Dinis Gomes, Costumes e gente de Ílhavo. Um dito do "Ti' Afecto", Vol. VII, pp. 109-114.

COSTUMES E GENTE DE ÍLHAVO

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UM DITO DO "TI' AFECTO"

O ti' Manuel Afecto, a quem a garotada turbulenta do seu tempo arreliava, a cada passo, chamando-lhe Palão, foi um dos mais curiosos e populares tipos da minha terra, de há bons cinquenta anos, que eu ainda conheci e tive ensejo de gozar nos seus ridículos e grotescos aspectos.

De muitas e variadas aptidões, no entanto o seu principal mister era o de barbeiro.

Pertencia a essa modesta e solícita geração de rapa-queixos de outros tempos, que escanhoava a cara ao freguês, ensaboando-lha, previamente, com a áspera e calosa palma da mão, à guisa de pincel, que, ao tempo, era luxo demasiado, e metia os dedos grossos na boca do paciente para melhor lhe rapar os queixos enrugados e agrestes.

O ti' Afecto, nas folgas do seu comezinho ofício, tirava, também, dentes; sem dor, a boticão ou alicate; punha bichas na nuca e sangrava com a ponta dum canivete, de marca anzol, os doentes em perigo, a quem o sangue ruim trepara fulminantemente à cabeça; compunha guarda-sóis desconjuntados pela nortada; solava tamancos por um pataco às pescadeiras da terra; amolava as tesouras ferrugentas aos alfaiates remendões, seus amigos, e armava as capelas da freguesia, sobrando-lhe ainda tempo bastante para se embebedar quase todos os santos dias, para não perder os bons costumes, como ele dizia maliciosamente. No jogo da bisca, ou do licas, era um barra, mesmo bêbedo como um cacho, não havendo parceiro que o desbancasse.

Isso lhe trazia um bom rendimento em charutos de picar, com que atulhava o cachimbo, e meias canadas de carrascão da Bairrada. / 110 /

Era, como se vê, um homem de raras habilidades, de que a gente do seu tempo se utilizava a preços módicos.

Nas ornamentações dos templos, então, era duma grande utilidade, por não haver mais ninguém que se arriscasse a ir pendurar os bambolins de seda nas alcantiladas cimalhas do tecto da nossa igreja, marinhando foito por uma desconjuntada escada de lanças de carunchosa madeira.

Só ele se aventurava a tanto, e, quantas vezes, já depois de ter matado o bicho com repetidos copinhos de aguardente bagaceira...

O ti'Afecto! − Parece-me estar a vê-lo, sentado no marco de pedra, à esquina do seu carril, ali ao Oitão, embrulhado no coçado gabão de saragoça, sempre resmungando, indignado, contra os taberneiros que já não lhe queriam fiar o tabaco e a bebida, e soltando uma praga obscena quando os garotos, de fugida, lhe gritavam ao ouvido:

− Ó Palão, tira-me um dente!...

A sua fama, como dentista-sangrador, espalhara-se por longe, vindo gente de toda a parte utilizar-se dos seus serviços. Essa freguesia, era a primeira a ser atendida pelo ti' Afecto, pois, dizia ele, pagava bem e sem regatear os seis vinténs da operação, que a pescadeirada da terra, essa, a custo lhe dava um pataco carimbado para matar a sede... de vinho. Despachava-a, por isso, como entendia, aplicando-lhe, por desfastio, pedrinhas de sal ou alho pisado nos dentes furados, recomendando-lhe bochechos de malvas com leite de jumenta, que era, por então, receita fradesca de muita virtude...

Conta-se, até, que a certo freguês, calaceiro no pagamento, a quem as dores não tinham abrandado com o uso daquelas mezinhas, o ti' Afecto, já farto de o aturar sem proveito, lhe dissera assim:

− Ora ajoelhe o amigo aqui ao pé de mim. Tire o barrete, benza-se três vezes, e diga comigo:

Dor de dentes tenho eu,
O Senhor ma tirará,
Aqui está o ti' Afecto
Que bem pouco se lhe dá...


Fora remédio santo, aquele, razão porque dali foram logo os dois à baiuca vizinha festejar o acontecimento com uma bebedeira de caixão à cova.

Sei outras anedotas e facécias curiosas do ti' Afecto, que não posso aqui relatar, pelo que têm de brejeiras e apimentadas....

