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Continuação da pág. 158
QUE valor se deva
atribuir, em Etnografia, à constituição das sub-regiões apontadas na
Província é problema muito delicado, só por si justificativo de
desenvolvido estudo, incompatível com o carácter destes primeiros
apontamentos de trajo muito embora subordinados
todos à Beira Litoral.
Diremos apenas que para uma zona se poder isolar etnograficamente se
torna mister que se verifique exclusivamente nela a existência dos
elementos em consideração; o que, portanto, mais conviria marcar em
Etnografia eram regiões de determinado elemento: marcar a distribuição
da capucha, por exemplo, a da antiga mantilha, a do chapéu murtoseiro,
a do gabão, como, passando a outro sector etnográfico, a distribuição do
barco moliceiro, a do barco normando de pesca no mar, a dos
jugos
lavrados e pintados, etc.
Referimo-nos, evidentemente, a Etnografia apenas; o critério geográfico
não é considerado aqui; está fora do nosso ângulo de observação.
Mas perante a insuficiência que existe ainda de elementos de estudo do
vestuário popular de toda a Província e respectiva cronologia, só muito
mais tarde se poderão tentar os agrupamentos acima referidos.
Vamos, por agora, registando o que nos foi possível conhecer; outros
depoimentos surgirão talvez em complemento da nossa insuficiência.
Registe-se, antes de mais, e até para justificar a possibilidade de
reunir ainda hoje os aspectos retrospectivos aqui apresentados,
/ 214 / que o vestuário popular local impressionou desde muito cedo os
artistas e os observadores cultos que percorreram a região, ou
simplesmente a atravessaram, a caminho do Porto, ou de Lisboa; uns e
outros o foram fixando em seus álbuns e
livros de viagens, muito em moda nos séculos XVIII e XIX; de lá
o vai exumar a investigação científica ou a simples curiosidade de
nossos dias.
Deve-se a estrangeiros a iniciativa desses trabalhos, e a
eles pertence
ainda a autoria dos melhores desenhos e gravuras de que podemos dispor.
Com a introdução
da litografia em Portugal no segundo quartel do século XIX, e
subsequente difusão, multiplicaram-se
colecções nacionais de desenhos, infelizmente nem todos recomendáveis,
por deficiência de execução e, o que é pior, por falta de originalidade:
decalcam quase sempre as colecções estrangeiras.
A fotografia, permitindo fixar pela imagem
a indumentária com absoluto rigor de reprodução, chegou um pouco tarde
para certos aspectos, já então desaparecidos; contudo, é ainda aos seus recursos que o historiador vai buscar precioso e insubstituível depoimento.
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Fig. 9 − MULHER DA MURTOSA
Pintura a óleo em folha de flandres por Francisco José
Rezende em1878. Museu Municipal do Porto. |
O subsídio fornecido
pela pintura portuguesa é escasso; o povo nunca animou grandemente as telas dos nossos coloristas doutro tempo, voltados mais ao classicismo e à pintura de
interior; no entanto, um ou outro pormenor se encontra; e, pelo que
respeita à região de Ovar e Murtosa, uma excepção importa fazer, embora
um pouco tardia: o pintor RESENDE (Francisco José), nascido no Porto em
1825 (9 de Dezembro) e que por volta de 1878 e até à sua morte, ocorrida
em 30 de Novembro
/ 2I5 /
de 1893, se ocupou repetidamente em fixar o trajo de varinas e
murtoseiras. Já a pág. 144 reproduzimos o quadro seu que no Museu de
Aveiro se conserva; aqui, juntamos a gravura doutro,
pertencente ao Museu Municipal do Porto, (fig. 9) e ainda um
desenho que o grande coleccionador de RESENDE e distinto
crítico de Arte, Dr. PEDRO VITORINO, meu ilustre amigo, possui
e generosamente me comunicou (fig. 10).
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Fig. 10 − PADEIRA DE OVAR
Desenho de Rezende. Colecção do Dr. Pedro Vitorino. |
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O colorido dos trajas, fixado pelo pintor nos seus quadros,
é hoje, que a maior parte das respectivas peças desapareceu,
elemento precioso de reconstituição, conferindo-lhes extraordinário e seguro valor etnográfico.
