VIMOS
o âmbito e a situação
do vestuário na Etnografia,
limitámos a área do presente esboço, e enumerámos os elementos de que
principalmente nos socorreremos.
A estes, vieram, entretanto, juntar-se duas novas fontes de informação, de expressivo significado qualquer delas, que
desejamos desde já recensear, apesar de ocorridas depois
de iniciada esta publicação.
Queremos referir-nos ao « cortejo regionalista e folclórico das
freguesias do concelho» da Figueira da Foz, efectuado em 31
de Julho de 1938, modesta mas curiosa demonstração da vida
municipal onde a evolução do seu trajo desde meados do século XIX se
podia observar; e muito principalmente, ao
grande «cortejo folclórico, etnográfico e de Trabalho», de 23
de Abril de 1939, em Aveiro, para encerramento da Feira de
Março deste ano.
Como vimos acima, esboçara-se já em 1938 uma demonstração folclórica distrital em Aveiro, proporcionando muitos
ensinamentos a quem desejasse estudar o trajo desta região
administrativa; mas em 1939 assumiu outras proporções o desfile.
A circular então distribuída fixava-lhe as intenções, dizendo:
«O cortejo deste ano, embora ensaio ainda para ulterior e definitiva organização, não
será já, apenas, uma festa de pitoresco
e cor regional; procurará ir mais além, numa demonstração do valor
económico, das aptidões de trabalho e da cultura e civilização próprias dos povos
que, habitando a terra beira-marinha,
nela marcaram a sua individualidade.
Tudo o que defina a actividade no labor regional
e o carácter,
a fisionomia, o temperamento, o sentimento ou o feitio peculiar
do nosso povo, tudo o que documente a modalidade da sua adaptação ao meio geográfico e o distingue dos outros povos pelos
/ 60 /
seus usos, costumes, práticas é utensílios de trabalho, tradições e
diversões, tem cabimento neste desfile, desde que se confine em digna,
adequada e expressiva representação.
. . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O cortejo popular distrital será, pois, um
certame de costumes e de formas e modalidades de trabalho dos povos que para cá das
serras da Beira Alta, a um e outro lado do Vouga, olham para o mar e
vivem na terra tão variada de aspectos, recursos e
produções, deste grande e belo anfiteatro da Pátria Portuguesa
que é o Distrito de Aveiro.»
Noutro impresso, distribuído na ocasião, estabelecia-se,
mesmo, um importante programa etnográfico que muito elevava a finalidade do cortejo, evitando que viesse a ser considerado
mero espectáculo para o povo e pretendendo extrair dele preciosas
conclusões de natureza científica. Merece absolutamente ficar registado
de forma menos efémera o que no referido impresso os seus organizadores se propunham observar:
«O cortejo Distrital-Regional, no seu conjunto, procura responder às seguintes perguntas:
− Como vivem as populações que habitam os concelhos, as freguesias ou os
lugares do distrito de Aveiro?
− Que recursos lhes oferece a Terra, considerada como meio
geográfico?
− Que influência exercem o mar, a ria, os rios, as Planícies,
as colinas e as montanhas no viver do Povo?
− Como utiliza o Povo os recursos da Terra que habita?
− Quais as matérias primas e os produtos?
− Como se defende das contrariedades climáticas e do meio
geográfico?
− Quais os seus instrumentos e utensílios de trabalho nas
diversas profissões ligadas à Terra ou tradicionais na região, no
concelho, na freguesia ou no lugar?
− Especialmente, quais os tipos de enxadas, cestos, canastras,
taleigos, vasilhas portáteis de água e de vinho, foices, foicinhas,
manguais, pás, ancinhos e outros apetrechos agrícolas, quais os
tipos de instrumentos e utensílios das pequenas indústrias, mineração, pesca, salinagem, etc.?
− Quais são as indústrias
mais vivas ou radicadas e que maior influência
exercem na vida do Povo?
− Essas indústrias têm expressão popular ou são já mecanizadas
e modernizadas?
