que a fig, 71
reproduz; nada restava do antigo; hoje, menos ainda; o chapéu
tornou-se mais pequeno, com a aba perfeitamente encostada à copa,
ganhando, no entanto, em distinção (fig. 7); a saia perdeu mais
roda e subiu, tendo chegado a pescadeira a usá-la travadinha; a faixa
sumiu-se de todo; qualquer atilho, ourelo, cordinha ou guita
grossa serve para as pescadeiras que, da beira mar da Costa
Nova ou do mercado de Aveiro trazem o peixe a Ílhavo, altearem as
saias(6): ensaiarem-se, ou ensilharem-se, como elas dizem
/
126 / − a fim de obterem maior liberdade de movimentos e poderem correr.
Esta graciosa pescadeirita de Frossos (fig. 72), de nossos dias, é
frisante exemplo do trajo popular feminino actual, generalizado à beira-mar incluída na zona em referência; só o chapéu
o diferencia um pouco; aqui, a portadora usa o característico da
Murtosa, de copa muito baixa e aba um pouco saliente, elegantíssimo,
menos distinto porém, menos senhoril, que o da mulher de
Ílhavo.
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Fig. 72 − PESCADEIRA DE
FROSSOS Actualidade (1941) |
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Em 1908 vestia como a fig. 73 permite apreciar, a peixeira de Ovar e Espinho; compare-se com a fig.
17 (anterior a 1875) e registe-se
idêntica evolução.
A
varina trabalhando em Lisboa, vestuário em que desde
sempre atentaram viajantes e artistas (fig. 13, 21, 23, 27, 55) evolucionou também,
como era natural; de alparcatas de feltro com sola de borracha e pompon
de seda, por exemplo, a vimos nós pelas ruas da capital, há bem
pouco tempo; conserva, apesar de tudo, a linha que a extrema da mulher
lisboeta e não abandonou ainda o chapelinho murtoseiro onde a
rodilha e a macola assentam
como se foram peças criadas expressamente para com ele se completarem.
Dessa varina moderna dá ideia o belíssimo e expressivo desenho de STUART CARVALHAIS, de 1936, que a nossa
fig. 74 reproduz.
Quão longe estamos daquele tipo (íamos a dizer... clássico) de
«Ovarinas», desenhado por TOMÁS JOSÉ DA ANUNCIAÇÃO (fig. 75)
ou até por MANUEL DE MACEDO (fig. 76), de 1872 este último!
Ainda em 1900 o Almanaque ilustrado do Ocidente estampara essa mesma
gravura, que não tinha perdido actualidade, comentando-a, na parte aqui
aproveitável, desta expressiva forma:
/
127 /
«Em as noites de Santo António, de S. João e de S. Pedro, as ovarinas
dão a nota alegre da cidade com os seus descantes e
bailados pelas ruas e praças, especialmente no Rossio e no mercado da Praça da Figueira. A festa do Senhor da Serra é
também outro dia de regozijo para as ovarinas. Vão todas para Belas em
alegre romaria com os seus homens; algumas em carroças enfeitadas de
flores e chitas de ramagens, outras a pé calcorreando por essas estradas
não menos de quinze quilómetros, dançando e cantando pelo caminho, e
assim como vão, vêm, sempre alegres e incansáveis, descalças ou
de tamanquinhas, sustentando nos quadris bem reforçados suas numerosas
e fartas saias que lhes dão pela tíbia, e sobre o farto colo, onde se
avolumam os seios protuberantes, bastos cordões de ouro, contas,
corações, cruzes, Nossas Senhoras do precioso metal, como em tabuleta
de ourives, recamando-lhes o corpete avivado ou a camisa de mangas ao
punho com seus cabeções bordados.
|
Fig. 73 − PEIXEIRAS DE
OVAR E ESPINHO − Trajos de 1908. |
Das orelhas pendem-lhes grandes arrecadas de filigrana ou até de ouro
maciço e a emoldurar-lhe o
rosto colorido e vivo, um lenço de seda de cores vistosas, pontas caídas, saindo-lhe de sob o chapéu redondo que lhe completa o traje.»
