A. G. da Rocha Madahil, Forais do distrito de Aveiro. Foral de Ílhavo, Vol. IV, pp. 179-199.

FORAIS DO DISTRITO DE AVEIRO

FORAL DE ÍLHAVO

TAMBÉM ao concelho de Ílhavo, na reforma de forais que D. Manuel I ordenou pela carta régia de 22 de Novembro de 1497 com o fim de uniformizar o sistema administrativo e tributário do reino, confuso pela grande variedade das disposições de aplicação local, foi outorgado foral novo.

E até à lei de MOUSINHO DA SILVEIRA, de 13 de Agosto de 1832, que em todo o país extinguiu os forais e anulou as doações régias, por aquele diploma manuelino se ficou regendo a vida concelhia, pois toda a actividade particular se subordinava ao disposto no foral, e por ele, directa ou reflexamente, era condicionada; atestam-no os vistos das muitas e sucessivas correições feitas ao município, quase todas elas perfeitamente reconstituíveis ainda hoje através dos questionários que ficaram exarados nos livros das vereações.

São páginas da vida administrativa local absolutamente inéditas que reclamam e merecem carinhoso estudo.

Apresenta o foral a data de 8 de Março de 1514.

A terra de ylheuo, como no registo final o diploma quinhentista a denomina, era já então concelho, de raízes mergulhando fundo no subsolo da nacionalidade.

Seguramente povoada antes da reconquista cristã do territorio colimbriense que impeliu o mouro para o Sul do Mondego, à terra de Ílhavo encontramos já referências documentais dos anos de 1037 a 1065, de 1088, 1095, 1149 e de 1163 a 1167, nos cartulários da Sé e da Mitra de Coimbra.

Dessas referências é lícito deduzir, até, certo desenvolvimento populacional da terra, que aparece expressa e repetidamente designada por vila iliavo (ou illiabum, ou ainda ilavum); como no caso sujeito deva entender-se o significado de vila é assunto que noutro lugar deixei já esclarecido por forma que se / 180 / me afigura definitiva; bastavam os termos dum desses documentos para excluirmos a hipótese de se tratar apenas duma herdade, granja, ou casa de campo com suas dependências, como em muitos outros documentos relativos à Idade Média o vocábulo deve ser interpretado; de facto, in villa iliavo quantum in meas cartas resonat é a fórmula empregada pelo presbítero Recemondo Maureliz em documento confusamente datado mas atribuível ao período que vai de 1037 a 1065 − reinado de Fernando Magno, rei de Castela e Leão − para fazer doação dos bens que possuía em Ílhavo ao mosteiro da Vacariça, documento que depois se transcreveu no cartulário conhecido por Livro Preto da Sé de Coimbra(1); ora isto é absolutamente diverso, em expressão e significado, das fórmulas do tipo de − mea vila de... − correntes em doações da mesma época, e a sua interpretação não oferece dificuldades. Ílhavo poderá ter sido outrora simples vila rústica, mas no século XI constituía já povoação, qualquer que tenha sido a sua organização local, o seu regime administrativo, que dos documentos conhecidos se não pode ainda inferir com segurança.

Para a história do desenvolvimento do pequeno povoado há que considerar a acção das Ordens militares e religiosas que desde muito cedo possuíram casais na vila, em terrenos junto aos cursos de água que dos lados de Salgueiro descem a atravessar a terra; sete casais em Ílhavo, e seis em Verdemilho registam as inquirições de D. Afonso II, de 1220, a favor de Santa Cruz de Coimbra. A Ordem dos Templários averbam, na mesma ocasião, um casal (Arq. do Dist. de Aveiro, II, 291).

A Mitra Episcopal de Coimbra igualmente possuía bens no concelho; a Ordem de Malta também; da mesma forma o Convento da Serra, de Vila Nova de Gaia, que na própria ocasião terá recebido o lugar de S. Pedro das Aradas, entre Aveiro e Ílhavo.

O foral dificultou o alargamento de tais domínios.

Nas informações paroquiais de 1758(2) foram os casais das Ordens justamente lembrados, a par do foral, pelo Prior JOÃO MARTlNS DOS SANTOS.

