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Salreu
freguesia do concelho de
Estarreja, distrito de
Aveiro
Arroz
do árabe Ar-ruzz «Gr. Óriza s. m., bot., planta
gramínea;
o grão dessa planta
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Ver a nota de Rodapé
/ 9 / Os emigrantes da minha
infância que buscavam o
el dorado no Brasil, na América e sobretudo na Venezuela, partiam em
navios demorados e demoravam-se no passar dos anos, não só por o tempo
das viagens ser grande e penoso mas também pelo seu custo. A comodidade
e rapidez dos aviões demorariam ainda muito. Viúvas de vivos chamou
Joaquim Lagoeiro às suas mulheres... Gente desenraizada, vidas marcadas
por espaços de muitos vazios... Se eu tivesse tido uma dessas vidas de
longas ausências do sítio em que cresci e de súbito voltasse, com
certeza que não reconheceria lugares familiares dos primeiros passos,
tão grandes foram as mudanças operadas pelo homem e pelo tempo. Durante
muitos anos, durante muitos séculos as mudanças (todo o tempo é composto
de mudança - escreveu Camões) de hábitos, de horizontes, de tanta e
tanta coisa, eram lentas, atravessavam a vida de gerações e agora são
galopantes, devastadoras de pessoas, de animais e de plantas,
precipitando espécies para a extinção. Este ritmo de vida, mais que
desfigurar rostos e paisagens, desfigura almas como se as calamidades
acontecessem naturalmente.
Às vezes dou por mim a
repor os fragmentos das minhas recordações mais antigas que não consigo
ajustar às imagens de hoje, a tentar contornar, de alguma maneira, o
inevitável no puzzle que a fortuna me atribuiu.
Esta será talvez a
fotografia mais antiga que se conhece do Largo da Igreja e que nos
mostra como era o centro da aldeia e o tipo de construção que foi
demolido para dar lugar aos edifícios da imagem seguinte.
Nasci no lugar de Vales,
numa rua que agora já tem outro nome, a dois passos do que se chamou
outrora Largo das Padeiras, depois baptizado Largo 5 de Outubro e
vulgarizado pelo povo pelo que na verdade é, Largo da Igreja, na casa
que ainda hoje ocupo.
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Rapazinho, como qualquer outro do meu tempo, ia aos pardais por onde
calhava, sobretudo para poente do meu ninho, pelas terras que iam até à
rua da Barroca e pelo carreiro abaixo, até à linha do comboio. Enquanto
as ratoeiras esperavam as suas vítimas, eu ocupava-me a apanhar agriões
nas regueiras, um ou outro morango bravo ou a esfregar as mãos
engaranhadas de frio, conforme fosse a época. Mais tarde, quando o acaso
me pôs nas mãos a primeira arma, ainda que rudimentar, espreitava as
narcejas que vinham até aos viveiros de arroz que se faziam mesmo junto
ao meu quintal. Hoje, nesse sítio, está uma casa com pátios e garagens,
os agriões perderam as suas regueiras ou os seus veios de água e talvez
já ninguém saiba o que são morangos bravos.
Percebe-se nesta foto que
mostra o edifício de Arte Nova ainda hoje existente a mesma árvore e o
mesmo moinho de vento. Ambas as fotos pertencem hoje à família do Dr.
Silvério Tomaz Pinaz, actual proprietário da casa que ocupa o coração da
freguesia.
Há poucos anos entrei
pelas ruas de Soutelo atalhando caminho para o Pinheiro da Bemposta. Ia
com um amigo. Lá mais para diante, nessa estrada que serve quase só quem
lá vive e a conhece, pouca gente passa. Encontramos um carro acidentado
de fresco, com uma senhora aflita por ter batido na beira e parámos em
seu socorro. Os danos eram apenas materiais, avisamos por telemóvel o
marido e, enquanto ele não chegava, pus-me a deambular por ali e assim
fui achando, ao longo da berma, uma data de morangueiros bravos que eu
pensava ser planta já só existente na minha memória. As gotinhas
vermelhas, o seu sabor, o seu perfume, fizeram-me bendizer, em silêncio,
a infelicidade daquela mulher. Agriões lavados dar-me-iam agora talvez
similares momentos de encanto. Não o permite, porém, a qualidade das
águas das pequenas regueiras que abundavam e que as mudanças
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sujaram e feriram nos
seus cursos. Essas regueiras eram, naquele tempo, os mesmos capilares e
as mesmas veias que alimentavam os alfobres do arroz que haveriam de
encher toda a marinha. Mas esse foi um saber que apenas fui adquirindo
com os vagares dos anos e nas vicissitudes da vida. Rapazinho de bibe e
pião, que poderia eu saber disto? Armava aos domingos ratoeiras aos
pardais e olhava de longe, sem ver, as infindáveis marinhas por onde o
sol se desfazia.
Nasci e cresci num sítio
de abundância de água. Uma regueira corria a céu aberto junto ao muro do
meu quintal. Mais a norte, a uma centena de metros, outra. A nascente
havia fontes. Umas três ou quatro. Portanto os viveiros de arroz
faziam-se naturalmente junto ao meu quintal. Mas também em muitos outros
lugares da freguesia onde as nascentes de água eram generosas como, por
exemplo, em todo o vale que a Senhora do Monte faz com o lugar da
Carvalha, no Valdujo com as águas do ribeiro da Enxurreira, qualquer
cantinho, enfim, que tivesse água servia para fazer viveiros. Algumas
vezes os visitei, não para os apreciar, mas para me encontrar com
companheiros de escola que há muito tinham despido o bibe e esquecido o
ponteiro de lousa para enxotarem os pardais que os rondavam, batendo em
latas com paus, enquanto não entravam noutro viveiro, o da pá e da
talocha donde só alguns seriam transplantados para uma qualquer fábrica
ou para um país distante, engrossando a diáspora.
Na espera das narcejas e
dos patos calcorreei os campos baixos de Salreu. Mais tarde levar-me-ia
lá também o vício da pesca, sobretudo
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Manuel da Laurentina, o Albertinho Vidal, caçadores daquele tempo que
aturavam os meus primeiros devaneios cinegéticos. Então, na idade que eu
tinha, as praias de arroz para mim eram somente praias de arroz, como os
juncais eram só juncais refúgios de caça. Com o passar dos anos às vezes
surge um momento em que, de tanto olhar, finalmente se vê. E brotam
então as perguntas: que terrenos eram aqueles? Que águas eram aquelas?
Que aves? Que plantas? Como? Porquê?..
No inverno de 1974 ou de
75, não posso precisar ao certo, num dia qualquer, chegou-me aos ouvidos
que o mar da Torreira descera já pela avenida principal (Hintze Ribeiro)
e ameaçava as casas. Fui ver. O mar descamara os alicerces do Café
Moliceiro, havia máquinas dos serviços de engenharia do exército a
colocar pedras e camiões que se sucediam, num vaivém de formigueiro,
carregados de mais pedras para travar a violência das vagas. Na ocasião
tirei duas fotografias com uma máquina rudimentar. Uma delas mostra um
poço feito de adobes, que não terá resistido vinte e quatro horas às
vagas e que estava onde hoje passeamos aos domingos, mais ou menos onde
se situa o Mar-e-Bar. Ora o poço era nitidamente de serventia de casa ou
palheiro que por ali teria existido e não seria para extrair água
salgada... Se o juízo não estiver errado, não será difícil imaginar que
o oceano, o mar, estaria muito, mas mesmo bastante, recuado. Pelo menos
quanto bastasse para que o poço tivesse água potável. Por volta de 1934,
contou-me o Rafael Vidal, existia ao cimo da avenida uma tasca
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com um bocadinho de restaurante, o "Rambóia" e desta casa até à facha
plana de areal onde eram armadas as barracas, havia seguramente 180
metros. Depois, e descendo sempre, a uns trinta metros fazia um
regueirão e um pouco mais adiante finalmente o mar. Como seria antes
daquela data? Questionava-se o Rafael, acreditando que estava mesmo
muito mais longe.
Por esses anos apreciava
ir até Cacia, ao Rio Novo do Príncipe, para ver regatas. Já por lá tinha
andado na juventude levado pelo vício da pesca e por amizades que tinha
nessa terra. Foi assim que fui conhecendo esse braço artificial do
Vouga, feito para salvar a ria, foi assim que conheci a veia principal
do rio, a que se chama hoje Rio Velho, que se orientava para norte, para
o Laranja, onde o Antuã morre, e que naveguei por todo o intrincado de
canais que a imensidão dos anos, dos ventos e das correntes foram
rendilhando.
Em 1394, por carta de D.
João I de 30 de Abril fica-se ciente que corriam navios de marear na
veia de avaro.
Em 1501 ainda navios,
barcas e caravelas ancoravam nos portos de Ovar crendo-se que aí terá
existido uma barra... E quem olha agora a ria por esses sítios pensará
que está no seu fim quando na realidade está próximo do seu começo.
Entretanto as mãos
infatigáveis da nortada, aliadas às correntes iam enchendo de areias o
litoral, faziam crescer a costa, até S. Jacinto ou mais para sul, para a
Vagueira, onde esteve durante longos anos a barra da ria, enquanto o rio
Vouga e o Antuã, com outros pequenos cursos, durante séculos livres de
barragens ou açudes,
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iam despejando no seu acabar todos os sedimentos, todos os aluviões
riquíssimos que tinham transportado nos seus leitos desde longínquas
serranias.
No parecer de Amorim
Girão, no passado proto-histórico a ria não existia também, muito embora
estivessem já em actividade as causas que contribuíram para a sua
formação, que deveria ser contemporânea da construção da estrada romana
entre Águeda e o Porto, cognominada a Mourisca, não devendo ir além da
era cristã, sendo natural, dado o silêncio dos autores coevos que não
existisse na época romana.
Portanto o mar andaria
por onde hoje temos a proximidade da linha de caminho de ferro ou alguns
troços da estrada EN 109, o que qualquer um reconhece observando os
terrenos de areia onde, aprofundando, se encontram conchas, terrenos que
(por exemplo) na área industrial de Estarreja e Pardilhó não são mais
que dunas que o arvoredo disfarça.
Portanto, por fenómenos
de rotação da terra e/ou climáticos, o mar foi recuando ao longo de
séculos, deixando campo aberto para que o Vouga e o Antuã, asfixiados,
descarregassem, nos espaços que abandonava todas as suas cargas
sedimentares, preenchendo vazios, criando terra...
E a terra foi sempre um
bem precioso, foi-o sempre ao longo daqueles séculos em que as pessoas
viviam da e para a agricultura, tempos em que ainda era desconhecida a
existência do milho ou da batata. As terras seriam então ocupadas com o
centeio e o trigo, com a floresta e a pastorícia.
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Com o recuo do mar o primeiro bem que a natureza terá servido à povoação
seria o sal e na preparação e amanho das salinas terão surgido os
primeiros proprietários das marinhas. A pesca terá sido outro bem ainda
que diminuto.
Os socalcos do Douro são
um hino ao esforço humano. Mas não se podem perder de vista os terrenos
adaptados ao cultivo do arroz no Vietname ou na China ou, em muito menor
escala, nos nossos campos que igualmente foram feitos a músculo, ferro e
por animais num meio que não era estável e num ambiente que favorecia
uma infinidade de maleitas.
Com o amanho e
preparação das salinas terão talvez surgido as primeiras valas, as
primeiras comportas, o domínio dos elementos. O recuo do mar, ao deixar
de fornecer a matéria-prima para as salinas, terá originado novos
desafios para o aproveitamento dos terrenos que mais não seriam que
lodaçais.
A população seria
forçosamente constituída por gente rude e analfabeta e não dominariam o
cultivo do arroz por lhes ser um cereal estranho. Contudo, o arroz já
era conhecido dos chineses há mais de cinco mil anos, e os chineses eram
navegadores de reconhecidos méritos. Por eles o arroz terá sido
divulgado no Médio Oriente e ter-nos-á chegado pelas mãos dos romanos e
pelos povos árabes que ocuparam longamente a península.
A nossa costa era
percorrida por comerciantes e aventureiros, provenientes do sul e dos
países nórdicos.
Há na nossa região tipos
humanos que revelam essas origens nórdicas mas não creio que nos viesse
por aí o domínio da cultura
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do arroz mas por aqueles outros que terão visto o meio favorável e terão
iniciado o seu cultivo com sucesso.
Um novo cereal era uma
nova esperança de vida para a região e uma nova fonte de riqueza e terá
incrementado o esforço sobre-humano do domínio das águas e da fixação
dos terrenos.
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NOTA
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Apesar de profusamente ilustrada, apenas se reproduz
uma pequena amostragem das gravuras desta obra; no entanto, o texto foi
integralmente transcrito, respeitando-se a vontade do autor.
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