Joaquim Soares de Sousa Baptista, A ponte do Alfusqueiro, Vol. VII, pp. 42-48.

A PONTE DO ALFUSQUEIRO

ALFUSQUEIRO: de onde virá este nome? Possivelmente, do árabe alfustuk, arbusto anacardeáceo, Pistacia vera, seja o «pistachier» dos franceses. Os árabes, encontrando nas encostas do rio a aroeira ou lentisco verdadeiro, Pistacia lentiscus, planta arbustiva de certo desenvolvimento, de forma e frutos bastante semelhantes aos daquele, a esta teriam dado a referida denominação de alfustuk, deIa derivando alfustuqueiro e depois alfusqueiro, nome que se estendeu também ao rio. Alfostiqueiro e alfostico deverão mesmo ter sido os designativos pelos quais, respectivamente, durante vário tempo, foram conhecidos o lentisco verdadeiro e seu fruto. (Vid dic. de A. MORENO).

Fig. 1 − A ponte e um trecho da estrada nova na margem esquerda.

É verdade que pelas circunvizinhanças da ponte procurámos este último, nenhum exemplar nos sendo dado ver. Terá desaparecido em virtude da pertinaz actividade do devastador carvoeiro. Encontrámos, sim, o lentisco bastardo, Phillyrea angustifolia, e os adernos, Ph. latifolia e Ph. media.

Nasce o rio em plena região lafonense, nas proximidades de Vermilhas, freguesia de Carvalhal de Vermilhas, do concelho de Vouzela, vertente setentrional do Caramulo, surgindo de entre aflorações / 43 / graníticas. Caminha de sul para norte, mas a nordeste de Campia inflecte para sudoeste, gizando curvas apertadas e pitorescas até Bolfiar, onde recebe as águas do Agadão. Ao passar face mas um pouco distante das Talhadas e até alcançar a linha de A-dos-Ferreiros, serve-lhe de leito a formação arcaica, de onde o respectivo vale corre sobre terrenos do período Câmbrico, talvez com maior propriedade parece que agora atribuído ao Algônquico, ladeado, todavia, a distância de poucos metros, pela margem direita e junto à referida povoação de Bolfiar, aqui perdendo o nome para adquirir o de Águeda, que é um afluente do Agadão, por pequeno retalho de formação pérmica.

A caminho de A dos Ferreiros para Préstimo, Macieira de Alcoba, S. João do Monte, Paredes do Guardão, Vale de Besteiros, é o Alfusqueiro atravessado por larga ponte, de um só arco, alto e bem lançado, mas não em volta perfeita, que pende um tudo nada para a linha ogival, o que lhe realça a beleza. É de granito a cantaria abobadal, que dizem as gentes dos arredores ter vindo de Macieira de Alcoba, que é onde o há de estrutura semelhante; e da mesma cantaria são revestidos os anteparos ou esporões que fortalecem os encontros, vendo-se ainda  nestes, aqui e além, um ou outro paralelepípedo da dita pedra, polidos e com aspecto de gastos, denotando proveniência de construção anterior. Do plano dos aludidos anteparos, junto ao arco, erguem-se os respectivos muros em feitio de contraforte a morrer em vária altura; apêndices estes, já um tanto prejudicados pelo tempo, constituindo mais amplo reforço a toda a edificação. Reforço que na margem esquerda, onde mais violenta é a arremetida das águas, foi acrescido pelo levantamento de três botaréus − um a montante e dois a jusante. Tinha a ponte guardas que eram superiormente corridas por lájeas graníticas, mas estas, pela incidência dos meteoros e da mão perversa do homem, desapareceram, caindo o material ao rio, e deste levadas aquelas lájeas pelos que delas necessitaram. Há, porém, uns trinta anos, mandou a Câmara guarnecê-la com novos parapeitos, e mais ordenou ainda, faz poucos meses, forte reparo no encontro da margem direita, que ameaçava ruir com prejuízo de toda a obra.

Mede o vão 19,2 m  de comprimento, 14,5 de altura máxima, contada do plano do nascimento do encontro direito, seja do nível médio da superfície da corrente, 6,5 m de largura entre as arestas externas das arquivoltas; o tabuleiro estende-se por 55 metros, de riba a riba, e tem de largura útil 5,4 m e, com as guardas, 6,5 m. A cantaria das arquivoltas é muito irregular, não faz moldura, e só para melhor compreensão a estas nos referimos.