/ 216 /
RESENDE deu sempre preferência a
assuntos e tipos portugueses para encher as suas telas. Tinha, como artista,
uma alma
profundamente portuguesa, escreve o seu biógrafo ALBERTO
PlMENTEL(1).
Não pode a Beira Litoral apresentar trajos tão característicos como os do Minho, os de Miranda do Douro, os do campino do
Alentejo; mas na sua maior simplicidade em relação
àqueles, sempre os seus vestuários foram fixados pelos observadores estrangeiros que nos visitaram e da sua passagem por
Portugal deixaram relato impresso, animando com o pitoresco
dalguns aspectos e a descrição de costumes locais as páginas
de muitos dos seus livros de viagens. Coimbra aparece quase
sempre; Aveiro e Leiria, por vezes; povoações menores, como
Foz de Arouce, Ílhavo, Murtosa, Ovar, dão igualmente o seu
precioso contributo iconográfico.
Na esplêndida. colecção de gravuras em cobre de HENRY
L'ÉVÊQUE, de 1814, intitulada Costumes de Portugal, aparece-nos
um camponês dos arredores de Ovar.
Em Sketches of Portuguese life, manners, costume, and character, livro publicado em Londres em 1828, há um interessante grupo de
mulheres de Foz de Arouce fiando, acompanhadas por
dois campónios e duas crianças. Importa muito, como veremos,
considerar: os trajos aí fixados, que à nossa actual província pertencem. E a estampa
N.º 18 daqueles sketches.
O reverendo KINSEY que, em 1828 também, publicou o seu
Portugal illustrated acompanhado de gravuras de quanto encontrou de pitoresco, não esqueceu o pescador de
Ílhavo, que por
aqui terá encontrado, ou até em Lisboa, onde então era frequente, pois só mais tarde perdeu, em favor do varino e do
murtoseiro, a primazia de que era detentor na venda do pescado
pelas ruas da capital; é obra que merece particular atenção:
reproduz tipos de Ordens religiosas, mulheres de cidade, que não localiza, camponesa de Trás-os-Montes, assadeira de castanhas, garoto pedinte, camponesa de Braga, campónio em trajo
domingueiro, um desembargador, um cidadão de Guimarães,
camponês minhoto, outro do Alentejo, galego de Lisboa, outro
do Porto, a mulher que vende cebolas, um vendedor de bolos de
mel, o camponês com palhoça, um mendigo de Lisboa, um vendedor de patos no Porto, peixeira e regateira desta mesma cidade,
e, por fim, com seu gabão de burel amarrado na cinta com
um nó feito pelas próprias pontas, capuz enfiado na cabeça,
/ 217 /
manaias brancas até ao joelho, o fisherman of Ilkavo, deturpação
muito desculpável num compositor tipográfico inglês... (fig. 11).
Pertencem os desenhos dessa obra, segundo declaração de
KTNSEY, a «Mr. PUGIN, from models wich were made in Portugal
for the author. They have been engraved in outline by MOSES,
and are aquatinted and coloured by PYAL» (pág. XI)
G. VIVIAN, que desenhou
as magníficas estampas litografadas depois por L. HAGHE e publicadas em Londres em 1839 com o título
de Scenery of Portugal and Spain, recolheu um
aspecto encantador de tricanas de Coimbra e estudantes junto à fonte de
Sant' Ana naquela
cidade. O príncipe de LICHNOWSKY, nas suas célebres Recordações de 1842, dedica a Aveiro
este
curioso texto: saíram de Vendas Novas e...