A toponímia local guardou lembrança desses senhorios: o casal, os casais, a azenha dos frades, são topónimos que ainda actualmente perduram. / 181 /

Para ilustração desse fundamental capítulo da história de Ílhavo reunimos, há muito, documentos de grande interesse que divulgaremos na primeira oportunidade, como temos feito com todos os que, a respeito de Ílhavo, desde 1922 vimos publicando − e não são poucos já. A história da terra já hoje não é a repetição pura e simples do artigo de PINHO LEAL no Portugal antigo e moderno, como durante largos anos foi. Mas está muito longe de se poder traçar conscientemente pela carência de documentos ao alcance de todos.

À data do foral manuelino, Ílhavo devia ser povoação de cerca de 130 fogos, ou mais, pois este é o número declarado no arrolamento que pouco depois, por carta de 17 de Julho de 1527, expedida de Coimbra, D. João III mandou organizar pelos corregedores das comarcas do Reino.

O escrivão Jorge Fernandes registou 50 fogos na vila, 19 em Alqueidão e 9 em Vale de Ílhavo, fora o que atribui a outros pontos da vila mais afastados. Determinava a carta régia que o escrivão encarregado desta diligência pela correição fosse «a cada húa das cidades vilas e lugares desa comarqa, e ë cada huú delles escprevera quantos moradores ha no corpo da cidade ou vila e arrabaldes e quantos no termo, declarando quantas aldeas ha no dito termo, por seus nomes, e quantos moradores ha e cada húa delas, e asi quantos vive fora delas ë quintãas casaes e herdades fora das ditas aldeas E asy escprevera no dito livro quantas legoas cada cidade e vila tem de termo pera cada parte, e com que logares outros partem».(3) [Nota: onde se encontra um trema deverá considerar-se um til]

De tudo isto se desobrigou o escrivão notando no cadastro, referido a Ílhavo, o seguinte:

A VILA DILHOVO

lt. Esta vila dllhovo, que he de Amtonio Borjes, tem 50 vizinhos no corpo da vila. Titolo do seu termo: − lt. As azenhas do VaI dllhovo de Bastiã Rõiz pera cima, 9 vizinhos. − Aldea dAlqeidãom, 19. − Aldea de Vila de Milho cõ azenha dAntonio Borges e a de Pouca Roupa, 23. − Aldea de Saa, 37.
Esta vila dllhovo tem de termo pera a parte dAveiro mea legoa, e pera vila de Çoza tem mea legoa, e pera a lrmida tê hú quarto de legoa.
Parte cõ as vilas da lrmida e Çoza e Aveiro. − Jorge Fernandez o esprevy.
Soma, 130 vizinhos
.
(4)

/ 182 / Seja-nos permitido transcrever aqui ainda o cadastro da Ermida, que a esse tempo era vila independente de Ílhavo; justifico a publicação considerando que a Ermida se encontra desde há muito incorporada no concelho de Ílhavo e ainda pelo facto de terem sido os documentos medievais desta mesma Ermida que nos conservaram as mais antigas referências à vila de Ílhavo presentemente conhecidas; de facto, a actual povoação da Ermida não é senão ,a directa descendente daquela hermida vocabulo  sancti christofori quod est in ripa maris inter uilla socia et villa lliauo que em 1088 o Conde Sisnando doou ao presbítero Rodrigo(5); prova-o o conhecimento directo da região, conjugado com os citados documentos do Livro Preto, e prova-o ainda a própria organização do cartório da Mitra Episcopal de Coimbra, onde a série de documentos relativos ao Couto da Ermida tem o seu início na cópia da doação de D. Sisnando e vem até ao século passado relatando factos e relacionando pessoas do conhecimento de todos nós. É identificação que reputamos incontroversa.

Dela declarou, em 1527, o recenseador de D. João III:

A VILA DA IRMIDA

lt. Esta vila da lrmida he hü couto do Bispo de Coimbra e ha nele no corpo da vila 9 visinhos.
E tem de termo 2 azenhas do Soelhal, 2 vizinhos.
Parte cõ ho termo da vila dllhovo, que sera hü terço de mea legoa, e traz demanda cõ o senhorio de llhovo sobre os termos.
Parte cõ a vila de Çoza e cõ a vila dllhovo. Jorge Fernandez o esprevy.
Soma, 11 vizinhos.