E em 1878, no Universo Ilustrado, um artigo de F. NERY sobre tipos
nacionais apresentava a varina em Lisboa «sempre
/
128 / de
xaile enrolado em volta da cintura, de lenço e chapéu desabado na
cabeça, de grandes arrecadas de ouro nas orelhas, e de cordões, contas e
relicários ao pescoço.»
|
Fig. 74 − VARINA de
Lisboa. Actualidade (1941) − Desenho de STUART CARVALHAIS |
Com o trajo de
varina antiga de Lisboa se fotografou a Rainha D. Maria
Pia: camisa de punhos, colete, enorme saia rodada, lenço e chapéu, meia
branca e chinela, etc. (Ilustração Portuguesa
/ 129 / de 26 de Fevereiro de 1906). E a Rainha D. Amélia tomou para tema
dum dos seus quadros, que apresentou na Exposição do Grémio Artístico,
em 1892, uma varina de Lisboa também (Revista ilustrada, N.º 48 de 1892,
pág. 71). Aqui se reproduz um desenho original de D. AFONSO, do mesmo
tema.
|
Fig. 75 − OVARINA DE
LISBOA − Desenho original de D. Afonso, Duque de Bragança. |
Tudo isto documenta o grande interesse
que o trajo da
varina sempre suscitou, consequência da graciosidade e harmonia dos seus
elementos, de remota ascendência, em contraste com a banalidade do
vestuário corrente. Comentando o concurso da
terra de mais lindas mulheres em Portugal, dizia a Ilustração
Portuguesa de 2 de Julho de 1906:
«Quem, aqui mesmo em Lisboa, deixou de reparar mais de
uma vez na
elegância ondulosa da varina, na beleza oriental da sua pele e no
ingénito donaire das suas atitudes?
/
130 /
Parecem modelos de um atelier de escultor − dizia ALFREDO SERRANO,
parando em frente ao mercado da Ribeira Nova, poucos
dias depois do seu regresso da Áustria, ainda saudoso das tirolesas e das vienenses».
|
Fig. 76 − OVARINAS −
Litografia baseada num quadro de TOMÁS JOSÉ DA ANUNCIAÇÃO
(Museu Municipal de Ílhavo). |
Do trajo feminino de Ovar escrevia em 1912 o agrónomo
/
131 /
[Vol. VII - N.º
26 - 1941]
JOÃO VASCO DE CARVALHO na
monografia rural que acima aproveitámos já para o vestuário masculino.
|
Fig. 77 − OVARINAS
Desenho de MANUEL DE MACEDO, gravado em madeira por J. PEDROZO; é a
estampa n.º 17 do álbum intitulado A gravura de madeira em
Portugal − estudos em todas as especialidades e diversos estilos por
J. PEDROZO; Lisboa, Horas Românticas, 1872. |
«O traje da mulher do povo, há uns 50 anos, era extremamente interessante. Compunha-se de um enormíssimo chapéu
/
132 /
desabado, com cerca de 1 metro de comprimento e com
copa baixa. Como a aba era ridiculamente baixa, para não
ficar derrubada, ligavam-na à copa por meio de presilhas.
Imagine-se por baixo desta enorme mole um lenço de cores
berrantes, solto sobre a nuca, e sobre os ombros uma comprida capa de pano preto e aí teremos o aspecto de uma
mulher de Ovar em dias de trabalho. Quando não traziam
chapéu, levantavam então o enorme capelo ou rebuço da
capa, o qual lhe encobria quase por completo o rosto.
Actualmente, a vareira usa o conhecido traje da varina, quase sem diferença sensível.»
Evidentemente, o trajo da mulher de Ovar não consistia
apenas no «enormíssimo chapéu desabado», no «lenço de cores
berrantes» e na «comprida capa de pano preto»...
