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Sérgio Paulo Silva, Salreu, uma aldeia em papel de arroz, 1ª ed., Estarreja, Outubro 2010, 56 pp.

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Trabalho «reservado» às mulheres este o de preparar a terra para o cultivo do arroz em águas do sul. Foto gentilmente cedida por Júlio Pomar.

Qualquer criança, desde tenra idade, conhece o arroz. Vai por vezes quotidianamente à mesa acompanhando os mais diversos pratos, podendo coroar as refeições como sobremesa. Arroz doce, em travessas ou pratinhos, a que um toque de canela acrescenta sabor e não raro, na sua decoração, momentos de arte e fantasia. Mas, quando chega à mesa e muito antes de passar pela cozinha, já foi descascado e limpo e não pode mais voltar a ser arroz. Depois de removida a casca o grão poderá manter o pericarpo intacto, como qualquer grão de milho ou de trigo, mas nunca mais poderá voltar a ser gente porque é exactamente a casca que o protege e lhe dá a possibilidade de multiplicação.

Como disse, nos tempos da minha infância o arroz era semeado em viveiros e depois transplantado para o campo e disposto, pezinho a pezinho, com intervalos regulares entre cada planta porque cada planta, tal como as pessoas, precisa do seu espaço para se desenvolver e realizar no destino que lhe deu o Criador: crescei e multiplicai-vos!... Este processo de cultivo tinha a vantagem de a planta estar à frente dos infestantes e era praticamente reservado às mulheres que levavam o dia, de sol a sol, enterrando as jovens plantas. Este processo, ainda hoje praticado noutros quadrantes, perdia-se na memória dos tempos e foi dando lugar ao actual, ou / 21 / seja, passou a ser semeado directamente no local definitivo com recurso à química para controlar as pragas de ervas daninhas, os tais infestantes.


Campos de Salreu. Fotografia de Maria Lamas para o livro «Mulheres do meu país». Note-se o barril para a água, a foicinha, os lenços...

A sementeira do arroz tem lugar em Abril/Maio e numa fase primária fazia-se uma mergulha prévia, dentro de um saco de serapilheira, para que as sementes entumecessem e ganhassem penso. Esta mergulha prévia fazia-se para que o arroz já fosse talado e assim, beneficiando de lamas em suspensão, ficava completamente tapado e rapidamente enraizava. Para além da mergulha, os agricultores também se socorriam dos seus currais de gado, enterrando os sacos debaixo das manjedouras, sacos que cobriam com alguma palha e com estrume. O cereal, que tinha sido molhado, talava com a fermentação do estrume. Se o lavrador se desleixasse e deixasse os sacos demasiado tempo, era um problema porque as plantas enleavam-se, enriçavam-se umas nas outras.

As sementes que ficassem a boiar na água ou estavam chochas ou furadas pelo gorgulho.

Este novo modo de trabalhar o cereal continuava, se é que não incrementava mesmo, a necessidade do labor humano. Porque era necessário mondar para desafogar as plantas e porque era necessário expurgar os arrozais das ervas daninhas (numa primeira fase o recurso à monda química não estava generalizado), sobretudo da milhã vermelha, com barbas, que se assemelhava ao arroz e que só os olhos calejados distinguiam da milhã branca. Recorriam então os proprietários aos braços que tinham em casa, mulheres e filhas... Como, porém, eram insuficientes, para tantas / 25 / terras, rogavam-se mulheres de Veiros e da Murtosa que vinham em maltas numerosas por soldos de miséria.

Falo-vos dum tempo em que, desde a linha do comboio até às águas largas, até não haver mais terra, poucos eram os juncais e mais raros ainda os terrenos com canízia. Tudo eram arrozais a perder de vista e não havia um palmo de terra que fosse desperdiçado.

Esta abundância motivou a existência duma fábrica de descasque na Quinta do Visconde, ao fundo, servida pela Rua do Mato, tendo funcionado, no mesmo local uma fábrica de lacticínios produtora do célebre "Queijo Salreu", tipo flamengo, cujo rótulo era a coroa do Visconde. Quando essa fábrica acabou, o alvará passou para o industrial Lopes & Alves passando o afamado queijo a ser fabricado em Estarreja mas mantendo a mesma marca. Na história destas duas fábricas há um facto que é de realçar: a montagem de todas as máquinas e a invenção ou reconversão de algumas foi obra do chauffeur do Senhor Visconde, um alemão de nome ano. Nesta fábrica de descasque trabalhariam algumas dezenas de pessoas mas, ao tempo da minha infância, já não havia na quinta quaisquer restos de maquinaria, ou instalações que a tivessem suportado, restando somente o velho portão de ferro que lhes dera serventia. De outra dimensão e importância era a fábrica da família Marques Rodrigues, Hidroeléctrica, junto à estação da CP em Estarreja e que foi alimentada por outro factor marcante da vida do concelho, a produção de energia eléctrica própria, em mini-barragem, no curso do Antuã, um pouco a montante da / 27 / Ponte Velha, num sítio de antigos moinhos e a que ainda hoje se chama turbina. Os arrozais geravam uma nova riqueza, a riqueza industrial...

E outras riquezas de que se não daria grande conta. Não estando ainda mecanizada a agricultura, todos os trabalhos eram feitos com recurso aos animais. Abundavam as vacas marinhoas (que aos lavradores acrescentavam a riqueza das crias) e bois, para os trabalhos que requeriam outro poder, outra força, bois castrados que em toda aquela escravatura ocupavam a linha da frente: o lavrar dos terrenos e o transporte de árvores ou batatas, de milho ou de marés de moliço. Por vezes carregos mais leves, como o junco ou as palhas que eram sempre volumosos e teriam até influenciado a arquitectura dessas épocas: atente-se no tamanho dos portões das casas de lavoura que ainda existem, nos padiais, na sua altura...

Nesses anos, a via de acesso ao apeadeiro de Salreu, ao esteiro e às marinhas, não era a estrada de paralelos (cubos) de granito que hoje é mas uma congosta de saibro de declive acentuado onde o mau tempo abria profundos sulcos. Por esse caminho desciam todos os carros de bois. No regresso, carregados, os animais não conseguiam vencer o caminho sem o auxílio de outra junta de bois ou de vacas, amarrando-se uma tiradoura ao chavelhão, pelo que os lavradores optavam por guiar os animais à volta, pelo Largo do Seixal onde, mesmo subindo, o declive era menos pronunciado, mais fácil de vencer.

Tardavam a aparecer os primeiros tractores. Lavrador que tivesse / 29 / uma só junta de vacas era um lavrador remediado, sendo pobre o que tivesse uma carroça com uma vaquita. Nas casas abastadas havia currais bem guarnecidos de gado para acudir às inúmeras tarefas. Só que a um maior número de cabeças de gado e de propriedades acresciam outros encargos. O gado, entre o mais, necessitava de camas e os terrenos de estrume (para além das marés de moliço que os lavradores compravam) para a sua fertilização. Havendo pouco junco no campo e como a bandeira do milho se aproveitava como alimento do gado, as camas das vacas eram fornecidas pelos pinhais: tojo, queiroga, alguma carqueja, algum outro mato espontâneo. Os pinhais forneciam ainda, nesses anos em que as botijas de gás ainda não existiam ou eram apenas privilégio de raras famílias, a caruma, as pinhas, a lenha e madeira. Foi assim que os lavradores de Salreu, com o dinheiro que obtinham do arroz, se tornaram proprietários de muitos dos pinhais de Soutelo, Albergaria-a-Nova e Albergaria-a-Velha para além daqueles que já então estavam na posse de famílias salreenses muitos dos quais se mantêm ainda hoje na posse dos herdeiros desses antigos lavradores. Alguns que, com o evoluir da vida, ficaram situados em zonas urbanas e industriais, foram enormemente valorizados e compensaram, copiosamente, a desvalorização dos arrozais pelo abandono e desinteresse a que foram sendo votados nas décadas mais recentes.

A mecanização no cultivo do arroz chegou primeiro às grandes explorações do sul, do Tejo, do Sado, do Mondego, tornando-as mais produtivas e mais rentáveis e que já de si o eram devido à / 31 / temperatura das águas. As águas do Vouga e do Antuã, mais frias que as do Mondego ou mais ainda que as águas dos rios do sul, não permitiam grandes produções por hectare em comparação com aquelas. De entre as variedades de arroz, foi o rajado que encontrou aqui o seu clima mais favorável. O arroz rajado reconhece-se pela tonalidade avermelhada do grão, muito cascudo e que na germinação mostra como que um bico saliente, mais pronunciado que nas outras variedades, dando um quilograma, depois de debulhado e limpo, cerca de seiscentos gramas. E, por falar em bico saliente, ocorre-me que quando uma criança nos surpreende com qualquer atitude ou dito se diz está-se a sair da casca... Terá isto a ver com o arroz ou com a nascença dos pintainhos? Vamos pensar que é da casca do ovo, porque a um fedelho que nos faz alguma logo lhe arregalamos os olhos:

Anda cá meu melro que eu dou-te o arroz!..., e, neste caso, já não há dúvidas, pois não?!


Vista aérea dos campos de Salreu. Foto da Câmara Municipal de Estarreja.

Mas voltemos ao assunto em que devo salientar que os anos de, digamos, mais êxito para os lavradores de Salreu foram os das décadas de 1940 e 1950, nomeadamente os anos da candonga aquando dos racionamentos provocados pela Guerra Civil de Espanha / 2ª Guerra Mundial. Nesses anos, ao contrário, por exemplo, dos cultivadores de Oliveira do Bairro, os cultivadores de Salreu reacusavam-se a manifestar as suas produções à Comissão Reguladora do Comércio pelo que nada podiam vender à Hidroeléctrica. Vendiam-no essencialmente aos moleiros de Ul e aos moleiros do concelho por preços superiores aos que as fábricas / 33 / pagavam. Nesse período, o da candonga, esses moleiros chegavam a pagar 16$00 por Kg vendendo-o depois por 35 e 40$00 já descascado. Nesse período a Hidroeléctrica (como outras fábricas) teve paragens mas não por falta de matéria-prima, mas por imposição da Comissão Reguladora que posteriormente as indemnizava. Só na década de 1960, quando a Comissão se foi tornando mais permissiva, é que se tornou possível a venda de quantidades apreciáveis à fábrica de descasque. Só que os preços vinham caindo e, pelas razões apontadas, a colocação das colheitas era cada vez mais difícil ou penalizadora, o apelo da emigração grassava. Depois do Brasil, da América, da Venezuela, a França tornara-se um sonho comum. Todos os que trabalhavam na agricultura auferiam salários muito baixos que, na maior parte dos casos, não iam além da subsistência. Quem trabalhava terras arrendadas via os proprietários arrecadar a produção sem que lhes restasse nada. Que mulher não trocava o trabalho no campo onde, apesar das meias, as sanguessugas lhes infernizavam as pernas, por um trabalho (igualmente violento, bem o sei, bem o vi) numa tijoleira? Que homem não trocava a rabiça por um emprego no Amoníaco Português ou na Celulose de Cacia? Subitamente desprovida de braços, a cultura do arroz apenas podia vingar com o recurso à mecanização e ao uso generalizado da química e financeiramente era ruinosa. Multiplicaram-se os juncais e a canízia foi-se assenhoreando da vastidão dos terrenos. A cultura do arroz, agora que vai singrando um novo século, continua, mas já é só uma questão de teimosia e de subsídios, ilusório / 35 / oxigénio que os lodos sorvem. Resta a memória. E a de há menos de um século é a única possível. Feita de mais silêncios que de palavras, de raras imagens que por toda a parte procurei para ilustrar este arrazoado. Um dia, à porta do café, numa roda de salreenses, questionei um amigo sobre isso. Toda a sua família tivera um passado de proprietários e cultivadores, ele próprio, apesar da idade, tinha comido desse pão que o diabo amassara, poderia ter alguma fotografia... A sua resposta foi desabrida:

– Fotografias? Desse tempo?!... Quem as tiver, rasga-as para não se lembrar mais. Quem é que quer recordar esses tempos? Se as pessoas tivessem agora que voltar a passar os mesmos trabalhos, enforcavam-se...

Nessa roda de amigos estava um mais velho que nós, que, tendo nascido em Soutelo, viera servir para Salreu com onze anos de idade. Envolveu-se na conversa. O pai tinha ido para o Brasil quando ele tinha seis anos e só haveria de voltar quando o menino se tornara já homem e cumpria serviço militar. Como a sorte lhe fora madrasta, deixara passar os anos com poucas notícias e nenhum dinheiro que valesse à mulher que deixara com seis filhos. A pobre, para acudir às crianças, aceitava o trabalho que aparecia e também ela tinha penado nas marinhas do arroz. Não possuindo terras, arrendava-as, e cultivava milho cuja produção ia inteirinha para as mãos dos proprietários, como pagamento da renda, ficando para ela a palha desvaliosa. Mas, então, porquê arrendar? Porque as crianças tinham que comer e as terras sempre davam, pelo meio do milho, algum feijão, couves, qualquer coisa que / 37 / enganasse um porquito. A comida, contava-nos, era todos os dias couves com batatas e batatas com couves, regadas com banha de porco... às vezes uma sardinha... e as couves estavam sempre no olho! Era, pois, gente assim que aceitava trabalhar no campo em condições desumanas só porque era preciso sobreviver, sonhar com melhores tempos.
Já o disse: foi a paixão da pesca e da caça que me levaram muito novo para o campo. Nesses anos, já tão distantes, a ria era pro-funda, cheia de moliço - refúgio de peixes - os seus braços, os esteiros, navegáveis, o rio Antuã não estava assoreado como está hoje e não minguava no verão como agora míngua. Então, os invernos eram diferentes, com cheias enormes, avassaladoras. Num desses invernos passei um agradável domingo a passear de barco à vela ali mesmo defronte onde hoje está a subestação da CP. O barco era uma bateira de ervagem, uma dessas bateiras que se viam no esteiro de Salreu ou no esteiro de Canelas, ou ainda no aconchego do Antuã, e que serviam para o transporte de juncos, dos sacos de arroz, movimentação de bezerros... Os sacos de arroz que essas bateiras, fortes e negras, transportavam provinham da debulha que era feita em piões, pelos cavalos, nas eiras feitas de solão batido e encostadas aos palheiros. Chegavam até elas trazidos em zorras ou à cabeça das pessoas. Imagine-se o seu caminhar, com os sacos à cabeça e os pés a enterrarem-se na lama... Nesse domingo, tanta era a água que o Zé Remígio (um pouco mais velho que eu e hoje a residir na Alemanha) armou a vela na bateira do pai e foi uma festa!

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As enguias eram muito abundantes na ria (atente-se na construção, na Murtosa, de uma fábrica, a Comur, para exploração dessa fartura) e, como se sabe, as enguias jovens sobem sempre os cursos de águas doces. Com essas cheias que tudo inundavam, as enguias que subiam espalhavam-se e, quando as pombas enfim esvoaçavam trazendo no bico o raminho de oliveira, quedavam-se para o moroso crescimento. Quedavam-se nos poços, quedavam-se nas valas que regurgitavam, nos rios e ribeiros e não era difícil, em Setembro, aquando da ceifa do arroz, encher à mão um saco de enguias nos poceiros e na lama, pelo meio dos restolhos. Claro que já não eram gostosas, sabiam a lodo. Mas eram enguias...

Outro peixe de que me recordo: os pimpões. Penso que estarão desaparecidos de tantos anos que não vejo um só ou deles me cheguem notícias. Ainda há vida nas valas. Noto-o pelas garças e pelos guarda-rios mas não sei o que seja, sim, será um quase nada que não sei o que seja que ainda dá para iludir a fome a estas aves. As garças e os guarda-rios: eis duas aves emblemáticas dos campos de Salreu. O guarda-rios, muito belo na sua configuração fusiforme, adaptada ao mergulho vertiginoso para a captura dum peixito, extremamente belo nas suas cores mágicas que vão do ocre ao azul fulgente, tão belo que as porcelanas da Vista Alegre lhe dedicaram duas peças de colecção, e a garça, todas as várias garças, mesmo as boieiras, no seu branco esquelético são sempre de distinta beleza, sobretudo a real quando em postura de alerta, por um perigo ou por um peixe. Numa gravura fina, no guarda-mato / 41 / de uma das minhas armas, está gravada uma garça real e só essa gravura vale para mim a arma, pela mestria do artesão e pela poesia do seu imaginário. De resto, outras aves têm ou tiveram os campos de Salreu como local privilegiado de vida. O pato-real, tão emblemático nos arrozais que uma conhecida marca de arroz o escolheu para ilustração das suas embalagens; as narcejas que com os seus longos bicos decifram os segredos da lama; as codornizes da milhã tão gulosas e que só partiam quando deixavam de ter os pés enxutos e tantas, tantas outras aves como os pardais que nesses anos formavam nuvens, como as marrequinhas que vinham no inverno ou o triste rouxinol dos caniços, tão pequenino, tão discreto mas com um canto que fazia perdurar na alma a beleza do desamparo de todos aqueles sítios tão expostos ao frio, ao vento, à solidão.

As cegonhas têm também neste meio as suas moradas electivas. Contudo, nem sempre a sua presença ocorreu na vastidão do baixo Vouga. Existiu, num velho eucalipto de que certamente já ninguém se lembra e que ficava perto do apeadeiro, um ninho com um casal há cerca de cinquenta anos. Ou pelo derrube da árvore ou por qualquer outro motivo, desapareceram e durante longos anos nem uma só visitava ou cruzava os céus do campo. As alterações climáticas trouxeram-nas e fizeram delas uma praga. São assim um fenómeno recente e escolher o seu perfil como símbolo da freguesia só por ignorância ou parvoíce. Inicialmente a sua presença foi muito prestimosa pela ajuda que deram no combate (que estava a ser feito selvaticamente – e em vão – com produtos / 42 / químicos) a uma praga nova, a dos lagostins de água doce mas, com a proliferação que tiveram têm operado alguns desequilíbrios de monta. Como tudo lhes serve, em tudo fazem razia, cobras de água ou peixes, juvenis de outras espécies ou rãs. O coaxar das rãs, em antigas noites de verão, era tão intenso que se ouvia no Largo da Igreja... e agora são poucas as que se vêm e nenhumas as que se ouvem. E ainda, mercê das mesmas alterações climáticas, se vem agravando o cenário, já que se vêm tornando sedentárias, quebrando os seus hábitos migratórios multisseculares.

Outras, quiçá menos vistosas, também aqui permaneceram desde sempre como o milhafre ou as corujas, branca e cinzenta, que sempre demandaram o campo pela abundância de ratazanas, seu alimento base.

Às vezes, de noite, ouço o piar triste, árido, de algumas outras em viagem para as marinhas e fico sempre a sorver as suas rotas imaginárias como quando escutava o ciciar das asas dos patos nas noites que transbordavam de escuridão e eu porfiava na sua espera.


Mulheres plantando arroz. Excelente fotografia do Eng.º Rocha Soares. Atente-se nos chapéus e lenços e sobretudo no uso de meias.

Por quantos anos mais prosseguirá a cultura do arroz nos campos de Salreu? Porque, mesmo que sem a expressão de tempos passados, nos faz falta ao coração, mais que à barriga. Quando me ponho a conversar com quem a vida condenou a esse degredo dou-me conta, de resto como acontece com pessoas que penaram na faina maior ou na guerra colonial – e são meros exemplos – que há nas suas palavras e no brilho dos olhos um perfume de nostalgia e poalhas dum encantamento algures perdido. Contou-me a Dores que, quando caminhavam (na ida?, na volta?), se consolavam de / 43 / comer amoras que colhiam nos silvados marginais, tomavam banho no rio, umas tomando conta das outras, em cuecas e soutien (coletes), quando os havia, porque cada uma tinha de ter o brio de confeccionar a sua própria roupa íntima. As raparigas faziam-na em casa de pano cru ou dum tecido melhor, morim. Quando o evoluir da vida a levou para esse negócio apareciam-lhes as cachopas a quem ela questionava:

– Queres pano do cu ou morim?

Levavam sempre uma corda à cinta e uma foicinha na mão. A foicinha servia para matar algum licanço e para manter os atrevidos à distância... mas, sobretudo, para no regresso trazer comida para os coelhos, um feixinho que amarravam com a corda. Levavam água em bilhas e alimentavam-se com bacalhau miúdo ou uma sardinha embrulhada em papel pardo...

No início da década de cinquenta, a Maria da Ana – uma das grandes donas de maltas, como a Clarinda Carapinheira e outras – então com oito anos, começou a acompanhar a mãe nos trabalhos do arroz. Vinte e cinco tostões por semana... Depois, com o passar dos anos, o salário foi sendo outro. Também a força de trabalho. Chegou a ter sessenta mulheres a seu mando, da Murtosa, de Veiras, de Pardilhó, e tanto trabalhavam no campo de Salreu como iam para Ovar.

"Os lavradores de Ovar vinham aqui buscar arroz que se plantava à boca do campo, na Carvalha, na Enxurreira, por toda a parte. Nós arrancávamos o arroz, levávamo-lo e íamos plantá-lo a Ovar, para os lados da Ribeira. Ficávamos por lá às semanas e / 44 / dormíamos em palheiros. Tenho muitas saudades desse tempo, das brincadeiras que fazíamos. Um dia uma vizinha nossa,..., roubou uns coelhos à minha mãe. Eu descobri a coisa e disse à... que fosse espreitar o tacho que ela levava que devia de ser coelho. Foi e veio-mo confirmar: era coelho guisado. A minha amiga, danada com a ladra, não esteve com mais coisas e mijou-lhe no tacho. Na hora de comer a gente pouco tinha e a outra regalava-se a comer coelho e a molhar o pão no molho... Pode crer que tenho saudades desse tempo e ainda hoje, quando vou à praça ou quando vou à Torreira ainda ouço dizer "Olha a Maria da Ana!..." que era como me conheciam de solteira."...

Se eu tivesse tido uma dessas vidas de rios que querem desaguar nas nascentes, que correm ao contrário, desenraizando-se, cavando caudais de ausências e vazios e de súbito voltasse, com certeza que não reconheceria o chão das minhas raízes. Reconhecê-lo-á o mar quando um dia voltar às suaves colinas onde outrora se espraiou?
 

 
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