Às declarações de Jorge Fernandes atrevemo-nos a opor certas razões que se nos afiguram justificadas.

Não ignorando a fraca densidade da população à data referida, que levou A. DE SOUSA SILVA COSTA LOBO a descrever Portugal do século XV como vasto matagal, entresachado, afora algumas cidades e vilas, de pequenas povoações circundadas de breves arroteas, estranhamos que no corpo da vila de Ílhavo se encontrassem apenas 50 vizinhos, mesmo que consideremos esse número referido a fogos, como está assente pela crítica, e não a almas. Há manifesta desproporção com os 894 contados no corpo de Aveiro, 49 em Soza, 100 em Vagos, 175 em Esgueira, etc.

Convenço-me de que o escrivão Fernandes não visitou Ílhavo e se limitou a registar alguma informação obsequiosa, / 183 / embora pouco exacta, colhida em Aveiro, poupando-se à camihada, nesse tempo pouco convidativa, até Ílhavo.

E fundamento a desconfiança pelo confronto dos números acima; note-se ainda mais: escrevendo a respeito de Esgueira, principia ele o seu relato deste modo: It Fui eu esprivrãom a vila dEsgeira...; de Aveiro, a mesma coisa: It. Fui a vila dAveiro...

Outras ainda: lt. A 15 doutubro de 1527 anos em a vila de Çoza, estando ahi eu Jorge Fernandez...
lt. Fui eu esprivãom no dito dia atras a vila de Vagos...
It. Fui ao couto de Barroo dAugoada... Fui... a vila de Reqardaes... Fui a esta vila dOys da Ribeira... Fui... a vila da Emgega... Fuy... a vila dAmtoam...

Etc. Muitas outras de forma idêntica.

Agora a respeito de Ílhavo: lt. Esta vila dIlhovo...; e não afirma que visitou a terra; lt. Esta vila da lrmida...

E muitas outras também como aqui.

Mais ainda: dá como confrontações de Ílhavo − Ermida, Soza e Aveiro, apenas. Mas em Esgueira, onde esteve, colheu a informação de que esta vila partia com llhovo(6); e em Aveiro não esqueceu que a vila partia cõm ho maar. Ora com o mesmo mar confrontava igualmente, a essa data, a vila de Ílhavo, em faixa de terreno, suficientemente extensa para que não pudesse ser esquecida tal confrontação a quem inquirisse de extremas no próprio local.

É bem de ver: o recenseamento da comarca da Extremadura (a que a vila de Ílhavo pertencia então) começou em Coimbra em 15 de Agosto de 1527; estava concluído − não contando com a cidade de Lisboa, que foi numerada per Anrique da Mata, scripvã da camara de Sua Alteza, nem a vila de Alhandra − em 31 de Outubro logo seguinte; quer dizer: em dois meses e meio apresentou-se o cadastro duma vasta zona que dificilmente se poderia percorrer com os meios de locomoção da época em tão curto prazo, se houvesse o cuidado de cumprir escrupulosamente a carta régia visitando cada hüa das cidades vilas e lugares desa comarqa».

Jorge Fernandes não deve ter vindo a Ílhavo; e o recenseamento que apresentou é manifestamente deficiente. / 184 /
 

À data do foral era já senhorio da terra António Borges, como ali se declara; ascendentes seus o tinham sido também. E várias pessoas, e a coroa, o foram antes. Esboçámos, muito sumariamente, em 1922, o quadro dos donatários de Ílhavo; naquele momento não se pretendia mais do que mostrar como o brasão de armas dos últimos senhorios nada tinha com a terra, não devendo, por isso, ser adoptado para insígnia municipal, como a comissão administrativa alvitrava; ao assunto voltaremos em ocasião oportuna, com novos elementos que ampliam o que então ficou apontado, não sendo estas ligeiras notas senão despretensioso acompanhamento à publicação da lei pela qual a terra de ylheuo se regeu durante mais de três séculos.

Rosto do foral manuelino pertencente à Câmara Municipal de Ílhavo

Vai reproduzido em formato PDF o texto referente ao FORAL e a continuação do artigo das páginas 194 a 199.