Mas nada mais o autor acrescentou a quanto fica transcrito. As nossas
figuras 17, 21 e 55, especialmente, elucidam bem
e permitem concluir de diferente modo acerca do formosíssimo trajo
antigo de Ovar; e a sua evolução em 1908 e na actualidade também se pode
seguir através das figs. 27 e 29 com grande
segurança.
De 1863 se conhece uma fotografia de mulher de Ovar
vestindo
mantilha, lenço branco de bobinete, grande chapéu vareiro e
calçando chinela; foi publicada no fascículo do Turismo
Magazine de Janeiro de 1933, dedicado àquela vila.
Da evolução do trajo na Gafanha fixou alguns aspectos a
monografia que em 1938 o Reverendo JOÃO VIEIRA REZENDE publicou, trabalho utilíssimo também já por nós aproveitado nesta
leve inquirição de como vestiu, e veste, o povo da nossa Província da Beira Litoral; aí se lê, a propósito do vestuário feminino
local:
CHAPÉU
«O primeiro tipo de chapéu de que aqui há
notícia é o
chapéu de presilha e de abas tão largas que se tornou necessário,
para não desabarem sobre os ombros, segurá-las ou prendê-las
com fitas ou presilhas, que partindo do rebordo das mesmas abas, as iam
segurar à copa exteriormente e em toda a volta
dela. Colocado sobre uma mesa de tamanho regular, ocupava-a
totalmente. Seguiu-se-lhe depois o
chapéu de tope, de aba menos
larga, mas suficientemente ampla para resguardar totalmente o
tronco dos raios solares.
Era desprovido de presilha. O
tope consistia em farta laçaria de fitas em forma de pinha alta e colocada sobre a copa,
o que tornava o chapéu bastante incómodo, sobretudo para o transporte de
qualquer objecto sobre a cabeça. Por esta razão
muitas mulheres não o queriam usar, dando em resultado haver
/ 133 /
ao mesmo tempo dois tipos de chapéu: o de tope com a respectiva aba
larga e um outro com aba igualmente larga, mas sem tope.
Foi por isso que o uso do chapéu sem tope
prevaleceu por mais tempo. Aí
por 1870 também se usou o
chapéu de maçaneta e que era adornado por uma
maçaneta grande, de retrós preto ao centro e sobre a copa, e ainda por
outras mais pequenas em volta da mesma copa. Veio depois o
chapéu de
penacho, interessante chapelinho de aba tão reduzida que, dobrada para
cima paralelamente à copa, a não ultrapassava na altura e ficavam tão
pouco distanciadas aba e copa, que dificilmente se lhe poderia fazer
passar de permeio um dedo sequer. A aba era inteiramente coberta
exteriormente com fita de veludo, e sobre a copa e em volta dela, quase
a tocar o bordo da aba, circulava outra fita de veludo que terminava ao
lado com um laço de pontas soltas. Era aí que se fixava o penacho ou
pluma com farta penugem tingida de preto e que realçava com todo o seu
conjunto o pequenino chapéu, colocado sobre a cabeça com ademanes de
natural galanteria. Este chapéu, tão original e característico,
emprestava à sua portadora uma certa beleza e um colorido tão regional,
que marcavam e faziam atrair sobre ela as atenções, aliás respeitosas,
sobretudo dos estranhos, e
realçando-lhe mesmo as belezas naturais e tornando-a objecto
de simpatias muito afectuosas e muito afáveis. Passou a moda e a tricana
só usa hoje o lenço sobre a cabeça».
SAIA
«O tecido de que era confeccionada a primitiva saia da Gafanha não tinha
passado pelas fábricas dos grandes industriais, nem pelos balcões das
casas comerciais das grandes cidades, nem mesmo pelas mãos fidalgas e
delicadas de costureirinhas profissionais. Tudo se preparava a dentro
das próprias casas, cheias de fumo e desarranjadas. Tudo passava ao
serão pelo fuso cantante da jovem camponesa, de tez tisnada pela
torreira do sol; tudo era martelado pelo truc... truc... do tear, que
gemia ao canto da casa nessas noites de serão, nessas noites de
trabalho.