Ponte romana, árabe?

Diversa tem sido a opinião dos visitantes, atribuindo-lhe / 44 / ora uma ora outra origem, com parecer de alguns, todavia, de que representará fabrico bem mais recente. Nisto, quis um dia o acaso que, em conversa com o Sr. Padre Manuel Costa, de A dos Ferreiros, vindo à baila a obscura antiguidade daquele magnífico trabalho que representa a mencionada ponte, fizesse o mesmo Senhor referência à ponte velha. − Ponte velha? Mas então teria existido outra ponte? − Não sei, respondeu; posso, porém, afirmar-lhe, isso sim, que o povo de tal maneira denomina um sítio localizado pouco abaixo da actual.

 

 
 

Fig. 2 − Outro aspecto da ponte

 

Impressionado por semelhante revelação, logo nos demos pressa em verificar o que sobre o assunto haveria escrito PINHO LEAL, encontrando nas informações relativas a A dos Ferreiros / 45 / o seguinte: «Também nesta aldeia de Ferreiros havia uma alta e antiga ponte, de um só arco, que ainda existia quando o padre CARVALHO escreveu a sua Corografia. Foi destruída por uma enchente no fim do século 18.º»(1). Não menciona o rio, mas a outra ponte não pode dizer respeito o exposto senão à do Alfusqueiro, pois no MameI, curso que flui à direita da mesma localidade, não perdura vestígio por aquelas alturas, nem memória no povo de qualquer ponte com semelhante grandeza.

 

Fig. 3

O que resta do encontro esquerdo da antiga ponte

 

Muro de suporte num trecho da antiga estrada romana, ou árabe.

Instigado pelos relatos do desaparecido arco, cuidámos então de descobrir algum indício ou ouvir narrativa que nos trouxesse mais luz sobre a possível realidade de sua passada existência, nada tendo verificado ou colhido durante largo tempo, que amiudadas visitas ao local nos não permitia a distância que deste separa nossa morada. Não desanimámos, contudo, e um dia, por felicidade, tivemos a dita de ali deparar com o amável proprietário de um lagar de azeite sito nas proximidades, ao tempo em laboração, que, perguntado sobre o assunto, logo nos informou que da velha ponte ainda se podia observar o resto / 46 / do paredão da margem esquerda, prontificando-se, da melhor vontade, a acompanhar-nos até ao pé do mesmo para que pudéssemos examiná-lo. E ali chegado, presenciámos o referido bocado de paredão e ainda um bloco de alvenaria no leito do rio, próximo da margem, de um e outro se podendo fazer juízo pelos documentos fotográficos n.os 3 e 4.

 

Fig. 4

Corte na rocha para ampliação do local necessário à construção da ponte velha.

 

Um bloco de alvenaria da velha ponte.

Não deixa o primeiro dúvida alguma sobre o fim a que serviu, pois conta largura mais que suficiente para sustentáculo de amplo tabuleiro e tem prolongamentos laterais oblíquos característicos de semelhantes construções, e o segundo somente àquela poderia ter pertencido, pois, por sua grandeza, para ali não é de admitir que fosse arrastado, nem há conhecimento de obra alguma a montante, de vulto correspondente. O que ocasiona certo reparo é o facto de não ser o primeiro remanescente feito de cantaria granítica, pois tudo leva a crer que o material deste género da extinta ponte tenha sido utilizado na feitura da actual; mas talvez que semelhante remanescente represente encontro de pequeno olhal de descarga para a eventualidade de grandes cheias. E, assim, o bloco de alvenaria poderá muito bem ter pertencido ao encontro do grande arco.

Larga amplitude conta o rio no local onde teve assento a antiga ponte, pelo que nos perguntámos, apesar de aceitável a hipótese acima exarada, o motivo da preferência que lhe foi atribuída pelos construtores, e a explicação logo se nos proporcionou ao examinar o trecho que o dito local separa daquele onde se encontra situada a nova ponte, uma recta de curva a contra-curva, vindo nesta a corrente bater com impetuosidade / 47 / e forte poder demolidor, a qual, por ocasião das maiores enchentes, foi descamando a base do respectivo encontro, fazendo, afinal, por uma daquelas, ruir este e precipitar no leito potâmico todo o corpo da construção, e ainda determinar o desaparecimento da serventia que pelo mesmo lado marginava o rio na extensão de algumas dezenas de metros. Daí, o grande alargamento do álveo, que presentemente se nota, e o motivo por que, na margem direita, daquela passada obra se não depara vestígio algum.