TEXTO DO FORAL [PDF 1,96 MB]

Continuação do texto de Rocha Madahil. / 194 /

*

O exemplar do foral que nos serviu para a presente leitura é o da Câmara de Íhavo, que desde o século XVI o conserva, apesar das grandes vicissitudes por que tem passado o arquivo municipal, hoje muito reduzido e quase limitado a livros de vereações. Os documentos avulsos não têm merecido, infelizmente, a atenção devida e não foram coleccionados, extraviando-se quase por completo.

Concorreram para isso as sucessivas mudanças dos Paços do Concelho e a transferência do arquivo para Aveiro em 1895, donde regressou, restaurado o concelho, em 1898(7); mas a grande dispersão dos papeis avulsos da câmara é posterior àquela data; dos livros que encontrei em 1922 deixei ligeira relação no meu opúsculo de então, acima citado; contudo, já depois desse ano, pude ver outros livros do arquivo municipal em poder de particulares.

Desconhecemos o paradeiro do exemplar do foral que deve ter sido entregue ao donatário da terra; e quanto ao terceiro exemplar, destinado à Torre do Tombo, como no final do texto se declara, devemos esclarecer que nunca existiu.

Depois do cuidadoso estudo do foral novo de Esgueira que para o Arquivo do Distrito de Aveiro (voI. I, pág. 271 e seg.) escreveu o Sr. Prof. Dr. JOÃO MARTINS DA SILVA MARQUES, competentíssimo conservador do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, ficou assente que «Para a Torre do Tombo não se tiraram nunca originais alguns, mas apenas lá existiram e existem os registos.» De cada foral manuelino se tiraram, portanto «dois, e não três, apesar do que no final do mesmo se lê» (rev. cit., pág.273).

O foral de Ílhavo, que se encontra bem conservado, está escrito em dois cadernos de pergaminho grosseiro, sem preparo que o branqueasse; o primeiro, de quatro folhas duplas, e o segundo de duas; destas 12 folhas utilizaram-se 11 para o foral / 195 / propriamente dito, recebendo a 11ª a assinatura régia; no verso dela e na página seguinte lavrou-se o auto de entrega do foral que se realizou aos dois Djas Do mes De sentenbro De qujnëtos e dezaseis años No lugar De saa termo Do concelho De Jlhauo; ao 1º caderno antepôs-se uma folha inumerada, de índice, que serve de guarda à 1ª página, a da iluminura usual.

Cadernos sem assinatura, nem chamada, que também não existe de página para página.

Medem as folhas 260x190 mm; o texto, em mancha duma coluna só, abrange 192x125 mm e encontra-se disposto em 26 linhas, enquadrado por duplo traço de tinta que chega às extremidades de cada página. A cabeça das folhas (rosto), na parte central, numeração a vermelhão, do tipo usual nestes códices (romano-Iusitana chamada); à margem, a vermelhão também, as rubricas dos diversos capítulos do foral.

A regragem das folhas, a tinta, mal se descortina, tão ligeira deve ter sido; mas nas fls. IX, X e [12] divisam-se ainda alguns furos do compasso que calibrou a pauta; o aparo final do encadernador destruiu os restantes vestígios.

Ao contrário do que acontece nalguns destes códices (no foral da Bemposta, por exemplo, em que várias mãos intervieram na escrita do texto), a letra do foral de Ílhavo parece pertencer a um só escrivão; difere, contudo, da que mais correntemente se encontra nos forais; o seu corte aproxima-se mais do tipo da caligrafia minúscula humanística.

Iniciais góticas, a azul e a vermelhão, que alternam; as azuis assentam em fundo rectangular de filigrana encarnada, e as outras destacam de idêntico fundo verde.

Realçam o texto caldeirões azuis e vermelhos alternando também, antes das maiúsculas.

Quando o texto não chega ao fim da linha, acaba de a preencher uma folhinha de acanto desenhada com a mesma tinta.

Pelo que respeita a pontuação e a braquigrafia, o nosso foral não apresenta particularidades que o extremem do que é usual nesta espécie de códices.

Costumavam os forais manuelinos trazer iluminada a primeira página; pouco diferiam, estas iluminuras; por excepção, incluíam às vezes no conjunto o brasão local, como acontece com o foral de Coimbra e o do Porto; outras vezes, a esfera armilar de D. Manuel, como em Lisboa, Santarém e Vila da Feira; mas tudo isso era raro; o usual era o brasão do Reino dentro dum grande D, princípio de Dom Manuel Per graça de deus... no ângulo superior esquerdo da página, e uma silva, que variava muito de composição, enquadrando a parte inferior da mesma.

Assim acontece no foral de Ílhavo; nem outra distinção se justificava, aliás.

A referida inicial aparece aqui pintada a azul escuro, em / 196 / folhagem estilizada, cingida por braçadeiras verdes, deixando ver 'o interior das hastes a carmim escuro; toda a letra, avivada a traços brancos, assenta em fundo esquartelado de cor-de-rosa e preto, estofado de ornatos a branco. O campo limitado pelo D, cheio a azul claro, apresenta então as armas do Reino segundo a, composição da época, rematadas pela coroa real aberta, tudo com suas cores e metais próprios.

Para baixo, a enquadrar o texto, graciosa silva muito simples mas de grande equilíbrio decorativo, de folhinhas miúdas com quatro flores azul escuro, quatro encarnadas, uma branca e profusão de botõezinhos de ouro. A iluminura foi há poucos anos restaurada.

Autenticava este foral o selo régio, de chumbo, suspenso de cordão que passava por todas as folhas, no ângulo inferior esquerdo; perdeu-se já, como na maioria dos forais aconteceu; restam os orifícios por onde o cordão atravessava.

A encadernação do foral é ainda a da época: pastas fortes, de carvalho, medindo 274x200 mm, revestidas exteriormente de carneira a que aplicaram aguada muito escura; sobre o coiro correram, a seco, um rlo de silva em toda a volta, junto às extremidades; dentro deste rectângulo, um losango do mesmo motivo; tudo isto debruado e ligado por um feixe de quatro filetes; todo o campo picado de florinhas simetricamente dispostas.

Lombada de 4 nervos; brochas de latão, sextavadas, aos cantos da capa, e outra ao centro, mais forte, circular; as duas pastas, que são iguais, uniam-se por meio de duas travincas de coiro com colchete de metal; do conjunto resta apenas a fêmea.

Pelo lado de dentro, as duas pastas de carvalho foram forradas com fólios membranácios dum códice do mesmo formato, que são, por si, duas preciosas relíquias merecedoras de cuidadoso estudo. Trata-se de duas folhas dum dicionário latino, medieval, escrito a duas colunas em caligrafia minúscula carolina.

Os vocábulos registados pertencem todos à letra A; e em cada um deles a inicial foi cheia a encarnado e a verde, com um sentido decorativo muito primitivo; as duas folhas lêem-se ainda quase por completo numa das faces, pois a outra, como dizemos, foi colada, a forrar a madeira.

Copiamos, a seguir, os vocábulos iniciais, suprimindo a significação que o dicionário lhes atribui, para não alongar demasiado esta nota: Aquilo uentus . Anquirere . Apud . Adsipere . Anxur . Aquarioli . Aqui. Apellinem . Aperta . Abditiui . Ape . Apua . Abs . Apollinares ludos . Apiculum filum . Abacti magistratus . Agere . Athanuium . Atroces . Auguraculum . Aborigenes . A . Auentinus mons .

Não nos sendo possível, por agora, demorar-nos no estudo destes dois preciosos fragmentos, para eles chamamos a atenção de quem a tão elevado assunto possa dedicar-se. / 197 /

A utilização de folhas de códices membranáceos para este fim e para encapar livros foi prática muito corrente em todos os tempos; inúmeras preciosidades se têm reconstituído com fragmentos desses, em todos os países. Trazemos justamente em estudo de identificação vários fólios, por nós encontrados, de códices visigóticos que revestiam livros do Cabido da Sé de Coimbra, e outros fragmentos contendo legislação medieval portuguesa que se nos afigura inédita.

A fragmentos assim dedicou o consagrado mestre da Paleografia em Portugal, Sr. Doutor ANTÓNIO DE VASCONCELOS, sábios estudos que publicou na revista Biblos nos voIs. IV e V (1928 e 1929) e que não podem ser esquecidos.

Em outros forais manuelinos temos nós encontrado mais fólios no género dos que o foral de Ílhavo apresenta; ocorre-nos, por exemplo, o de Vouzela, de que há anos nos foi pedida leitura; o assunto tinha suficiente interesse científico para justificar, até, uma busca sistemática em todos os forais existentes, se não fora a apagada e vil tristeza que caracteriza a vida dos arquivos portugueses e da alta cultura do nosso país.

Como acima dizemos, no verso da fl. [12] e na seguinte lavrou-se o auto de entrega do foral; está quase ilegível, em consequência de terem pretendido avivá-lo com as celebradas águas declaratórias; eram estas uma solução de noz de galha e çumagre que permitia ler, na ocasião, mas inutilizava o pergaminho transformando-o em mancha uniforme, escura.

Essa prática usou-se muito, infelizmente, tendo estragado inúmeros documentos; hoje empregam-se outros processos, inofensivos, quando se pretende avivar a tinta antiga de base de noz de galha e sulfato de ferro ou caparrosa verde.

Com incalculável trabalho tentámos a leitura desse perdido auto, documento único e de real importância para a história de Ílhavo; chegámos ao resultado seguinte, que, no entanto, damos sob alguma reserva devido ao estado de ruína quase absoluta duma ou outra palavra:


«aos dois Djas Do mes De sentenbro / De qujnëtos e dezaseis anos No lugar / De saa termo Do concelho De / Jlhauo sendo hy aº Vaãz JuJ z / Do concelho De Jlhauo Jº pjrez / Djogo ferrnandez Vereadores ho pre / sente ano Djogo Djaz Jujz que foy / año pasado aº gonçalluez py (?) verea/Dor outro Dese ano pera caso / foram chamaDos pareceo / hy bras De fereyra escudeiro (?) / morador ë a Vylla De aveyro e logo / per elle foy apresêtado hü / requerymmto asynado per sua alteza / que se logo hy leo toDo e caba/Do De ler apresëtou este / forall que se leo toDo De berbo / a berbo ë pesoa De toDos e // ppruujcaDo como Dito he ho être/gou ao Dito Jujz e ofycyaês sse lhes / requereo que garDàsem
/ 198 / e conprisem / segunDo nelle Erra conteuDo que / lhe paguasem logo ho que fezera / De custo setecentos e trinta e seis rreaes Esta/nDo asy fernã gonçalluez almoxarife / De antonjo borges senorio Da Ditta terra / e asy sambastyam ferrnandez seu se/cuDeyro morador ë Aueyro testemunhas que presëtes / Estauã Jº anDre aluaro Gomez Jº / ferrnandez moradores ë saa e outros / Eu lopo ferrnandez tabeliam ppruujco ë Dita terra que todo foy presëte que este / escreuj −

Entre a assinatura de D. Manuel I e o princípio do auto de entrega foram lançados vistos de várias correições, e a seguir ao auto também; contámos, ao todo, 29, dos anos de 1626, 1629, 1638, 1669, 1678, 1694, 1695, 1702, 1709, 1713, 1729, 1733, 1736, 1738, 1739, 1740, 1748, 1749, 1750, 1792, 1793, alguns sem data, e, mesmo ao lado da assinatura régia, na margem, o de 1832 que parece ter sido o último.

É natural que outros tenham existido, em folha de guarda que se terá desligado do volume; os de 1629, 1638, 1669 e 1695 foram datados de Verdemilho; o de 1713, de Esgueira; e o de 1626, de Ílhavo; os restantes não registam o lugar onde a correição foi realizada.

Em Verdemilho tinha o donatário o celeiro e a casa da sua administração; Esgueira era a sede da comarca.

Entre os vistos lê-se esta nota: ho Ano de 1655 Seruio m.EI Silv.ra dalgueidaõ por ureador e iuis pela ordenação.

Publicámos este mesmo foral em 1922, no opúsculo aqui várias vezes citado; supomos que a essa data estaria inédito; ainda hoje lhe não conhecemos outra publicação. A leitura que então demos diferia desta, na grafia adoptada; mas a de hoje não é menos rigorosa; desdobrámos todas as abreviaturas, dando em itálico as letras que no texto se não encontravam: em 1922 seguíramos critério diverso do que posteriormente adoptámos para as nossas publicações documentais.

Preconizei, em 1922, o estudo comparativo do foral com os da região; como quase todos eles estivessem inéditos, tenho publicado no Arquivo do Distrito de Aveiro quantos me tem sido possível alcançar; dos lugares que circundam Ílhavo, lá se / 199 / encontram já Esgueira, Aveiro, Soza e Vagos; prosseguiremos com o programa anunciado até onde nos for possível; entretanto, quem deseje estudar o foral de Ílhavo dispõe já de elementos que em 1922 faltavam inteiramente ao comum dos leitores.

A par das disposições fiscais, há conclusões da maior importância local a tirar dos parágrafos consagrados a marinhas, pescado, maninhos e montados.

É, na verdade, a estratificação dos séculos que faz a História; mas só o trabalho de muitos anos de investigação permite que ela se possa escrever.

Quando em 1934 organizámos as bases do Museu Municipal de Ílhavo, que mereceram ser aprovadas e receberam a execução que é do domínio corrente, propusemos uma sala de Arquivo; devido às incalculáveis dificuldades com que a instituição tem lutado, compreensíveis, aliás, em plano de tão grande monta, insuficientemente dotado, ainda não foi possível instalar esse projectado arquivo; mas o seu lugar ficará sempre em aberto, como base para a futura história da terra; aí têm o mais lógico e digno cabimento os .ivros antigos da Câmara Municipal. Destacando de todos, em mostrador que lhe proporcione o merecido relevo, o foral novo que D. Manuel I em 1514 outorgou à terra de ylheuo.

A. G. DA ROCHA MADAHIL

_________________________________________


(1)
− Trazemos presentemente em publicação o referido cartulário, de capital interesse para o conhecimento da Idade Média portuguesa, sobretudo na região de entre Douro e Mondego. O documento acima aludido encontra-se publicado nos Diplomata et Chartae (P. M. Hist.) e foi sumariamente estudado no nosso opúsculo de 1922 − llliabum, série de subsídios para a história de llhavo-I-um projecto de brasão de armas concelhio

(2) − Cf. o nosso opúsculo Ílhavo no século XV/lI − As informações paroquiais de 1721 e de 1758 integralmente publicadas pela 1.ª vez. Fig. Foz, 1937.

(3) − Publicada por ANSELMO BRANCAMP FREIRE, in Arquivo Histórico Português, voI. VI, pág. 282.   

(4) −  Ibid., 277

(5) − cf. llliabum cit., pág. 50.

(6) − Que assim continuou a ser, documenta-o o termo da Demarcaçaõ do Con.co de Esg.ª Com o con.co de Ilhauo, feita em 10 de Outubro de 1731, que tenho presente no respectivo Tombo original, do cartório de Lorvão.

É documento do maior interesse, como todos os restantes do referido Tombo, organizado para documentar a jurisdição que o Mosteiro de Lorvão possuía em Esgueira.

Era por meio dos casais de Sá que o concelho de Ílhavo partia com Esgueira; a ligação de Sá a Ílhavo remonta, pelo menos, a 1354, ano em que D. Afonso IV doou os dois lugares a sua neta a Infanta D. Maria que casou com o Infante D. Fernando, de Aragão. A desanexação que actualmente se verifica provém dos meados do século XIX.

(7) − O concelho foi suprimido pelo Decreto de JOÃO FRANCO, de 21 de Novembro de 1895; o arquivo seguiu para Aveiro em 26 desse mês, acompanhado de polícia de Aveiro e do seu comissário, que era o Dr. Eugénio de Albuquerque Sanches da Gama; ia tudo em quatro char-à-bancs: dois que vieram de Aveiro e dois de Ílhavo.

O restabelecimento do concelho foi decretado em 13 de Janeiro de 1898, tendo o arquivo voltado para Ílhavo em 28 desse mês, na galera da fábrica da Vista Alegre. Feita a instalação, conta o jornal "O Paiz", de 2 de Fevereiro seguinte, o administrador interino, Dr. Manuel Maria da Rocha Madahil, deu posse à comissão administrativa, que elegeu Alberto Ferreira Pinto Basto presidente da Câmara, e Augusto de Oliveira Pinto vice-presidente.

Nota: onde se encontra um trema deverá considerar-se um til.

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