Na Gafanha abundavam sobremaneira os maninhos e os prados, e por isso
não havia naqueles tempos, dizem, família alguma que não possuísse
três, quatro, cinco e seis ovelhas, que os mais novos da casa por ali
iam apascentar. Com os primeiros calores do verão o animal ofegava sob a
lã farta e crescida. Tinha chegado o tempo da tosquia e o animal,
amarrados os pés às mãos, sofre ofegante e pacientemente o zuc... zuc...
da tesoura naquela operação demorada. Tirado o veldro que passava,
depois pela lavagem, era em seguida escarpiado, cardado, fiado, tecido e
finalmente posto em obra, o que tudo
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134 /
se fazia em cada casa nas noites de inverno. Em todas essas casas havia
ao começar o verão grandes teias de lã, fraldilha ou serguilha, que
depois, ou mesmo durante o inverno, eram
postas em obra, talhando e confeccionando com elas as mantas
de cama, as saias, os mantéus, etc. Com tanta abundância
desta matéria prima, e também porque era moda, a
saia de
fraldilha tinha de ser, como foi, a primeira saia conhecida na Gafanha.
Era simples, com pregas, tendo ourelo na orla e rodada com quatro a
cinco varas de fraldilha e sem enfeite algum(7). Note-se que todos os
tipos de saia de que vamos falar, e bem assim os dos outros vestidos,
eram usados tanto pelas pessoas adultas, como pelas donzelas.
Passou-se algum tempo e a esta saia aplicou-se-lhe exteriormente pela
orla uma larga forra de baeta com pequeno debruamento para a parte
interna. Esta forra de baeta só se usava nas saias de luxo. Veio depois
a
saia de paninho preto, ainda mais rodada e com fita ou forra larga de
veludo a debruar para dentro também. Após esta começou a usar-se a
saia
de olho de azeite, de chita azul-escuro, planetada de flores cor de
azeite e com 15 panos de roda. Costurados uns aos outros chegariam para
um pano de barco moliceiro!... Em 1907 ainda existia uma na Encarnação,
que foi desmanchada, e da qual se fizeram três saias, que certamente não
deveriam ser... travadinhas!
A fita ou liga da orla era
de lã e pregada de chapa, isto é,
sem debruamento. A seguir trouxe a moda a
saia de baeta com
fita de veludo a debruar para dentro. Ainda apareceu a seguir a
interessante
saia de viés, confeccionada de baeta ou outro pano qualquer
e com liga de rolo, larga, a debruar na orla, de fora para dentro. O
viés era uma fita larga, com 6 cm de merino
ou de cetim, paralela à liga de rolo, e distanciada dela vinte a
vinte cinco centímetros. E vamos fechar esta secção com a descrição do
berrante
saiote vermelho que era as delícias das raparigas daquele
tempo. Era urdido de baeta, espinhado (agora diríamos bordado) a pé de
galinha ou a estrelas, em lã e a diferentes cores, com viés de veludo
preto ou de algodão.
Este saiote luzia ao longe!... Era tentador... pelo que as donzelas
muito gostavam dele. Mais tarde estes saiotes passaram a ser de flanela vermelha com duas fitas pretas, estreitas, pouco distanciadas entre si e
distantes da orla dez centímetros.
Era vestido de luxo, usado somente ao domingo (domingueiro)
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para levar à capela, quer fosse de manhã à missa, quer de tarde ao terço
e ainda se levava ao pasto para o gado, à
fonte, etc. Às romarias, ou aos passeios, ou mesmo às festas
da vila ou da cidade, levavam a
saia de viés preta dobrada sobre o
braço, e só a vestiam sobre o saiote vermelho quando entravam nas
povoações do seu destino, ou no local das romarias. Ainda estava em uso
em 1900.