− Quais as instituições de organização de trabalho corporativas ou
profissionais?
− Qual é o tipo humano, masculino e feminino da região,
concelho, freguesia ou lugar?
− Por que exemplares se pode avaliar o tipo de beleza feminina e o tipo de homem de trabalho?
/ 61 /
− Como vestem no trabalho e nos dias festivos?
− Como tem evolucionado o
traje popular?
− Quais as tradições de vestuário?
− Aspectos dos usos e costumes ou instituições de educação
Infantil?
− Que práticas, usanças, ritos festivos ou cerimónias se
mantêm ou desapareceram?
− Como se manifesta a alegria popular e quais as diversões
predilectas do Povo para amenizar as fadigas do seu trabalho?
− Que há de mais típico nas festas, romarias e mercados?
− Nas danças, canções, música, quais as tendências ou manifestações actuais e quais as tradicionais e arreigadas ou oblitera
das no gosto popular?
− Entre as antigas, quais as mais dignas de exibição
e
cultivo para não desaparecerem totalmente?
«O cortejo Distrital-Regional, folclórico, etnográfico e de
trabalho de 23 de Abril de 1939, 2.º deste género que se realiza em,
Aveiro, será o preparatório para a realização definitiva de uma
grande parada de confraternização dos Povos dos 19 concelhos
do Distrito e de um grandioso desfile documentário em que os estranhos poderão ver o retrato vivo do nosso Povo na sua fisionomia própria, na sua actividade económica e na sua feição social.»
Ignoro quando a comissão organizadora trará a público as
suas conclusões, mas certamente que não deixará de o fazer; à
Etnografia local muito interessa conhecê-las sem demora.
O cortejo, cuja concepção é merecedora de calorosos aplausos, forneceu magníficos elementos para o estudo do trajo; e se
não trouxe novidades ao presente esboço, salvo em pormenores de adorno,
permitiu a visão panorâmica do vestuário no distrito
e reforçou conclusões a que chegáramos já pelo exame de antigas gravuras
e de peças originais que conhecemos.
Com um pouco mais de cuidado por parte de alguns concelhos que desta vez apresentaram supostas reconstituições de
trajos, quando não eram mais do que simples junção de peças antigas
dispersas, pertencentes a' épocas diversas da evolução
indumental, que nada autorizava a reunir em certame desta natureza, e
com a exclusão sistemática e intransigente de estilizações de palco, nunca usadas na vida real, o próximo cortejo
do distrito de Aveiro constituirá um acontecimento notável na
história da Etnografia portuguesa; para ele concorreu de forma
decisiva esta segunda tentativa efectuada em Abril de 1939, para
encerramento oficial da velha Feira de Março, de gloriosas tradições
locais, que importa manter.
Prosseguindo no inventariação dos elementos de estudo do
trajo popular na província da Beira Litoral, convém ainda transcrever
/ 62 / o palpitante descritivo de MANUEL DA SILVA GAlO, focando
em 1890, na Revista Ilustrada, a chegada dos romeiros à festa da
Rainha Santa em Coimbra; o primoroso escritor, cuja estima e
delicadíssimo convívio me acompanharam sempre, e agora recordo
com grata saudade, surpreendeu admiravelmente os diversos
ranchos de devotos, diferenciando-os etnograficamente com o
notável senso crítico que lhe era peculiar, transmitindo-nos
desse modo apreciáveis depoimentos do trajo de há cinquenta
anos, preciosos para o nosso ponto de vista.
Ainda hoje as romarias constituem importantes postos de observação
etnográfica; pela convergência de povos de variadíssimas proveniências e diversos graus de cultura que a elas
acorrem; aí se encontram sempre expressões, vestuários e utensílios, testemunhas de passadas eras, índices reveladores do
isolamento do povo que moireja longe dos grandes povoados e
que, do mundo, apenas conhece a feira onde transacciona e a
romaria onde vem desobrigar-se da promessa que, em hora de angústia, o lançou de joelhos a rogar o auxílio divino ao santo
da sua devoção.