Ao padre João Borracha, o popular pregador, a quem o Centurião de Águeda, que foi sempre terra de simpáticos judeus, tanto fizera arreliar em tempo por não querer arrepender-se nem quebrar a lança homicida perante a sua eloquência, / 111 / a esse, fez o ti' Afecto a partida de lhe trocar o vinho branco das galhetas por vinagre do mais forte, que ele bebera dum trago sem dar pelo logro, e isto, apenas, porque o Borracha não lhe falara para auxiliar a armação da capelinha da Senhora da Saúde, na Costa Nova, onde o padre rezava missa durante a safra da pesca, por ter parte numa companha de arrasto.

Por sinal que por lá deu cabo de tudo o que ganhara a pregar sermões por esse mundo de Cristo, viajando sempre a pé, de que resultou morrer, já velho, numa triste e lamentável penúria.

Mas, o caso mais interessante e curioso em que o ti' Afecto se notabilizou e deu brado, foi o que passo a relatar, garantindo ao leitor a sua veracidade.

Em tempos idos, e sempre por mim recordados com saudade, os sermões da Quaresma, realizados na nossa igreja matriz, aos domingos à tarde, eram muito concorridos, pois os mordomos caprichavam em trazer aqui os mais afamados pregadores. Entre eles, salientava-se, notavelmente, o Padre Passante, que, se não estou em erro, era de Águeda, ou seus arredores. Concorriam muito para isso a sua excelente figura e magnífica voz, forte e bem timbrada, atributos estes indispensáveis a todo o orador que venha pregar na igreja de Ílhavo, que é uma das maiores do distrito. Além disso, o padre Passante era eloquente nos seus sermões, ao que me contavam, com grandes reptos oratórios, possuindo, ainda, uma admirável e impressionante maneira de dizer, o que não era vulgar naqueles já remotos tempos.

Para pregar nas cerimónias da Semana Santa, que aqui se realizavam com grande brilho e aparato, o padre Passante era inigualável.

A Semana Santa era, de facto, muito interessante, noutros tempos, em Ílhavo, com as suas noites de trevas, em que uma numerosa e bem organizada orquestra executava com sentimento, e a capricho, os Responsórios do maestro David Peres, notável compositor do século XVIII, cujo retrato em medalhão figura na sala de música do palácio real de Queluz.

Os efeitos melodiosos daquelas partituras eram realçados pelas vozes dalgumas mulheres que cantavam a solo trechos, ou lições, da autoria dos compositores Badoni, Pinto, Valério e outros.

Lá em cima, nas bancadas da capela mor, o coro dos sacerdotes entoando os salmos era majestoso e vibrante.

As procissões revestiam-se de grande e respeitoso aparato, salientando-se entre elas a do Enterro do Senhor, em que se incorporavam curiosos figurantes, gente escolhida pelo seu porte e beleza, todos eles ricamente vestidos, tais como Maria Madalena, S. João Evangelista, o Sol, a Lua, as três Marias, os Profetas e a Verónica, que cantava na igreja e ali no meio da / 112 / praça velha, sobre um mocho de tosca madeira, para que todos a pudessem ver e ouvir melhor.

Era ao recolher à igreja esse imponente e comovedor cortejo, que atravessava as ruas da vila pejadas de gente, que os pregadores mostravam o que valiam, narrando, com voz piedosa e cava, os tormentos, a paixão e a morte de Jesus Cristo, dirigindo-se com chorosas palavras aos figurantes, que eles chamavam ao Tabernáculo, cada um por sua vez, para irem junto do esquife do Senhor, que os sacerdotes para ali haviam levado aos ombros, a dizer-lhe o derradeiro adeus... E quando o pregador, num largo e impressionante gesto, ordenava aos Profetas que encerrassem para sempre o corpo ensanguentado do Mártir no seu túmulo forrado de negro, e a tampa deste caía sobre ele, espalhando no espaço um som arrepiante e tétrico, toda aquela multidão, quase só formada por mulheres de luto, atroava os céus com um choro convulso e doloroso.

Mas, não divaguemos mais.

Em todos os sermões da Quaresma, era costume exibir-se um grupo alegórico, a que chamavam passo, armado em camarim no trono da capela mar da igreja. Ora, numa dessas exposições, em cujo arranjo decorativo caprichara o armador, auxiliado pelo ti 'Afecto, devia figurar a imagem do Senhor dos Passos, escultura admirável, de barro, do afamado ceramista ilhavense Anselmo Ferreira, mestre na fábrica da Vista Alegre, e autor consagrado de outras imagens de grande merecimento artístico que aqui possuímos.

O padre Passante, que pregava as tardes nessa Quaresma, pensara em que, para tirar mais efeitos das suas palavras, deveria, a certa altura do sermão, o Senhor dos Passos voltar as costas ao povo, como reprovação e castigo por todos os negros pecados cometidos por ele durante o ano, para, mais tarde, e já quando tivesse arrancado aos ouvintes as lágrimas dum sincero arrependimento, e a promessa duma nova vida de bons costumes, o piedoso Senhor dos Passos voltar de novo a sua santa face aos assistentes, num magnânimo gesto de perdão e misericórdia. Aquilo, conjecturava o padre Passante, pelo que tinha de novidade, deveria resultar interessante e patético.