Todos os tipos de saia, até cerca de 1900, desciam até ao tornozelo
aproximadamente, e sobre ela e pela cintura, usavam à semana a cinta
preta, com a qual, às vezes e por comodidade, subiam a saia até ao meio
da perna durante os trabalhos na terra. Aos domingos e dias de festa
usavam a cinta roxa, azul e às vezes vermelha com o nome da possuidora
feito a torçal, não tendo outro efeito estas cintas senão ostentar luxo
e beleza, e por isso só eram cingidas à cintura sem apertar, caindo as
duas pontas posteriormente até à orla da saia, e às quais chamavam o
rabo da cinta. Os homens também usaram estas cintas. Ainda aparecem de
quando, em vez.
Depois vieram as muito conhecidas variedades da moda nas saias, mesmo
travadinhas, tendo desaparecido as cintas.»
OUTROS VESTIDOS
«Só muito tarde se usou a blusa, que nos primeiros tempos não existia.
Havia a camisa de pano cru, que desempenhava estas duas funções. Era
rematada no pescoço e nos punhos
por pequenos colarinhos, que às vezes, quando de luxo, terminavam com adornos de rendas estreitas, (bico de serra) e eram fechados
por botões, tanto no pescoço como nos pulsos.
Estes botões eram confeccionados de pano somente, ou de tremoços
cobertos de pano, sendo estes últimos muito inconvenientes, por
amolecerem e desfazerem-se com a lavagem da felpa. Sobre a camisa
vestiam o colete, também de pano cru, e que era a última felpa exterior
a cobrir o tronco. Para as festas, romarias ou outros dias mais solenes,
havia os
coletes de droga ou de luxo confeccionados nas fábricas, com
ramagens
ou adornos muito bizarros. Nos mais modestos empregavam-se
botões simples ou atacadores; nos de droga aplicavam-se quatro ou cinco
pares de grandes botões de prata, a que chamavam abotoaduras.
Ainda estavam em uso em 1880.
Por motivos de pudor usavam-se uns grandes lenços de
cor, enramados às vezes e com franja ou cadilhos, cujas pontas pendentes
do pescoço se cruzavam pela frente para se trilharem na cintura, ou
quando eram de maiores dimensões, depois do cruzamento pela frente, iam
atar-se por detrás, na cintura. Havia um lenço, o lenço da cabeça
ordinariamente de cache-nez, azul, e com franja de cadilhos. Mais tarde
foi substituído por outro
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cor de carne, com cercadura branca. Ainda a proteger o tronco na época
dos frios usavam o
Gibão e por isso dispensavam o lenço do pescoço, por
desnecessário na sua função de manter o recato, que ficava a salvo com o
uso do dito Gibão. Era esta peça de vestuário uma espécie de casaco de
pano preto que mal chegava à cintura, com mangas, botões e guarnecido de
fita preta. Usava-se em 1850.
Era uma espécie de Quinzena que os homens também usavam naquele tempo
embora com talhe diferente. Sobre toda esta indumentária usava-se o
Mantéu de fraldilha, espécie de
opa sem abertura de passagem aos braços, e com tira de ourelo
em chapa pela orla.
Apoiado sobre os ombros em volta do pescoço, sobressaía
por cima uma espécie de gola, bastante saliente, chamada o
Refêgo.
Era um pedaço da mesma teia de fraldilha, redobrado e repregado sobre si
e cosido com o fio de vela, terminando na frente por duas fitas
castelhanas para o segurar sobre os ombros.
Ainda se usava em 1885. Veio finalmente o
Capote de
bom pano e com talhe igual ao do Mantéu, mas muito mais
comprido, chegando alguns quase ao tornozelo. Uma fita larga, de veludo,
com arabescos ou lavrada em ramos, cobria em chapa a gola de bicos e as folhas pela frente e junto à orla.