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Fig. 11 − PESCADOR DE ÍLHAVO
Do livro de KINSEY, Portugal illustrated, 1828. |
«Passadas algumas horas pozemo-nos de novo a caminho, e chegámos perto
do anoitecer á Palhaça em
um terreno mais agradavel, e muito mais bem cultivado. Um resto de
antigas estradas calçadas, que o marquez de Pombal mandou fazer á custa
de grande despeza, conduzio-nos, ao clarão da lua, por entre duas
fileiras de grandes arvores até á cidade de Aveiro. Junto a uma antiga
fonte, que se encontra no caminho, estavam algumas mulheres,
enchendo agua; traziam á
cabeça grandes cantaras á semelhança de amphoras, e
offereciam de beber a um grupo de arrieiros, e cavalleiros. Algumas d'entre ellas traziam chapéos d'homem de
grandes abas erguidas, e longos capotes, em que sabiam
embuçar-se de um modo, muito picturesco. Caminhámos
atravez de muitas ruas estreitas, e bastante animadas, entrámos uma porta, sahimos por outra até que finalmente parámos junto
a uma hospedaria, onde fomos recebidos, chamada
/ 218 /
a estalagem da Felicia, na praça, que fica fora da cidade e
defronte do caes...» (Pág. 153).
Em 1844 AUGUSTO WAHLEN publicou em Bruxelas uma obra
copiosamente ilustrada − Moeurs, et usages de tous les peuples
du Monde, d'après des documents authentiques et les voyages les
plus récents; lá estão representadas a Europa, Ásia, África, América, Oceânia; não faltou Portugal; e
da pequena representação concedida ao nosso
país, nada menos de duas gravuras dizem respeito ao
distrito de Aveiro.
|
Possuo a tradução portuguesa desse curioso trabalho,
em quatro volumes, feita por FRANCISCO LUDOVICO DE SOUSA FREITAS SAMPAIO
e impressa em Lisboa, de 1872 a 1875; entre as muitas dezenas de
curiosas gravuras que a ilustram, todas fora do texto e coloridas, há
três de Portugal:
vendedor de aves de Pardilhó, Ovarina, e Mulheres de Miranda (do
Douro); nada de mais característico feriu a
atenção do autor! Aqui se junta a reprodução da gravura do vendedor, de
Pardilhó, (fig. 12) curiosíssima
figura, na verdade, dum trajo
que hoje documenta a sua evolução última com as manaias
dos marnotos das marinhas da Ria de Aveiro.
A influência destes e
doutros livros estrangeiros, de viagens e de costumes, fez-se sentir
entre nós unicamente em artigos de revistas, no século passado;
reproduziram-se alguns aspectos do vestuário popular e comentaram-se
ligeiramente: |
Fig. 12 − VENDEDOR DE AVES DE PARDILHÓ
(da trad. port. da obra de Augusto WAHLEN «Moeurs et
usages de tous les peuples du monde. |
o velho Panorama, o Arquivo Pitoresco, o
Universo
ilustrado, o Ocidente, o Branco e Negro, a Tradíção,
a Ilustração Portuguesa, o Almanaque ilustrado das Horas
/ 219 /
românticas, o Almanaque de Lembranças, são fontes por nós utilizadas
neste recenseamento de indumentária provincial.
A par destas, outras menores, que indicaremos sempre para que o leitor
se documente.
Paralelamente a estas espécies, de natureza
bibliográfica, decorre
outro valioso manancial informativo, constituído pelas colecções de
estampas avulsas, na maior
parte litografias, estrangeiras e nacionais.
Essas preciosas estampas tiveram já o seu
carinhoso historiador; em 1917
publicou minucioso e instrutivo catálogo de todas elas o bibliófilo da capital, Sr. HENRIQUE
DE CAMPOS FERREIRA(2); é de
1806 a mais antiga e
intitula-se Colecção de costumes servis da cidade de Lisboa, dividida
em onze secções, constando cada uma de cinco estampas, com explicação
em português, inglês e francês, dedicada ao Ilustríssimo e ExceIentíssimo Senhor D. António
Luiz de Menezes, Marques de Tancos, por M.
I. D. Lisboa, A. N. 1806.
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Fig. 13 − VAREIRA DE OVAR VENDENDO PEIXE (Lit. da col. de
Costumes Portugueses de 1832). |
Presumivelmente
terá sido gravada por
MANUEL GODINHO.
Nenhuma das 20
estampas de que se
compõe diz respeito à
região que nos ocupa.