Ora a festa à Rainha Santa Isabel, padroeira de Coimbra,
estende o seu eco para além das terras que constituem a província da Beira Litoral e congrega na cidade verdadeiras vagas
de peregrinos de fartas léguas ao redor, milagre sempre renovado de Fé e agradecido Amor.
Valem por colorida fotografia dum cálido dia de Julho em
Coimbra as linhas animadas de SILVA GAIO:
...«Desde a manhã, do primeiro dia festivo eu assistira ao chegar dos peregrinos e romeiros: de regiões do litoral, desde a foz do
Mondego à do Vouga, das planícies e terras baixas, da montanha e
serranias do Levante.
E observara-os, curioso.
− Fundiam-se agora, esses ranchos, na
vaga mesclada da multidão a escoar-se, e a refluir em ressaca, nas
encruzilhadas e ângulos de ruas, nos encontros e choques, peito a peito,
sob um ruído surdo de vozes confusas... espraiando, logo, nas praças
e largos, para de novo se encanar nessas ruas estreitas como
subterrâneos.
Mas entre os grupos de vendedeiras e tricanas, de estudantes e operários, de viajantes e vadios
− eu distinguia todos esses
tipos característicos dos povos em redor, enquanto, rompendo a onda
forte, me
punha, ao lado, a vê-la desenrolar por sobre as calçadas de piso duro,
entre regos, atapetadas agora de rosmaninho, alecrim, alfazema e urze,
dando um cheiro agreste, a lembrar aldeia e apriscos...
Passavam romeiros da planície, das aldeias a poente; altos e
esguios, com um ar grave de pernaltos. Os homens tinham a face magra e
pálida, rapada, ou de barba talhada em suíssa, e o cabelo curto. Elas eram de pele fina e olhar vago, o andar presto, o busto
erguido, colhidos os seios pequenos nas dobras dos lenços de ramagens;
os cabelos em bandós e, traçados com graça, os xailes claros: ao pescoço,
/ 63 /
cordões de ouro e contas e nas orelhas argolas ou pingentes
curtos.
|
Fig. 31 − CAMPONESAS
DAS MARGENS DO MONDEGO ATRAVESSANDO O RIO.
Desenho de Manuel de
Macedo, gravura de Penoso, em madeira, no «Almanaque ilustrado do
Ocidente», para 1886. |
Os pés calçados em chinelas, ou nus.
Vinham depois gentes da
beira-mar, à frente as de Buarcos e
/ 64 /
daquém do Cabo, alegres e palreiras, na voz cantada e ressoante. Os
homens, tisnados e fortes, e vestidos de camisolas de lã, ou de jaquetas
e de calça azul, marchavam num andar baloiçado, e as raparigas
rebolando-se nas saias averdugadas, de refegos, e trazendo os seios
apertados em coletes atacados; os tornozelos e pés nus.
|
Seguia-se um bando de gaivéos e gandarezes, silenciosos: perfis agudos,
rostos de sezonáticos habitantes da região pantanosa e terras de
arrozais. Vestiam hoje gabões ou jalecas de saragoça e burel −
protegendo os crânios estreitos com chapéus largos
e revirados no cairel da aba, ou enterrando até às orelhas os carapuças
negros. São de melhor efeito, esses feios bichos, quando em
caravanas nos dias de trabalho e recovagem, branquejam ao largo,
pela planura, nas suas vestes picturais:, ceroulas e camisas de
estopa branca, e coletes apertados em botões de vidro. −
Caminhavam-lhes no rasto as mulheres, num andar de peruas
assustadas.