Ainda se usava ao mesmo tempo a
Mantilha Redonda, de
pano fino que se diferençava do capote por ser muito mais
curta, ter a gola redonda e desguarnecida a fita de quaisquer arabescos
e tinha também abaixo da gola uma farta laçaria de
compridas fitas de veludo, enlaçadas e à mercê do vento. Estas duas peças
de vestuário ainda estavam em uso em 1880. Até
esta época era rara a mulher que usava qualquer calçado, a não ser os
tamancos, e só por ocasião do casamento os pais lhe
permitiam usar as chinelas, que eram o calçado próprio de
casamento, que depois era guardado religiosamente só para as festas mais
solenes».
Ilustra-se suficientemente o trajo actual da gafanhoa com as
nossas gravuras n.os 25 e 78; esta, de fotografia colhida em dia
da Senhora da Saúde (último domingo de Setembro), na Costa
Nova; pode dizer-se comum à Gândara, pelo litoral abaixo, pois
assim o encontramos nas Gafanhas, Vagos, Mira, e até nas Gândaras de
Leiria; verifique-se, por exemplo, a afinidade flagrante
que existe entre os trajos desta grav. 78, da Gafanha, e os da n.º 60, dos arredores de Leiria; nestas usa-se menos a faixa, que nas Gafanhas é de rigor, chegando em Mira a diferenciar o
estado civil da portadora: as solteiras usam-na encarnada, e, as
casadas, preta; o agasalho que a gafanhoa lança pelos ombros
ou traz dobrado, no braço, é um xaile, ao passo que a gandaresa de
Leiria cobre-se com uma saia dobrada ao meio, dela
/
137 /
fazendo capote (fig. 60); é a
saia de ombros, ou
saia das costas, de castorina, e de serguilha também, que, aliás, noutros pontos do país se
usa igualmente; já as antigas estampas de Bradford e de Manuel Godinho
registaram esse curioso complemento do vestuário; no mais não se
distinguem; o modo de deixar cair o lenço é igual, e o chapéu é o mesmo,
vindo, para ambas as partes, de S. João da Madeira.
|
Fig. 78 − GAFANHOAS NA
ROMARIA DA SENHORA DA SAÚDE NA COSTA NOVA (Actualidade) 1941
(?) |
Não permitem as nossas gravuras
n.os 25 e 78 apreciar o colorido dos trajos da gafanhoa, elemento importante para a fixação da
psicologia e da educação estética da mulher local. As preferências
cromáticas desta gente desorientam muito o observador; quando não vestem
de preto − que é o mais corrente, talvez pela elevada percentagem de
lutos que a vida marítima dos homens provoca, como em Ílhavo igualmente
acontece − as mulheres da Gafanha e de Mira não buscam a harmonia de
tons que mais ou menos por toda a parte se procura obter; uma blusa
verde-mar, por exemplo, tem a acompanhá-la, muitas vezes, saia azul,
avental cor-de-rosa, lenço encarnado e preto, ou outra dissociação
cromática idêntica, que fere a retina e fica incompreensível ao
equilíbrio estético a que estamos habituados; com saia vermelho-carregado, anotámos frequentemente blusa branca, lenço verde de
ramagens e avental azul claro; saia verde, blusa cor-de-rosa viva,
avental azul claro debruado a branco, e lenço
/ 138 /
amarelo, encontrámos nós também na romaria da Senhora da Saúde; etc.
É estranho, à primeira vista; mas onde tudo aquilo se valoriza e transforma, pela fusão de cores que então se opera, é nos
bailes que se armam sobre as proas dos barcos moliceiros onde
o pessoal fez a viagem, desde Mira distante, o Areão ou a Vagueira; num
pequeno espaço − 4 escassos metros quadrados,
nem tanto, talvez − volteiam cinco, às vezes seis pares, dançando a Farrapeira, a Chula, o Verde
Gaio, o Folgadinho, o Vira,
o Malhão, a Caninha Verde. É vê-las então, vibrando, ao ritmo do
harmónio, da viola e dos indispensáveis ferrinhos, faixas e pontas do
lenço ao vento, registo da Senhora da Saúde entalado no
chapelinho preto de veludo e feltro, à mistura com o cravo ou a rosa de
papel e arame, das floristas de Ílhavo de há muito
afamadas, que o namorado ou pretendente a isso ofereceu, generoso e
calculista:
Ai e ó ai!