/ 220 /
Em 1809, segundo o catálogo FERREIRA LIMA que iremos acompanhando,
aparece a colecção Ruas de Lisboa, colorida, gravada em metal, que foi
reeditada em 1819. Eram 25 estampas e também a Beira-Litoral não forneceu motivos ao seu
desenhador. Teve outra edição em 1826.
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Fig. 14 − TRABALHADORES DE ENXADA, DE OVAR E IMEDIAÇÕES
(Lit. da col. JOUBERT, de meados do séc. XIX) |
/ 221 /
Outra colecção idêntica, já litografada, sem data, mas que
FERREIRA LIMA cataloga posteriormente à de 1826, abrange 30 estampas e
também não interessa ao nosso propósito.
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Fig. 15 − ÍLHAVOS E PESCADORES DE SARDINHA
(Lit. da col. JOUBERT, de meados do séc. XIX) |
Vem, depois a de 1832, trazendo por título
Costumes portugueses ou Colecção dos Trajos, usos e costumes mais
notáveis, e
/ 222 /
característicos dos habitantes de Lisboa e Províncias de Portugal.
Lisboa 1832.
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Fig. 16 − ÍLHAVOS VENDEDORES DE SARDINHA
(Lit. da col. JOUBERT, de meados do séc. XIX) |
São 13 litografias numeradas, que depois receberam uma
continuação, até o n.º 20, em 1835.
/ 223 /
A estampa N.º 10 representa uma Vareira
− Mulher de Ovar vendendo peixe
(fig. 13).
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Fig. 17 − HOMEM E MULHER DE OVAR
(Lit. da 1ª col. PALHARES, anterior a 1875) |
Em 1841 novas estampas coloridas, litografadas desta vez
por MACPHAIL, nome pelo qual a colecção ficou conhecida; o
/ 224 /
catálogo que extratamos regista 18 números, de que nos interessam uma Molher d'Ovar, e o Paizano dos arrebaldes d'Ovar conduzindo
um carro.
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Fig. 18 − MULHER DE AVEIRO VENDENDO MEXILHÕES E OVOS MOLES
(Lit. da 1ª col. PALHARES, anterior a 1875) |
/ 225 /
[Vol. IV - N.º 15
- 1938]
MACPHAIL lançou nova colecção em 1842, de que FERREIRA
LIMA conheceu 12 números, nenhum dos quais é aproveitável
ao nosso fim.
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Fig. 19 − MULHER DE COIMBRA LEVANDO ÁGUA DA FONTE OU DO MONDEGO
(Lit. da 3ª col. PALHARES, anterior a 1875) |
/ 226 /
Sem data, segue-se terceira colecção de MACPHAIL, de que no catálogo
referido se registam 17 números, aproveitando um deles à Beira-Litoral:
a varina de Pardilhó e Murtosa.
Outra colecção muito importante, que seguidamente aparece, é a de
JOUBERT (Jorge Bekkerster), litografada e colorida; o catálogo descreve
22 números; dentre eles, notamos Trabalhadores d'enchada (sic) naturáes
d'Ovar e suas immediações (fig. 14); Ílhavos pescadores de Sardinha
(fig. 15); Vendedores de palitos naturaes de Coimbra, Condêxa e seos
Contornos; e Ilhavas vendedoras de Sardinha (fig. 16).
Catalogam-se depois três colecções PALHARES, sem data, sabendo-se
unicamente que tal desenhador, segundo apurou o Sr. Coronel FERREIRA
LIMA, deve ter vivido entre 1810 e 1875. Da 1ª destas colecções
conhecem-se 44 litografias coloridas; interessam-nos a Varina vendendo
peixe em Lisboa, o Varino vendendo sardinha, Pescadores ílhavos,
Homem e mulher d'Ovar (fig. 17), Mulher d'Aveiro vendendo mexilhões e
ovos moles (fig. 18), e Mulher de Leiria vendendo pinhões em Lisboa.
A 2.ª colecção PALHARES abrange 32 estampas, do mesmo género das
antecedentes, e das quais recolhemos Pescadores de Ílhavo, e Mulher de
Leiria vendendo pinhões em Lisboa.
