ALFUSQUEIRO: de onde virá
este nome? Possivelmente,
do árabe alfustuk, arbusto anacardeáceo, Pistacia vera, seja o «pistachier» dos franceses. Os árabes, encontrando nas encostas do rio a aroeira ou
lentisco
verdadeiro, Pistacia lentiscus, planta arbustiva de certo desenvolvimento, de forma e frutos bastante semelhantes aos daquele,
a esta teriam dado a referida denominação de alfustuk, deIa
derivando alfustuqueiro e depois alfusqueiro, nome que se estendeu
também ao rio. Alfostiqueiro e alfostico deverão mesmo ter sido os designativos pelos
quais, respectivamente, durante vário
tempo, foram conhecidos o lentisco verdadeiro e seu fruto. (Vid dic.
de A. MORENO).
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Fig. 1 − A ponte e um trecho da estrada nova na margem esquerda. |
É verdade que pelas circunvizinhanças da ponte
procurámos este último,
nenhum exemplar
nos sendo dado ver. Terá desaparecido em virtude da pertinaz actividade
do devastador carvoeiro. Encontrámos,
sim, o lentisco bastardo, Phillyrea angustifolia, e os adernos,
Ph. latifolia e Ph. media.
Nasce o rio em
plena região lafonense, nas proximidades de Vermilhas, freguesia de Carvalhal de Vermilhas, do concelho de Vouzela,
vertente setentrional do Caramulo, surgindo de entre aflorações
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graníticas. Caminha de sul para norte, mas a nordeste de Campia inflecte
para sudoeste, gizando curvas apertadas e pitorescas até Bolfiar, onde
recebe as águas do Agadão. Ao passar face mas um pouco distante das
Talhadas e até alcançar a linha de A-dos-Ferreiros, serve-lhe de leito a
formação arcaica, de onde o respectivo vale corre sobre terrenos do
período Câmbrico, talvez com maior propriedade parece que agora
atribuído ao Algônquico, ladeado, todavia, a distância de poucos metros,
pela margem direita e junto à referida povoação de Bolfiar, aqui
perdendo o nome para adquirir o de Águeda, que é um afluente do Agadão,
por pequeno retalho de formação pérmica.
A caminho de A dos Ferreiros
para Préstimo, Macieira de Alcoba, S. João do Monte, Paredes do Guardão,
Vale de Besteiros, é o Alfusqueiro atravessado por larga ponte, de um só
arco, alto e bem lançado, mas não em volta perfeita, que pende um tudo
nada para a linha ogival, o que lhe realça a beleza. É de granito a
cantaria abobadal, que dizem as gentes dos arredores ter vindo de
Macieira de Alcoba, que é onde o há de estrutura semelhante; e da mesma
cantaria são revestidos os anteparos ou esporões que fortalecem os
encontros, vendo-se ainda nestes, aqui e além, um ou outro
paralelepípedo da dita pedra, polidos e com aspecto de gastos, denotando
proveniência de construção anterior. Do plano dos aludidos anteparos,
junto ao arco, erguem-se os respectivos muros em feitio de contraforte a
morrer em vária altura; apêndices estes, já um tanto prejudicados pelo
tempo, constituindo mais amplo reforço a toda a edificação. Reforço que
na margem esquerda, onde mais violenta é a arremetida das águas, foi
acrescido pelo levantamento de três botaréus − um a montante e dois a
jusante. Tinha a ponte guardas que eram superiormente corridas por
lájeas graníticas, mas estas, pela incidência dos meteoros e da mão
perversa do homem, desapareceram, caindo o material ao rio, e deste
levadas aquelas lájeas pelos que delas necessitaram. Há, porém, uns
trinta anos, mandou a Câmara guarnecê-la com novos parapeitos, e mais
ordenou ainda, faz poucos meses, forte reparo no encontro da margem
direita, que ameaçava ruir com prejuízo de toda a obra.
Mede o vão 19,2 m de
comprimento, 14,5 de altura máxima, contada do plano do nascimento do
encontro direito, seja do nível médio da superfície da corrente, 6,5 m
de largura entre as arestas externas das arquivoltas; o tabuleiro
estende-se por 55 metros, de riba a riba, e tem de largura útil 5,4 m e,
com as guardas, 6,5 m. A cantaria das arquivoltas é muito irregular, não
faz moldura, e só para melhor compreensão a estas nos referimos.