Eram
figuras amareladas
de carnes, sem viço; rostos com gelhas precoces. |
Fig. 32 − ALDEÃ DAS
MARGENS DO MONDEGO
Desenho de Manuel de
Macedo, datado de 1863, no «Almanaque ilustrado do Ocidente», para
1883. |
Os cabelos curtos; os
peitos quase chatos, duma secura masculina, e sepultados nos corpetes
escuros, que apertavam botões largos de prata; as saias escorrendo lisas
ao longo das pernas, e os pés nus
/ 65 /
[Vol. V - N.º 17- 1939]
− ou metidos em estreitos chinelos, que, ao entrar nos templos, descalçam e põem à frente, durante as rezas.
Fúnebres como estes, os de
Mira e pontos limítrofes, com trajos
semelhantes, e o
mesmo ar fatal e
alheio.
E lembro-me
ao vê-los, ali, dos
seus costumes à parte, com culto
peculiar e danças misteriosas, simbólicas talvez no número dos pares,
e nos movimentos, e passos, que executam com um rigor de fanáticos, lá
no seu povo, sob brumas do mar...
...Agora são raparigas de Ílhavo, Ovar e Aveiro. Puros tipos: olhar com
chispa; cabelos negros, lábio delgado, tornozelos e pulsos finos;
quadris saracoteados dentro das saias rodadas, os
seios fortes, arfando sob um montão de ouro: cruzes de filigrana, corações lavrados e
marchetados de
esmaltes vivos, rosários de contas, cordões grossos, colares de ornato
erriçado e miúdo;
os brincos e argolas quase a rasgarem, de pesados, a polpa da orelha; e a completar o trajo, os grandes lenços
franjados, tombando soltos de sob os chapéus redondos, de aba revirada
/ 66 /
e ornados de veludo e penas. E todas têm também a voz cantada, de
ressonância entre áspera e dolente.
|
|
Fig. 33 −
GANDARESA DE MONTEMOR
Desenho de Manuel de
Macedo, datado de 1863, gravura de Penoso, em madeira, no «Almanaque
ilustrado do Ocidente», para 1882. |
Até que, entre tão
variadas gentes, vi mais os da Beira, dalém
serras, vindo os homens de saragoça, cinta negra sob as jalecas
compridas, e com os pescoços apertados nos colarinhos engomados e
duros. Apoiavam-se a grossos marmeleiros; e riam, com a dentuça miúda e
branca, alegrando o tom queimado e a carnação forte dos rostos curtos;
tinham nos olhos um brilho vivo. Alegres, comentando tudo, duns para os
outros. As mulheres traziam lenços grandes e escuros, atados sob o
queixo, aos ombros uma capa ou romeira, debruada a veludo, ou lisa; a
saia de roda e pregas, e o pé calçado em sapato de entrada alta; algumas
com chapéu de homem sombreando-lhes o rosto, que era, em quase todas, de pele doirada pelo sol, penugenta como frutos carnudos. As
bôcas fortes, beiços como cerejas bicais, deixando, no riso aberto,
ver dentes unidos e alvos. Iam em grupos, empurrando-se, atrás dos
machos,
lançando num soar alto as vozes cheias, onde o xe funde as sílabas,
por vezes, em som mole e empastado.
|
|
|
Fig. 34 − MULHER DE
ÍLHAVO
Final do séc. XIX.
Gravura da monografia de LUÍS CHAVES, A Beira, para a exposição
portuguesa de Sevilha, em 1929. |
|
Fig. 35 − MULHER DA
MURTOSA
Final do séc. XIX.
Gravura da monografia de LUÍS CHAVES, A Beira, para a exposição
portuguesa de Sevilha, em 1929. |
Eram os tipos mais alegres, ainda que desconfiados e de olhos matreiros...»
E o descritivo segue, evocando agora a alegria do povo, exteriorizada em
descantes e bailados, anotando os festejos, até à
debandada final − desmanchar de arraial dos povos que partem −
e ao regresso das ruas da cidade ao costumado abandono e
/ 67 /
grave silêncio que nessa época caracterizavam Coimbra. Ainda
hoje, como então, os festejos em honra da padroeira da cidade
atraem iguais multidões; não falta cor aos desfiles dos seus
ranchos; mas a variedade dos trajos é que desapareceu quase
por completo; e o mesmo figurino veste as romeiras de toda a Província,
a bem dizer...