Na 3.ª, de que são conhecidas 40 litografias coloridas, há uma Varina (mulher d'Ovar)
vendendo peixe em Lisboa, Varinos vendedores de artigos de costura, bijuterias e jornais em Lisboa,
Pescadores de Ílhavo, Mulher vindo do mercado, em Coimbra, Mulher de
Coimbra conduzindo água da fonte ou do Mondego (fig. 19), e Vendedeiras
no mercado da Figueira da Foz (cópia do natural) (fig. 20).
Estas colecções, interessantíssimas e de grande raridade, não podem
ser utilizadas arbitrariamente, dando por bom quanto nelas se encontra.
O desenho dalgumas é muito incorrecto;
nota-o FERREIRA LIMA, a propósito da de JOUBERT, e pessoalmente o tenho
observado.
|
Fig. 20 − VENDEDEIRAS DO MERCADO DA FIGUEIRA DA FOZ
(Lit. da 3ª col. PALHARES, anterior a 1875) |
A própria crítica contemporânea pôs de sobreaviso quem houvesse de
utilizar tais elementos de informação; o catálogo citado transcreve da
Revista Literária do Porto, de 1842 e 1843, dois comentários que muito
importa ler e onde, em resumo, se afirma que às colecções MACPHAIL falta veracidade histórica; têm atribuições erradas (a mulher de Ovar, por exemplo, que registámos, é de
Ílhavo, e não como diz a colecção); há
denominações demasiado vagas e outras amplas demais; a modelação
anatómica é incorrecta: as formas parecem modeladas por proporções patagónicas; há inexactidões de trajos; os acessórios das figuras,
para compor os quadros, são inadequados; as legendas têm erros
gramaticais. Muito, judiciosamente se escreve: «Os editores devem compreender a transcendência da sua missão. Estas estampas, para nós, e
hoje, são menos curiosas; mas para os estrangeiros, e para os vindouros, hão de
/ 227 /
ser interessantíssimas: depois que a geração, que ora vive, se
tiver escoado toda por esses cemitérios; depois que as vagas
do tempo tiverem submergido o presente na voragem do passado; quando o
drama e a história se apoderar desta idade, os
/ 228 /
costumes portugueses hão-de ser procurados e consultados pelo
romancista, e pelo historiador-filósofo: aquele,
para achar um episódio real no meio do seu fantasiar; este, para
esquadrinhar no matiz
e na sucessão dos trajos alguns vestígios do
tipo moral, e das ideias predominantes das épocas e das povoações que já
foram...»
|
O comentário é perfeitamente aceitável e de bom conselho; torna-se
portanto necessário, sempre que for possível, submeter aquelas gravuras
à contraprova doutros elementos. Com essa precaução, cremos que não há
motivo para se rejeitarem; os nossos Museus, e várias famílias
da nossa Província, conservam ainda peças de vestuário que permitem
fiscalizar a exactidão dos desenhos coleccionados.
Sem título, cataloga ainda o
Sr. FERREIRA LIMA duas colecções de estampas avulsas, não
datadas: uma de sete,
litografadas, outra de três; da primeira, notamos um Homem de Ovar,
Espinho ou Aveiro que vem vender à cidade do Porto, da segunda
colecção, outra estampa idêntica e
ainda um vareiro de borda d'água vendendo bixas na cidade do Porto.
/ 229 /
Outra estampa avulsa aproveitável aqui e recenseada no
catálogo é um Paysan de Murtosa vendant à Oporto (Portugal)
que constitui o n.º 96 da colecção Musée cosmopolite.
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Fig. 21 − FEMME D'OVAR
(Desenho de H. GITTON, gravura de PORTIER; é o n.º 2 da col. Espagne
et Portugal; apresentando ainda a refª «Musée Cosmopolite, N.º 75».