Ponte romana, árabe?
Diversa tem sido a opinião
dos visitantes, atribuindo-lhe
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ora uma ora outra origem, com parecer de alguns, todavia, de que
representará fabrico bem mais recente. Nisto, quis um dia o acaso que,
em conversa com o Sr. Padre Manuel Costa, de A dos Ferreiros, vindo à
baila a obscura antiguidade daquele magnífico trabalho que representa a
mencionada ponte, fizesse o mesmo Senhor referência à ponte velha. −
Ponte velha? Mas então teria existido outra ponte? − Não sei, respondeu;
posso, porém, afirmar-lhe, isso sim, que o povo de tal maneira denomina
um sítio localizado pouco abaixo da actual.
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Fig. 2 − Outro aspecto da ponte |
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Impressionado por semelhante
revelação, logo nos demos pressa em verificar o que sobre o assunto
haveria escrito PINHO LEAL, encontrando nas informações relativas a A
dos Ferreiros
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o seguinte: «Também nesta aldeia de Ferreiros havia uma alta e antiga ponte, de um
só arco, que ainda existia quando o padre CARVALHO escreveu a sua
Corografia. Foi destruída por uma enchente no
fim do século 18.º»(1). Não menciona o rio, mas
a outra ponte não pode dizer respeito o exposto senão à do Alfusqueiro, pois no MameI, curso que
flui à direita da mesma
localidade, não perdura vestígio por aquelas alturas, nem memória no povo de qualquer ponte com semelhante grandeza.
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Fig. 3 |
O
que resta do encontro esquerdo da antiga ponte |
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Muro de suporte num trecho da antiga estrada romana, ou árabe.
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Instigado pelos relatos do desaparecido arco, cuidámos
então de descobrir algum indício ou ouvir narrativa que nos trouxesse
mais luz sobre a possível realidade de sua passada existência, nada
tendo verificado ou colhido durante largo tempo,
que amiudadas visitas ao local nos não permitia a distância que
deste separa nossa morada. Não desanimámos, contudo, e um
dia, por felicidade, tivemos a dita de ali deparar com o amável
proprietário de um lagar de azeite sito nas proximidades, ao
tempo em laboração, que, perguntado sobre o assunto, logo nos informou
que da velha ponte ainda se podia observar o resto
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do paredão da margem esquerda, prontificando-se, da melhor
vontade, a acompanhar-nos até ao pé do mesmo para que
pudéssemos examiná-lo. E ali chegado, presenciámos o referido bocado de paredão e ainda um bloco de alvenaria no leito
do rio, próximo da margem, de um e outro se podendo fazer
juízo pelos documentos fotográficos n.os 3 e 4.
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Fig. 4 |
Corte na rocha para ampliação do local necessário à construção da
ponte velha. |
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Um
bloco de alvenaria da velha ponte. |
Não deixa o primeiro dúvida alguma sobre o fim a que
serviu, pois conta largura mais que suficiente para sustentáculo
de amplo tabuleiro e tem prolongamentos laterais oblíquos
característicos de semelhantes construções, e o segundo somente
àquela poderia ter pertencido, pois, por sua grandeza, para ali
não é de admitir que fosse arrastado, nem há conhecimento de
obra alguma a montante, de vulto correspondente. O que ocasiona certo reparo é o facto de não ser
o primeiro remanescente
feito de cantaria granítica, pois tudo leva a crer que o material
deste género da extinta ponte tenha sido utilizado na feitura da
actual; mas talvez que semelhante remanescente represente
encontro de pequeno olhal de descarga para a eventualidade de
grandes cheias. E, assim, o bloco de alvenaria poderá muito
bem ter pertencido ao encontro do grande arco.