Os trajos regionais antigos que ainda se não sumiram de
todo envergonham-se agora de aparecer nas festas de Coimbra, capital da
Província; é necessário ir surpreendê-los à serra, ao
campo, à gândara ou à ribeira; mesmo aí evolucionaram muito,
adaptando-se a sucessivas estéticas indumentais e só no fundo das arcas
algum casal menos necessitado conserva em toda a
primitiva pureza, por milagre de amor, a recordação viva duma
ou outra época de que seus pais ou avós participaram também.
Apreciando a representação portuguesa na exposição de Paris,
em 1937, EMILE COUDROYER escrevia: «Portugal, cujos meios reduzidos de
comunicação permitiram que a arte popular conservasse
uma extraordinária vitalidade, exibe as suas riquezas folclóricas.»
A observação contida na frase
constitui o verdadeiro segredo
da riqueza etnográfica dum povo; região onde o comboio chega
ou a camioneta pára, dentro em breve se encontra descaracterizada e igual a tantas outras; olhos que não vêem não pecam,
diz o nosso povo; ora o vestuário à moda em todos os tempos
foi uma tentação; começaram no Paraíso Terrestre as primeiras
exigências de nossa mãe Eva...
ALGUNS ASPECTOS DO TRAJO POPULAR NA BEIRA
LITORAL
Uma grande divisão surge, antes de mais, em
estudos desta natureza: trajo masculino e trajo feminino, dentro
deles viria depois o vestuário de trabalho e o vestuário dos
domingos ou dias de festa; neste primeiro esboço, contudo, difícil será
documentar sempre estas duas modalidades, mas nada se perde em ir
apresentando o que se conseguiu já reunir,
e um dia se voltará ao assunto, mais documentado então.
O trajo feminino prender-nos-á por mais tempo; em todo o
país o vestuário do homem apresenta, mesmo historicamente
considerado, tendência maior para a uniformidade; a garridice,
a louçania − em cores, recorte, número de peças, enfeites no
próprio vestuário e adornos complementares de jóias e ouros −
pertencem inteiramente ao vestuário da mulher; é o próprio homem que tem gosto
em ver a companheira airosa − toda
asseada, na expressão popular − para isso trabalhando, e de
longes terras trazendo, por vezes, o xaile fino, a blusa de seda,
as arrecadas de ouro, feliz se ao domingo, à missa do dia, o
luxo da mulher moi de inveja a vizinhança menos abonada e
lhe granjeia cumprimentos e consideração.
|
|
|
Fig. 36 − ALDEÃO DA
MURTOSA
Aguarela de autor
desconhecido, reproduzida por AURÉLIO SOUSA na sua História do
Trajo, citada. |
|
Fig. 37 − CAÇADOR DE
AVES PARDILHÓ E MURTOSA
Colecção MACPHAIL, 3.ª
série. |
A observação de RAMALHO ORTIGÃO de que «ninguém mais
artisticamente do que o português sabe vestir a mulher, arrear
/ 68 /
o cavalo, engatar a mula e moldar a vasilha, ninguém, tão pouco
melhor do que ele emalha a rede e ennastra o cesto», nem
por ser repetidamente citada deixa de ter aqui perfeito cabimento;
/ 69 /
a) O VESTUÁRIO DO HOMEM
− Em toda a Província o
homem trabalha, por via de regra, em camisa ou em camisola,
às vezes de colete (em mangas de camisa), raramente de casaco; de
quaisquer calças se serve; e frequentemente, é em ceroulas
/ 70 /
arregaçadas que trabalha nos campos; reduz ao mínimo o vestuário; ao suficiente para cobrir a nudez, mantendo a liberdade dos
movimentos. Hoje, como antigamente; o costume tem filiação ancestral.