Digo-te adeus, regalar!
Corre fama que sou tua,
Já te não posso
deixar...
E virou!
E vai ao meio!
Certo, certo sem parar...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ,
As penas do Verde Gaio
São verdes e amarelas;
Não me toques, senão caio,
Não me tenho nas chinelas.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Costa Nova nada vale,
Aveiro vale um vintém;
Ílhavo vale um cruzado
P'las lindas moças que tem.
(Recolhido em 1907).
Vai tudo certo,
Folgadinho, certo, certo;
Vai tudo certo,
Folgadinho, certo não.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Manuel, tão lindas moças,
Manuel!
Manuel, tão lindas são!
Manuel, quero-te muito
Manuel!
Mas casar contigo, não...(8)
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
/ 139 /
Adeus, adeus, Costa Nova
Até ao ano que vem!
Deus nos leve e Deus nos traga
E nos junte mais alguém...
Alegria aliciante, comunicativa, que logo se transmite ao areal onde o
moliceiro abicou, aí se formando nova roda a cada momento engrossada por
outros pares que não resistem ao apelo ancestral, e que acorrem de longe
em marcha, comandados pela viola de arame martelando a Ribaldeira,
cadência marcada pelo tambor e pelo estralejante bater das mãos de todo
o rancho, ali ficando depois pela noite dentro até de madrugada...
Senhora da Encarnação, Senhora da Saúde, São Paio da Torreira, Senhora
das Areias... romarias da beira-Ria, do cenário inconfundível da laguna
e dos areais doirados, quando vos descobrirão os pintores de Portugal e
o turismo oficializado dos guias e dos roteiros?...
Onde encontrar mais típicos motivos para estilizações coreográficas,
hoje tão afanosamente rebuscados para regalo de Lisboa que desconhece
Portugal, do que entre este alegre e estranho povo, que baila e canta
tendo por tablado a proa dum moliceiro e por fundo velas e mastros a
entre cortar a tremulina que irradia do cobalto da Ria, encandeia a
vista e entontece toda a gente de saudade e deliciosa angústia?
Tenho peregrinado de lés a lés a costa portuguesa, e observado como vive
o povo, trabalha e folga; em luz, movimento e cor, nada conheço que se
compare às romarias da Ria de Aveiro!
*
* *
Por toda a Beira Litoral a mulher do povo, no trabalho, hoje em dia,
veste blusa e saia, raramente vestido inteiro; reserva este para o
domingo ou dia de festa, e, mesmo assim, quase só para o interior da
Província se usa; a camisa, outrora de mangas à vista, apertando no
pulso e terminando por uma rendinha ou frioleira, é agora exclusivamente
roupa interior, apenas com um rudimento de manga e grande decote,
começando já a rapariga a usá-la sem mangas nem cabeção, suspensa aos
ombros por alças, irradiação da moda senhoril; sobre ela assenta o
colete de pano cru ou de sarja, de atacadores, para apertar o tórax e
conter os seios; uma vez ou outra há ainda um chambre ou um corpete
ligeiro; e então, vestuário exterior, a blusa que varia de tecido
conforme a estação.
Nas cidades e centros de população mais desenvolvida, vai-se
generalizando a combinação e o soutien-gorge, sobretudo entre criadas de
servir, raparigas das fábricas e costureiras. Sempre as mesmas causas a
actuar da mesma forma.
/ 140 /
A blusa, absolutamente generalizada hoje, veio substituir uma peça do
vestuário feminino que por completo desapareceu nesta Província e que
antigamente em toda a parte se encontrava: o colete exterior. Já em
pinturas portuguesas do século XVI
ele se mostra, e seguramente provém do trajo medieval.