Fig. 5 − Um meandro do rio, vendo-se à direita a quinta da Serrascosa.

Pelas demais ilustrações que esta sucinta noticia acompanham, podem apreciar-se os recortes dos montes e os meandros que ao caudal sulcaram as forças naturais em bem restrito espaço, com as antigas vias que deram acesso à primitiva ponte, e as que serviram e mais as que ora descem à sucessora; conjunto prenhe de selvagem beleza que sobremaneira namora os amantes dos grandes quadros da Terra. E dizer-se que foi por ali que vultoso trânsito de romanos e árabes se operou em demanda e regresso dos férteis agros do Dão, que, por lá se transportou farta mercadoria no dorso de inumeráveis muares conduzidas pelo almocreve destemido, a passo tardo e sonolento por noites cheias de claridade trazida pelas cestadas de luz que o Sol, nostálgico das paisagens da ridente Lusitânia, amorosamente lhe manda pela prateada estação da Lua, ou pisando firme o chão agreste dos caminhos eriçados de pedregulho carreado pelas águas da tempestade, a fugir medonha ao longo dos vales que a escuridão transforma em profundos abismos... / 48 /

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Se resulta da observação e de algumas notas colhidas na leitura e no colóquio o nosso relato, não corresponde este, todavia, ao que a Lenda nos transmite. Senão, oiçamo-la através da palavra elegante do saudoso ADOLFO PORTELA em seu livro Águeda.

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Logo lá em cima, onde o Alfusqueiro se bate contra as penedias da serra, e onde uma velha ponte de cantaria se armou há muitos séculos para serventia dos passageiros, o povo, como visse a desmesurada largura do seu lindo arco que vai de riba a riba num salto arrojado, lá entendeu na sua que tal obra não podia ser de gente cristã e, daí, atirou com a responsabilidade do trabalho para as costas do Demónio. No dizer da lenda, o Diabo do Alfusqueiro contratou com um senhor cristão lá dos sítios a construção da ponte, a qual, depois de pronta e acabada, havia de ser paga com a própria alma do cristão, e que tudo se
remataria à meia noite do Natal, ao cantar do galo. Fez-se o respectivo assinado, que o senhor cristão subscreveu logo com a tinta do seu próprio sangue, como é lá do protocolo.

Entretanto, acaba e não acaba a obra, como o tal senhor cristão se doesse muito da paga que ia dar por aquela empreitada, veio de lá uma Fada Boa ensinar-lhe a maneira de se livrar airosamente do compromisso, sem se privar ao mesmo tempo de ficar com a obra pronta e perfeita.

− Toma lá este ovo − disse-lhe assim. − Como a ponte há-de ser rematada à hora certa da meia noite, tu vigia bem os últimos trabalhos, e, mal vires o Demónio colocar a derradeira pedra, atira com o ovo pela ponte fora e tudo acabará em bem.

Assim se fez. Quando o demónio, com toda a malta dos seus serviçais, num grande alarido de triunfo, se dispunha a assentar a última pedra, o protegido da Fada Boa saca do ovo, arremessa-o ao longo do tabuleiro, e logo surgiu de sobre a ponte um lindo galo, todo emplumado e de crista alçada, cócorocó, a anunciar a meia noite.

− E o senhor cristão tomou posse da ponte, e o Diabo do Alfusqueiro sumiu-se logo lá para, as funduras negras do rio onde moram as sombras misteriosas que os olhos dele alumiaram como um relâmpago de peste...

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JOAQUIM SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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(1)Decerto, lapso tipográfico, pois, havendo sido a Corografia do Padre CARVALHO impressa em 1702, e escrita, portanto, alguns anos antes, quando ainda existia a velha ponte, é provável ter esta derruído no decorrer do último quinquénio do século XVII. Demais, se houvera declinado tão pouco tempo como aquele que vai dos fins do século XVIlI aos nossos dias, deveria na tradição dos lugares vizinhos perdurar a memória da enchente que levou aquela e a data em que foi levantada a sucessora.

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