Larga amplitude conta o rio no local onde teve assento a
antiga ponte, pelo que nos perguntámos, apesar de aceitável a
hipótese acima exarada, o motivo da preferência que lhe foi
atribuída pelos construtores, e a explicação logo se nos proporcionou ao
examinar o trecho que o dito local separa daquele
onde se encontra situada a nova ponte, uma recta de curva a contra-curva, vindo nesta a corrente bater com impetuosidade
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47 / e forte poder demolidor, a qual, por ocasião das maiores enchentes, foi descamando a base do respectivo encontro, fazendo, afinal,
por uma daquelas, ruir este e precipitar no leito potâmico todo o corpo da construção, e ainda determinar o desaparecimento da serventia que pelo mesmo lado marginava o rio na extensão de algumas
dezenas de metros. Daí, o grande alargamento do álveo, que presentemente se nota, e o motivo por que, na margem direita,
daquela passada obra se não depara vestígio algum.
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Fig. 5 − Um meandro do rio, vendo-se à direita a quinta da
Serrascosa. |
Pelas demais ilustrações que esta sucinta noticia acompanham, podem apreciar-se os recortes dos montes e os meandros
que ao caudal sulcaram as forças naturais em bem restrito espaço, com as
antigas vias que deram acesso à primitiva ponte,
e as que serviram e mais as que ora descem à sucessora; conjunto prenhe
de selvagem beleza que sobremaneira namora os amantes dos grandes
quadros da Terra. E dizer-se que foi por ali que vultoso trânsito de
romanos e árabes se operou em demanda e regresso dos férteis agros do
Dão, que, por lá se transportou farta mercadoria no dorso de inumeráveis muares conduzidas pelo almocreve destemido, a passo tardo e
sonolento por noites cheias de claridade trazida pelas cestadas de luz
que o Sol, nostálgico das paisagens da ridente Lusitânia, amorosamente
lhe manda pela prateada estação da Lua, ou pisando firme o chão agreste
dos caminhos eriçados de pedregulho carreado pelas águas da tempestade, a fugir medonha ao longo
dos vales que a escuridão transforma em profundos abismos...
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Se resulta da observação e de algumas notas colhidas na
leitura e no colóquio o nosso relato, não corresponde este,
todavia, ao que a Lenda nos transmite. Senão, oiçamo-la através da
palavra elegante do saudoso ADOLFO PORTELA em seu
livro Águeda.
«
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Logo lá em cima, onde o Alfusqueiro se bate contra as
penedias da serra, e onde uma velha ponte de cantaria se armou
há muitos séculos para serventia dos passageiros, o povo, como visse a
desmesurada largura do seu lindo arco que vai de riba
a riba num salto arrojado, lá entendeu na sua que tal obra não
podia ser de gente cristã e, daí, atirou com a responsabilidade
do trabalho para as costas do Demónio. No dizer da lenda, o Diabo do Alfusqueiro contratou com um senhor
cristão lá dos
sítios a construção da ponte, a qual, depois de pronta e acabada,
havia de ser paga com a própria alma do cristão, e que tudo se
remataria à meia noite do Natal, ao cantar do galo. Fez-se o
respectivo assinado, que o senhor cristão subscreveu logo com
a tinta do seu próprio sangue, como é lá do protocolo.
Entretanto, acaba e não acaba a obra, como o tal senhor
cristão se doesse muito da paga que ia dar por aquela empreitada, veio de lá uma Fada Boa ensinar-lhe a maneira de se
livrar airosamente do compromisso, sem se privar ao mesmo
tempo de ficar com a obra pronta e perfeita.
− Toma lá este ovo − disse-lhe assim.
− Como a ponte
há-de ser rematada à hora certa da meia noite, tu vigia bem os
últimos trabalhos, e, mal vires o Demónio colocar a derradeira pedra,
atira com o ovo pela ponte fora e tudo acabará em bem.
Assim se fez. Quando o demónio, com toda a malta dos seus serviçais, num
grande alarido de triunfo, se dispunha a assentar a última pedra, o
protegido da Fada Boa saca do ovo,
arremessa-o ao longo do tabuleiro, e logo surgiu de sobre a ponte um
lindo galo, todo emplumado e de crista alçada, cócorocó, a anunciar a
meia noite.
− E o senhor cristão tomou posse da ponte, e o Diabo do Alfusqueiro sumiu-se logo lá para, as funduras negras do rio
onde moram as sombras misteriosas que os olhos dele alumiaram como um
relâmpago de peste...
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JOAQUIM SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |