O ti' Manuel Afecto, a
quem a garotada turbulenta do seu tempo arreliava, a cada passo,
chamando-lhe Palão, foi um dos mais curiosos e populares tipos da minha
terra, de há bons cinquenta anos, que eu ainda conheci
e tive ensejo de gozar nos seus ridículos e grotescos aspectos.
De muitas e variadas aptidões, no
entanto o seu principal
mister era o de barbeiro.
Pertencia a essa modesta e solícita geração de rapa-queixos de outros
tempos, que escanhoava a cara ao freguês, ensaboando-lha, previamente,
com a áspera e calosa palma da mão, à guisa de pincel, que, ao tempo,
era luxo demasiado, e metia os dedos grossos na boca do paciente para
melhor lhe rapar os queixos enrugados e agrestes.
O ti' Afecto, nas folgas do seu comezinho ofício, tirava, também, dentes;
sem dor, a boticão ou alicate; punha bichas na nuca e sangrava com a
ponta dum canivete, de marca anzol, os doentes em perigo, a quem o
sangue ruim trepara fulminantemente à cabeça; compunha guarda-sóis
desconjuntados pela nortada; solava tamancos por um pataco às
pescadeiras da terra; amolava as tesouras ferrugentas aos alfaiates
remendões, seus amigos, e armava as capelas da freguesia, sobrando-lhe
ainda tempo bastante para se embebedar quase todos os santos dias, para
não perder os bons costumes, como ele dizia maliciosamente. No jogo da
bisca, ou do licas, era um barra, mesmo bêbedo como um cacho, não
havendo parceiro que o desbancasse.
Isso lhe trazia um bom rendimento em charutos de
picar, com que atulhava
o cachimbo, e meias canadas de carrascão da Bairrada.
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Era, como se vê, um homem de raras habilidades, de que a gente do seu
tempo se utilizava a preços módicos.
Nas ornamentações dos templos, então, era
duma grande utilidade, por não
haver mais ninguém que se arriscasse a ir pendurar os bambolins de seda
nas alcantiladas cimalhas do tecto da nossa igreja, marinhando foito por
uma desconjuntada escada de lanças de carunchosa madeira.
Só ele se aventurava a
tanto, e, quantas vezes, já depois de ter matado o bicho com repetidos
copinhos de aguardente bagaceira...
O ti'Afecto! − Parece-me estar a vê-lo, sentado no marco de pedra, à
esquina do seu carril, ali ao Oitão, embrulhado no coçado gabão de
saragoça, sempre resmungando, indignado,
contra os taberneiros que já não lhe queriam fiar o tabaco e a bebida, e
soltando uma praga obscena quando os garotos, de
fugida, lhe gritavam ao ouvido:
− Ó Palão, tira-me um dente!...
A sua fama, como dentista-sangrador, espalhara-se por
longe, vindo gente de toda a parte utilizar-se dos seus serviços. Essa
freguesia, era a primeira a ser atendida pelo ti' Afecto, pois, dizia
ele, pagava bem e sem regatear os seis vinténs da operação, que a
pescadeirada da terra, essa, a custo lhe dava um pataco carimbado para
matar a sede... de vinho. Despachava-a, por isso, como entendia,
aplicando-lhe, por desfastio, pedrinhas de sal ou alho pisado nos dentes
furados, recomendando-lhe bochechos de malvas com leite de jumenta, que
era, por então, receita fradesca de muita virtude...
Conta-se, até, que a certo freguês, calaceiro no pagamento, a quem as
dores não tinham abrandado com o uso daquelas mezinhas, o ti' Afecto, já
farto de o aturar sem proveito, lhe dissera assim:
− Ora ajoelhe o amigo aqui ao pé de mim. Tire o barrete,
benza-se três vezes, e diga comigo:
Dor de dentes tenho eu,
O Senhor ma tirará,
Aqui está o ti' Afecto
Que bem pouco se lhe dá...
Fora remédio santo, aquele, razão porque dali foram logo os dois à
baiuca vizinha festejar o acontecimento com uma
bebedeira de caixão à cova.
Sei outras anedotas e facécias curiosas do ti' Afecto, que não posso
aqui relatar, pelo que têm de brejeiras e apimentadas....
Ao padre João Borracha, o popular pregador, a quem o
Centurião de Águeda, que foi sempre terra de simpáticos judeus, tanto fizera arreliar em tempo por não querer arrepender-se nem quebrar a lança homicida perante a sua eloquência,
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a esse, fez o ti' Afecto a partida de lhe trocar o vinho branco
das galhetas por vinagre do mais forte, que ele bebera dum
trago sem dar pelo logro, e isto, apenas, porque o Borracha não lhe falara para auxiliar a armação da capelinha da Senhora da
Saúde, na Costa Nova, onde o padre rezava missa durante
a safra da pesca, por ter parte numa companha de arrasto.
Por sinal que por lá deu cabo de tudo o que ganhara a pregar sermões
por esse mundo de Cristo, viajando sempre a
pé, de que resultou morrer, já velho, numa triste e lamentável penúria.
Mas, o caso mais interessante e curioso em que o ti' Afecto
se notabilizou e deu brado, foi o que passo a relatar, garantindo ao
leitor a sua veracidade.
Em tempos idos, e sempre por mim recordados com saudade, os sermões da
Quaresma, realizados na nossa igreja matriz, aos domingos à tarde, eram
muito concorridos, pois os
mordomos caprichavam em trazer aqui os mais afamados pregadores. Entre
eles, salientava-se, notavelmente, o Padre Passante,
que, se não estou em erro, era de Águeda, ou seus arredores. Concorriam
muito para isso a sua excelente figura e magnífica voz, forte e bem
timbrada, atributos estes indispensáveis a todo o orador
que venha pregar na igreja de Ílhavo, que é uma das
maiores do distrito. Além disso, o padre Passante era eloquente nos seus
sermões, ao que me contavam, com grandes reptos oratórios, possuindo,
ainda, uma admirável e impressionante maneira de dizer, o que não era
vulgar naqueles já remotos tempos.
Para pregar nas cerimónias da Semana Santa, que aqui se realizavam com
grande brilho e aparato, o padre Passante era inigualável.
A Semana Santa era, de facto, muito interessante, noutros
tempos, em Ílhavo, com as suas noites de trevas, em que uma
numerosa e bem organizada orquestra executava com sentimento, e a capricho, os
Responsórios do maestro David Peres,
notável compositor do século XVIII, cujo retrato em medalhão
figura na sala de música do palácio real de Queluz.
Os efeitos melodiosos daquelas partituras eram realçados
pelas vozes dalgumas mulheres que cantavam a solo trechos,
ou lições, da autoria dos compositores Badoni, Pinto, Valério e outros.
Lá em cima, nas bancadas da capela mor, o coro dos sacerdotes entoando
os salmos era majestoso e vibrante.
As procissões revestiam-se de grande e respeitoso aparato,
salientando-se entre elas a do Enterro do Senhor, em que se incorporavam curiosos figurantes, gente escolhida pelo seu porte e
beleza, todos eles ricamente vestidos, tais como Maria
Madalena, S. João Evangelista, o Sol, a Lua, as três Marias, os
Profetas e a Verónica, que cantava na igreja e ali no meio da
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praça velha, sobre um mocho de tosca madeira, para que todos a pudessem
ver e ouvir melhor.
Era ao recolher à igreja
esse imponente e comovedor cortejo, que atravessava as ruas da vila pejadas de gente, que os
pregadores mostravam o que valiam, narrando, com voz piedosa
e cava, os tormentos, a paixão e a morte de Jesus Cristo, dirigindo-se com chorosas palavras aos figurantes, que
eles chamavam ao Tabernáculo, cada um por sua vez, para irem junto do
esquife do Senhor, que os sacerdotes para ali haviam levado
aos ombros, a dizer-lhe o derradeiro adeus... E quando o pregador, num largo e impressionante gesto, ordenava aos Profetas que
encerrassem para sempre o corpo ensanguentado do Mártir no seu túmulo
forrado de negro, e a tampa deste caía sobre ele, espalhando no espaço
um som arrepiante e tétrico, toda aquela multidão, quase só formada por
mulheres de luto, atroava os céus com um choro convulso e doloroso.
Mas, não divaguemos mais.
Em todos os sermões da Quaresma, era costume exibir-se
um grupo alegórico, a que chamavam passo, armado em camarim no trono da
capela mar da igreja. Ora, numa dessas
exposições, em cujo arranjo decorativo caprichara o armador,
auxiliado pelo ti 'Afecto, devia figurar a imagem do Senhor dos Passos,
escultura admirável, de barro, do afamado ceramista
ilhavense Anselmo Ferreira, mestre na fábrica da Vista Alegre,
e autor consagrado de outras imagens de grande merecimento artístico que
aqui possuímos.
O padre Passante, que pregava as tardes nessa Quaresma,
pensara em que, para tirar mais efeitos das suas palavras, deveria, a
certa altura do sermão, o Senhor dos Passos voltar as costas ao povo,
como reprovação e castigo por todos os
negros pecados cometidos por ele durante o ano, para, mais tarde, e já
quando tivesse arrancado aos ouvintes as lágrimas
dum sincero arrependimento, e a promessa duma nova vida de bons
costumes, o piedoso Senhor dos Passos voltar de novo
a sua santa face aos assistentes, num magnânimo gesto de perdão e misericórdia. Aquilo, conjecturava o
padre Passante, pelo
que tinha de novidade, deveria resultar interessante e patético.