Museu Municipal de Ílhavo; outro exemplar no Museu Municipal do
Porto. |
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Fig. 22 − HOMEM DE ÍLHAVO
(Desenho COLUMBANO no Almanaque ilustrado do Branco e Negro para
1898. |
Extratámos largamente o ensaio bibliográfico de FERREIRA LIMA em atenção
à grande raridade das estampas, dificílimas de reunir, e considerando
ainda a pequeníssima difusão do próprio
/ 230 /
catálogo, pois unicamente se imprimiram dele 50 exemplares − o que o
prefaciador, HENRIQUE MARQUES, justifica e louva pelo
/ 231 /
conhecimento que o autor tem do meio em que vive, pois, segundo
diz: «isto é só para meia dúzia de iniciados. Os outros não nos
entendem».
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Fig. 23 − VARINA DA MURTOSA
Aguarela de MACEDO
(Cromo do Álbum de Costumes portugueses, de 1888. |
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Fig. 24 − PEIXEIRA DE AVEIRO. ACTUALIDADE
(Aguarela de Alberto de Sousa.
Museu de Arte de Aveiro) |
Parece que era assim
a sociedade culta de 1917... Como será a de hoje?
Terão ainda razão HENRIQUE MARQUES e o erudito bibliógrafo Sr. FERREIRA LIMA?
Do que não resta dúvida é da grande utilidade do seu ensaio
bibliográfico, que devia absolutamente ser reeditado.
Tenho a satisfação de poder acrescentar a
este invulgar conjunto de
preciosidades, reunido pelo erudito coleccionador que é o Sr. Coronel
FERREIRA LIMA, a notícia doutra estampa antiga da região, que por mais
dum motivo nos interessa e se deve registar.
É também da colecção Musée cosmopolite, que o ensaio
bibliográfico recenseia em último lugar, e apresenta o n.º 75 daquela série geral,
declarando mais ser o 2.º da colecção Espagne et Portugal.
Representa uma ovarina (femme d'Ovar, como na legenda se lê); desenho admiravelmente proporcionado, e gravação primorosa, não é fácil que
outra estampa antiga de trajo local se lhe avantaje (fig. 21); realça o desenho, de sombreado correctíssimo, diferenciando
planos e dando a noção de volume, um ligeiro colorido discretamente aplicado, resultando de todo
esse acabamento uma
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estampa preciosa, digna de figurar nas mais selectas colecções
de gravuras.
Quando, adiante, procurarmos reconstituir o antigo vestuário feminino local, teremos ocasião de a analisar com o merecido
pormenor.
Além da sua incontestável beleza, outro grande merecimento
possui esta gravura; documenta o que acima notámos acerca da falta de originalidade e da incorrecção de desenho
das antigas colecções portuguesas.
Efectivamente, se percorrermos aquelas colecções de estampas avulsas de costumes portugueses, verificamos que todas elas
repetem, e até por vezes decalcam, as primeiras gravuras que
ilustram os livros estrangeiros de viagens em Portugal; parece
que, afinal, até os tipos nacionais foram descobertos pela observação de estrangeiros...; a curiosidade deles os marcou, e em
grande parte os conservou até nossos dias; foram estrangeiros
os seus maiores propagandistas; a nossa atenção só foi despertada pelo apreço por
eles concedido a essas figuras populares a que nós estávamos, talvez, demasiadamente habituados.
O decalque de todas as boas estampas estrangeiras pode
documentar-se largamente; a femme d'Ovar, do Musée Cosmopolite não fez excepção; descobriu-a MACPHAIL e utilizou-a, sem
escrúpulo algum, para a sua 1ª série, de 1841; compare-se a
nossa gravura com o n.º 17 − Mulher d'Ovar, daquela colecção,(3) e
vejam-se as judiarias que a pobrezinha sofreu na transcrição
litográfica.
Toda a elegância da figura desapareceu; atarracada, de
formas engrossadas, ficou logo desproporcionada; o trajo desfigurou-se; é maior o chapéu, desapareceram as barras da saia e
do lenço, e toda a graça com que o vestuário caía foi substituída
por absoluto empastamento de roupagens.
Quase a planificaram.
Acrescentaram-lhe uns laivos de paisagem, para disfarçar,
ou para enfeitar... mas o decalque é flagrante.