No estrangeiro foi usado igualmente pela camponesa, como documentam
gravuras que possuo de França, Suíça, e Espanha; antigas, e de há poucos
anos também. Não é fácil determinar a irradiação para o nosso país.
Usou-se entre nós até final do século passado; a vulgarização da moda
francesa do chambre e da blusa acabou por o desterrar do uso diário,
ficando apenas em regiões onde era parte componente de trajo especial,
catalogado e inalterável, como no Minho.
Era graciosíssimo; modelava o busto, e como, por via de
regra, o faziam de tecidos de cor, contrastava admiravelmente
com a brancura da camisa, desenhando sobre ela os seus recortes ou
debruns de fita de lã; a mulher de então não usava ainda xaile; e mesmo
para o final do século passado, só muito raramente o punha; andava em
corpo. Se queria agasalhar-se sem recorrer ao pesado capote ou ao mantéu,
lançava pelas costas um lenço dobrado em bico, que vinha cruzar no
peito, atando-se depois as pontas atrás, na altura da cinta (fig. 35).
O colete de tipo mais pobre, de uso diário, apertava por meio de cordões
que passavam em ilhós, dum lado e doutro; mas em dias de festa havia
sempre uns botões de prata, maiores
ou menores (por vezes muitíssimo grandes) que por meio duma
travinca, ou dum elo, do mesmo metal, uniam as duas abas do colete.
Literariamente, foi-nos conservada a lembrança deste colete nos
descritivos acima transcritos, do Conselheiro FERREIRA DA CUNHA E SOUSA
e do Reverendo RESENDE, para Ílhavo e imediações.
Conservo ainda de memória a impressão de tão lindo trajo, que pude ver a
uso diário, mas no seu declínio já, em velhas mulheres da Gafanha; e
durante anos seguidos assisti, maravilhado e contente. − menino ainda −
ao cortejo do dia de Reis que do Vale de Ílhavo descia à vila, onde então
exibia a dança medieval da Barroquinha, entrelaçando os pares, enquanto
volteavam, fitas de cor em torno dum mastro enfeitado, sustido pelo
porta-bandeira do rancho, no meio da roda, na praça de Ílhavo.
São coisas que não esquecem mais; cores e movimentos que a retina fixou
para sempre, álbum de imagens que a saudade desfolha constantemente, e
pela vida fora nos acompanha.
Vestiam também o tal coletinho, essas pastorinhas do cortejo de dia de
Reis (fig. 34), e pareciam figuras arrancadas a um presépio dos nossos
barristas de outrora(9);
coletes ricos, pretos,
/
141 /
encarnados, azuis ou cor-de-rosa; de veludo ou de sedas antigas, e
botões de prata, todos luzentes, que dos bragais de suas mães
e avós nesses dias de festa saíam, à mistura com os grossos
cordões de ouro, de estrelas dependuradas, os colares de contas
que eram o encanto dos olhos, e as arrecadas de aljofres para
as orelhas, pesadas mas cheias de distinção.
|
Fig. 79 − ARRECADAS DE
ALJOFRES
(Ouro, esmaltes brancos e verdes, e pérolas) − Século XVII − Gravura
extraída do livro de ROCHA MADAHIL, História e Etnografia, bases
para a organização do Museu Municipal de Ílhavo; 1934. |
/ 142 /
Pois toda a Província se vestiu assim, ainda até aos últimos
anos do século passado. Chamavam-lhe por vezes
corpete; e na região de
Leiria era conhecido pelo nome de
roupinha.
|
Fig. 80
−
LAVADEIRAS D0 RIO MONDEGO, EM COIMBRA
Antes da construção da ponte
metálica, que foi principiada em 1873. Aguarela de ROQUE GAMEIRO,
reproduzida a cores na capa da Ilustração Portuguesa, de 30 de Agosto
de 1909. |
As nossas figuras 8, 9, 16, 17, 23, 26, 31, 33, 34, 35, 46, 47,
52, 53, 55, 68, 70,76,77, documentam a forma e atestam a repartição geográfica do colete na Beira Litoral.
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