Vejamos, então, o que se passou.
Para que o Senhor dos Passos conseguisse realizar as evoluções projectadas, foi preciso colocar a imagem sobre um
pedestal de madeira que girava com o auxílio de um eixo de ferro, bem
apertado com uma porca ou tarracha, como lhe
chamava o ti 'Afecto na sua pitoresca linguagem, o que se fez
debaixo de grande segredo.
No dia do sermão, pela meia tarde, o
padre Passante apeou-se
da alimária em que viajara, à porta da residência paroquial; pediu vénia
ao senhor prior, e encaminhou-se, pressuroso, para
a igreja a saber se tudo estava preparado como recomendara,
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elucidando, minuciosamente, o ti' Afecto da maneira como havia de operar
nos movimentos a imprimir à imagem, garantindo-lhe espórtula choruda
para uma boa pinga se tudo corresse a contento.
À hora marcada, e depois de entoado o
Bendito, como era
costume, começou o sermão com a igreja a trasbordar de fiéis. A prédica,
toda cheia de boa e sã moral cristã, decorreu no tom calmo, próprio da
bonomia e cordialidade usadas pelo orador.
A certa altura, porém, o
reverendo Passante modificou abruptamente a sua
piedosa atitude, o que causou estranheza. O rosto animou-se-lhe com uma
expressão dura e inusitada; a voz adquiriu um timbre agressivo,
violento, mesmo, o gesto tornou-se agitado e febril, passando o orador a
invectivar, áspera e rudemente, os ouvintes pela sua vida licenciosa. E,
voltando-se lá para cima numa atitude pragmática, gritou inflamado:
− Senhor, Senhor! Este povo, pelas suas muitas culpas espirituais e
corporais, tornou-se indigno e não merecedor da vossa presença!
Voltai-lhe, então, como justo castigo, a Vossa santa face!
E o Senhor dos Passos, obedecendo à exortação imperativa do
reverendo
Passante, e posto em movimento pelas mãos fortes do ti'Afecto, que
estava oculto pelos cortinados roxos do camarim, voltou-se lentamente,
dando as costas ao povo pecador.
Foi o fim do mundo na nossa igreja, naquele tão imprevisto
como patético momento!...
Toda aquela gente, aterrada e aflita, desatou numa estrepitosa gritaria
que se ouviu longe. O caso não era para menos, realmente.
Com efeito, o reverendo Passante fora feliz
na sua engenhosa concepção. Por isso o mesmo ficara no púlpito, numa
postura vaidosa e satisfeita, de braços erguidos ao alto, gozando o seu
triunfo!
E assim esteve algum tempo, esperando, paciente e feliz, que o povo
desse largas à sua dor, chorando amargamente o insulto sofrido e o
castigo que lhe fora aplicado. Depois, baixou lentamente os braços;
bateu as palmas com estrépito, impondo silêncio, para reatar o sermão
com gravidade, dando bons conselhos, recomendando pureza de costumes,
sem excessos nem abusos, sem invejas nem ódios, antes com um grande e
fervoroso temor de Deus... .
E como recompensa e prémio para todos, implorou num
caloroso brado:
− Senhor! Tende piedade para com esta pobre gente, que, cheia de
arrependimento, promete, com as suas lágrimas, emendar-se de todos os
seus erros pecaminosos!
E esperou... Mas, a imagem, não se moveu. Renovou, por isso, o seu
clamoroso pedido com novos argumentos e razões; o Senhor dos Passos,
contudo, permanecia imóvel.
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Voltou a pedir com mais calor, com mais vibração, num
derradeiro e angustiado apelo...
Neste momento, viu-se então
surgir lá em cima no camarim
o carão grotesco do ti'Afecto, a gritar, aflito e congestionado:
− Ó Senhor padre! Não se consuma mais, por quem é,
que o raio da tarracha emperrou e o Senhor dos Passos não
se Vira...
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Eu não sei se, por este herético desacato, a nossa igreja teria sido
interdita. O que me consta é que o ti' Afecto foi excomungado, não lhe
sendo permitido nunca mais o trabalho nas armações dos templos.
Veio a acabar, coitado, os tristes e atribulados dias da sua velhice,
ali sentado no frio e carcomido frade de pedra, à esquina do seu carril,
onde tantas vezes o vi, soltando pragas e injúrias
contra os taberneiras e os padres...
Deus lhe fale n'alma.,..
Ílhavo,
Maio de 1941.
DINIS GOMES |