O aldeão da Murtosa fixado por aguarela de autor desconhecido em 1816. e
que a nossa fig. 36 reproduz, é exemplo típico; vimos já o caçador de
aves, de Pardilhó, da obra de AUGUSTO WAHLEN ; a colecção MACPHAIL,
incluiu-o igualmente nas litografias da sua 3.ª série, merecendo a pena,
para a história dessas colecções, confrontar os dois desenhos, que são
as nossas figuras N.os 12 e 37. MACPHAIL estende o tipo a Pardilhó e
Murtosa, o que não repugna de forma alguma aceitar.
|
Fig. 38 − PESSOAL E
ALFAIAS DUMA MARINHA DA RIA DE AVEIRO
Gravura extraída da
revista Museu Tecnológico, de 1877. |
De cerca de 1877 serão os trajos da nossa gravura 38, em que a
simplicidade do vestuário do marnoto é evidente, em flagrante contraste
com o das mulheres que a par dele trabalham:
manaias e camisa branca, faixa preta ou encarnada, de lã, barrete ou
chapéu na cabeça; uma das figuras masculinas veste colete. Dessa época
também, aproximadamente, será o pescador de Aveiro fotografado pelo
grande artista que foi CARLOS RELVAS e que igualmente aqui se
reproduz (fig. 39).
Em 1869 publicava o Almanaque de Lembranças luso-brasileiro o curioso
artigo que a seguir transcrevemos, assinado por
/ 71 /
J. S. FRANCO; desconte o leitor de hoje a assinalada ascendência grega
que então era moda aduzir-se, mas que se não pode documentar
cientificamente com esse carácter absoluto, desconte também o
anacronismo da existência da Ria nesse tempo, e arquive o resto como
depoimento valioso, que de facto o é; já naquela época o autor notava a
evolução do vestuário feminino local; o trajo do homem mantinha-se e
veio até nossos dias.
«O VARINO
− Há muitos séculos entrou pela
foz do Vouga uma colónia de gregos da formosa raça pelásgia.
Encantada da extensão e
limpidez das águas da ria, assentou as suas choupanas de pescadores nas
planas margens daquela grande lagoa. Desta colónia descendem os
habitantes que ainda hoje a povoam. Vejamo-los:
O ilhavense é o tipo mais gracioso daquela esbelta raça. Alto, elegante,
de fisionomia simpática, voz harmoniosa e musical; vive sempre sobre as águas do oceano,
do Vouga e do Tejo. É o pescador na sua mais genuína acepção.
A ilhavense é airosa e
flexível como a cana do valado, que se balança
ao menor sopro do vento;
formosa... como dizem
que o são as georgianas
do Cáucaso. Faz gosto vê-la fazer, com uma ligeireza e perícia inexcedível,
toda a sorte de redes, desde o botirão de
malha miudinha, até à arte do mar, cujo saco depois de cheio é uma
montanha.
|
|
Fig. 39 − PESCADOR DE
AVEIRO
Fotografia de CARLOS
RELVAS posterior a 1874. |
Na costura então, ninguém a excede. É a verdadeira companheira do aperaltado pescador.
Depois do ilho vem o aveirense, que se compõe do marnoto
/ 72 /
que cultiva as salinas; do barqueiro que conduz no seu barco o sal
para bordo dos navios surtos na ria, e do pescador, espécie de
lazzaroni napolitano, o qual, logo que na abundante ria pesca o preciso
para o seu sustento, deita-se ao abrigo da casa soalheira, fumando no
seu cachimbo, com a indolência dum muçulmano.
|
Fig. 40 − VARINO
Litografia da colecção
PALHARES, 1.ª série. |
Em Aveiro há as salineiras gentis, que alta noite se
levantam, e vão
com a sua canastrinha de verga acarretar o sal das marinhas para os
barcos do Alboi. Muitas vezes depois da tarefa juntam-se na eira da
salina, e ali com os rapazes barqueiros dançam ao som da viola a Cana-Verde, a Farrapeira e outras danças
populares, privativas dos subúrbios de Aveiro. Mas onde a pescadeira e a
salineira expandem todo o seu génio folgazão, cantando,
dançando e brincando á beira-mar, é nas romarias da Costa Nova do Prado
e de S. Jacinto.