Aliás, com outras colecções sucedeu a mesma coisa; possuímos uma gravura em cobre, datada de 25 de Julho de 1768, feita
por M. LIART sobre desenho de FRAN.co SMITH, para a colecção
do «R.t Hon.ble Lord Baltimore», representando uma grega
(a greek Woman of Scio); pois foi sucessivamente copiada, e
já se deixa ver, para pior; por fim, até numa colecção portuguesa de litografias das raças humanas de todo o mundo ela
aparece... verdadeira ruína duma mocidade que foi radiosa mas
já muito longínqua...
/ 233 /
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Fig. 25 − ESTUDO PARA O TRAJO DA GAFANHOA NA ACTUALIDADE
(Aguarela de Alberto de Sousa.
Museu de Arte de Aveiro) |
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À repetição dos tipos
consagrados − et pour cause... −
nem o próprio COLUMBANO escapou; compare-se o seu Homem de Ílhavo (fig. 22) impresso no
almanaque ilustrado do Branco e
Negro para 1898, por ele assinado, com a velha gravura do Portugal illustrated, de KINSEY, em 1828 (fig.
11); o tipo manteve-se, dir-se-á, e o registo de COLUMBANO não tem nada de
censurável; mas é que se não procurava sair dos tipos conhecidos,
deixando-se, entretanto, perder muitíssimos outros igualmente
merecedores de serem fixados.,.
Simplesmente, a descoberta deles exigia esforço
e trabalho de vária ordem.
/ 234 /
É só depois de todas estas publicações iconográficas, e
já em nossos dias, que surgem estudos especialmente votados
ao trajo popular, dos quais a Beira Litoral, região que por agora
unicamente consideramos, beneficia também.
MANUEL DE MACEDO e ROQUE
GAMEIRO fixam em primorosas aguarelas e desenhos aspectos variadíssimos da indumentária
popular, ilustrando livros, revistas, jornais, e deixando-nos obra
imensa, lamentavelmente
dispersa, que os Museus deviam procurar reunir.
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Fig. 26 − RAPARIGA DE AVEIRO
(Bilhete postal de 1908, aproximadamente, reproduzindo trajo do 3º
quartel do século XIX) |
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Fig. 27 − CAMPONESA DE OVAR
(Bilhete postal ANTIGO, aproximadamente de 1908, reproduzindo
trajo da época) |
O conhecido Álbum de costumes portugueses, de 1888, reproduz nos seus
50 cromos várias aguarelas destes dois artistas, e doutros que só mais
incidentalmente se ocuparam de
costumes populares, como
COLUMBANO, CONDEIXA, MALHOA e RAFAEL BORDALO PINHEIRO. Lá vamos nós buscar a
varina da Murtosa (fig. 23) e o varino,
não assinados, mas que
sabemos terem sido pintados por MACEDO; e dele se
recolhe igualmente lá uma camponesa dos arredores de
Coimbra. Comenta a primeira e a terceira a pena
elegantíssima de MANUEL PINHEIRO CHAGAS; JÚLIO CÉSAR MACHADO acompanha a estampa do
varino.
Na esteira daqueles dois grandes mestres da aguarela seguiu, e continua, com extraordinária
felicidade, em nossos dias, o Sr. ALBERTO SOUSA, verdadeiro
temperamento de etnógrafo, que não só de artista, percorrendo
o país dum extremo ao outro e surpreendendo o povo português
nos seus mais característicos e tradicionais aspectos.
É já impossível catalogar a sua obra de pintor etnógrafo;
em Museus da Capital e das Províncias, e em colecções particulares, ela está fartamente representada já; na Beira Litoral
/ 235 /
existem trabalhos seus, documentadores de indumentaria popular,
nos Museus de Ílhavo e de Aveiro; mas é neste último, para o
qual expressamente trabalhou por incumbência do Conselho
Nacional de Turismo, que o estudioso encontra preciosas séries
etnográficas; melhor que em parte alguma, a graciosidade e
evolução do vestuário característico da tricana de Aveiro, do meado do século passado até
nossos dias, a imponência das irmandades nas procissões locais, o
pitoresco vivo das entregas dos ramos, a peixeira da beira-mar (fig. 24), o
marnoto das marinhas, o pescador da Ria, as
gafanhoas na romaria da Senhora da Saúde (fig. 25); xailes de merino e
de seda, chinelas de verniz, opas de
nobreza, gabões de burel, barretes encarnados, chapéus
de feltro de larga aba revirada, aventais de serguilha, manaias
alvíssimas, chapelinhos de veludo, redondos, tudo Mestre ALBERTO SOUSA
fixou
para a posteridade em seus cartões de aguarelista, donde irradia, na
sua magnífica pujança, a vida deste povo admirável e graciosíssimo que é
o aveirense.