Vejamos, então, o que se passou.

Para que o Senhor dos Passos conseguisse realizar as evoluções projectadas, foi preciso colocar a imagem sobre um pedestal de madeira que girava com o auxílio de um eixo de ferro, bem apertado com uma porca ou tarracha, como lhe chamava o ti 'Afecto na sua pitoresca linguagem, o que se fez debaixo de grande segredo.

No dia do sermão, pela meia tarde, o padre Passante apeou-se da alimária em que viajara, à porta da residência paroquial; pediu vénia ao senhor prior, e encaminhou-se, pressuroso, para a igreja a saber se tudo estava preparado como recomendara, / 113 / elucidando, minuciosamente, o ti' Afecto da maneira como havia de operar nos movimentos a imprimir à imagem, garantindo-lhe espórtula choruda para uma boa pinga se tudo corresse a contento.

À hora marcada, e depois de entoado o Bendito, como era costume, começou o sermão com a igreja a trasbordar de fiéis. A prédica, toda cheia de boa e sã moral cristã, decorreu no tom calmo, próprio da bonomia e cordialidade usadas pelo orador.

A certa altura, porém, o reverendo Passante modificou abruptamente a sua piedosa atitude, o que causou estranheza. O rosto animou-se-lhe com uma expressão dura e inusitada; a voz adquiriu um timbre agressivo, violento, mesmo, o gesto tornou-se agitado e febril, passando o orador a invectivar, áspera e rudemente, os ouvintes pela sua vida licenciosa. E, voltando-se lá para cima numa atitude pragmática, gritou inflamado:

− Senhor, Senhor! Este povo, pelas suas muitas culpas espirituais e corporais, tornou-se indigno e não merecedor da vossa presença! Voltai-lhe, então, como justo castigo, a Vossa santa face!

E o Senhor dos Passos, obedecendo à exortação imperativa do reverendo Passante, e posto em movimento pelas mãos fortes do ti'Afecto, que estava oculto pelos cortinados roxos do camarim, voltou-se lentamente, dando as costas ao povo pecador.

Foi o fim do mundo na nossa igreja, naquele tão imprevisto como patético momento!...

Toda aquela gente, aterrada e aflita, desatou numa estrepitosa gritaria que se ouviu longe. O caso não era para menos, realmente.

Com efeito, o reverendo Passante fora feliz na sua engenhosa concepção. Por isso o mesmo ficara no púlpito, numa postura vaidosa e satisfeita, de braços erguidos ao alto, gozando o seu triunfo!

E assim esteve algum tempo, esperando, paciente e feliz, que o povo desse largas à sua dor, chorando amargamente o insulto sofrido e o castigo que lhe fora aplicado. Depois, baixou lentamente os braços; bateu as palmas com estrépito, impondo silêncio, para reatar o sermão com gravidade, dando bons conselhos, recomendando pureza de costumes, sem excessos nem abusos, sem invejas nem ódios, antes com um grande e fervoroso temor de Deus... .

E como recompensa e prémio para todos, implorou num caloroso brado:

− Senhor! Tende piedade para com esta pobre gente, que, cheia de arrependimento, promete, com as suas lágrimas, emendar-se de todos os seus erros pecaminosos!
 

E esperou... Mas, a imagem, não se moveu. Renovou, por isso, o seu clamoroso pedido com novos argumentos e razões; o Senhor dos Passos, contudo, permanecia imóvel. / 114 /

Voltou a pedir com mais calor, com mais vibração, num derradeiro e angustiado apelo...

Neste momento, viu-se então surgir lá em cima no camarim o carão grotesco do ti'Afecto, a gritar, aflito e congestionado:

− Ó Senhor padre! Não se consuma mais, por quem é, que o raio da tarracha emperrou e o Senhor dos Passos não se Vira...

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Eu não sei se, por este herético desacato, a nossa igreja teria sido interdita. O que me consta é que o ti' Afecto foi excomungado, não lhe sendo permitido nunca mais o trabalho nas armações dos templos.

Veio a acabar, coitado, os tristes e atribulados dias da sua velhice, ali sentado no frio e carcomido frade de pedra, à esquina do seu carril, onde tantas vezes o vi, soltando pragas e injúrias contra os taberneiras e os padres...

Deus lhe fale n'alma.,..

Ílhavo, Maio de 1941.

DINIS GOMES

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