Ao aveirense segue-se o vareiro apessoado e cosmopolita. Vem depois o
aguedense mais barqueiro do que pescador, e mais agricultor do que
barqueiro.
Mas todos estes rebentões daquele frondoso ramo de raça
pelásgia, vulgarmente designado pelo nome de varino, se parecem no seu
trato brando, na sua voz engraçada, nos seus usos e costumes.
O trajo é quase semelhante. No homem um gabão que lhe desce até aos
pés,
de mangas e capuz. Um barrete catalão que lhe cobre a cabeça como uma
asa de gaivota. Camisa branca como a neve por cima da qual se vê às vezes
o colete de pano azul, ou a camisola; ceroilas que lhe descem até ao
joelho, deixando a descoberto o resto da perna; faixa vermelha, embrulhada
graciosamente em volta da cinta. É este o trajo mais usado
do varino pescador.
Na mulher o trajo é caprichoso como o das ondas do Atlântico. Dantes a
pescadeira e a salineira usavam apenas saia curta de lã azul, colete de
veludilho encarnado que lhe apertava o airoso corpo com botões de prata
até á cinta, no colo lenço matizado de cores, terminando por um
chapéu de largas abas, que lhe guardavam dos ardores do solo rosto
fresco e corado.
Hoje a moda tem invadido àquelas graciosas
filhas do mar, e rara é a varina que conserva ainda aquela frescura e elegância de traje de que
se namoravam os olhos dos poetas das margens do Vouga.»
Até para o Tejo os pescadores de Ovar, Murtosa e Ílhavo levavam o seu
trajo local; vimos já as nossas figuras 11, 15, 22, a que podemos juntar
a do varino da 1.ª colecção PALHARES,
(40) colhida certamente em Lisboa, se considerarmos alguns barcos
característicos do Tejo que formam cenário ao vendedor de peixe; há a
acrescentar, aqui, o casaco, de grandes botões; mas ainda na
actualidade, e na Capital, temos nós presenciado
/ 73 /
a passagem de vendedores com idênticos cabazes, e em camisa,
sumariamente. O pormenor da litografia, é, no entanto, da
/ 74 /
maior importância para o estudo do trajo antigo do vareiro.
O artigo de J. S. FRANCO,
acima transcrito, refere ainda
/ 74 /
uma peça de grande carácterJ que sabemos ter irradiado da região da Ria
para todo o país, alcançando, por volta de 1900, extraordinária difusão,
que ainda se manteve, com oscilações, quinze ou vinte anos, começando
então a sua rápida decadência a ponto de se encontrar hoje em vias de
desaparição: é o gabão, também chamado varino.
|
Fig. 41 − VARINO, COM
O GABÃO
Aguarela não assinada,
reproduzida em cromo no Álbum de costumes portugueses, de 1888. |
Todas as classes o usaram: pobres, remediados e ricos, variando apenas
no tecido (que para as classes populares era burel e surrobeco, ou ainda
briche) e no colchete com que se aconchegava ao pescoço, que os ricos
usavam
de prata, acrescentado duma pequena corrente do mesmo metal.
O gabão é a réplica da Beira Litoral à capa de honras de Miranda do
Douro, rica e hierática, e ao capote alentejano, de feirantes e
lavradores dos montados, e das charnecas; mais sóbrio do que qualquer
desses, nem por isso é menos cómodo, tendo ainda a vantagem
de ser mais leve.
E menos rodado que o capote alentejano. Tem mangas, romeira e capuz, que
puxado sobre a cabeça defende eficazmente da chuva e, à noite... de
olhares indiscretos espiando eternas aventuras.
Venceu-o o pardessus de corte francês, o
sobretudo de hoje
em dia.
ANTÓNIO GOMES DA ROCHA
MADAHIL
Continua na pág.
247 − ►►► |