|
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Fig. 28 − GENTE DE ÍLHAVO COM TRAJOS DO MEADO DO SÉC. XIX
(Bilhete postal reproduzindo aguarela de ROQUE GAMEIRO. É o nº 6
da «Colecção Portuguesa» do editor P. Guedes, de Lisboa.) |
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Fig. 29 − CAMPONESA DE OVAR
(Bilhete postal reproduzindo uma aguarela de ALBERTO SOUSA, 1935. |
É ainda a ALBERTO SOUSA que se deve a melhor colecção de reproduções
onde o trajo popular
português se apresenta
em vários passos da sua evolução. Queremos referir-nos ao
magnífico álbum publicado por aquele distinto etnógrafo − O trajo popular em Portugal nos séculos XVlIl e
XIX, em que a
Beira Litoral encontra abundante representação, extraída não só
das colecções acima referidas, catalogadas por FERREIRA LIMA, mas das
mais diversas proveniências.
Por acordo entre ALBERTO SOUSA
e o Arquivo do Distrito de
/ 236 /
Aveiro utilizamos para ilustração destes apontamentos as próprias chapas das suas gravuras que nos pareceu conveniente
reproduzir em abono das nossas considerações.
/ 237 /
Outra fonte de reconstituição da indumentária popular a
que recorremos é constituída pelas variadas colecções de bilhetes
postais, já reproduzindo fotografias de vestuários autênticos,
já reconstituindo pelo desenho ou pela aguarela aspectos antigos, ou contemporâneos também.
Possuímos, nas nossas
colecções, postais desses, contando já muitas dezenas de anos (figs. 26 e
27), outros de aguarelas de ROQUE GAMEIRO (fig. 28), até os de ALBERTO
SOUSA, contemporâneos (fig. 29).
Fotografias antigas, de
CARLOS RELVAS e doutros,
instantâneos colhidos na actualidade, tudo responderá à chamada que
oportunamente lhe fizermos, desfilando em animada ronda perante a nossa
curiosidade; por vezes ela terá a acompanhá-la, o calor de certa emoção
a que não pretendemos furtar-nos, e quase sempre a saudade
inerente ao remexer de
cinzas dum tempo cujos últimos ecos a nossa mocidade distante ainda
surpreendeu.
A esta documentação gráfica juntaremos o depoimento escrito que a
literatura regional arquivou, sempre que nos seja possível conhecê-lo,
mas sem a preocupação de produzir trabalho exaustivo, nem tampouco, fazer
história
completa e definitiva.
Só após algumas tentativas de agrupamentos a história do
trajo popular na Beira Litoral poderá ser tentada; a ideia da
sua história definitiva, desde já, serviria unicamente para por
completo nos afastar do presente esboço, onde, deve dizer-se,
alguma utilidade apesar de tudo se pode encerrar.
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BOEHN, o grande historiador do vestuário, atribuía às mutações do gosto
na indumentária e no adorno grande importãncia,
como revelação dum estado social económico e até mesmo
cultural (La Moda) voI. l, pág, VI).
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Fig. 30 − CAMPONESA DE EIROL NA ACTUALIDADE
(Pastel da pintora D. EDUARDA LAPA pertencente ao Dr. Francisco
ferreira Neves |
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Na pequenez do nosso minúsculo campo de
observação,
registar como alguns fenómenos dessa natureza passaram e
como estão evolucionando, pode igualmente levar-nos a conclusões de interesse
social em que valha a pena atentar.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
Continua no vol. V, pág.
59 −
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