Conjugando a teologia
católica com a cabalística medieval, – cuja concepção do «número»
enformou a Divina Comédia (da estruturação da estrofe à das
partes e número de cantos que a compõem), – Dante atribuiu ao escrito
literário quatro sentidos: o literal, o alegórico, o moral e o
anagógico (ou supersentido, de alcance místico). E precisou: «o sentido
literal deve sempre ser exposto em primeiro lugar como sendo aquele em
que os outros estão encerrados, e sem o qual seria impossível
compreender os restantes, sobretudo o alegórico». A simbolística que
uma tal interpretação envolve era típica do misticismo medieval que, no
resumo de S. Boaventura, apenas via no Universo um «livro em que se lê
o mistério da Trindade», diferindo, por aí, as coisas e os seres em
simples sinais do pensamento de Deus. E foi, aliás, em termos
idênticos aos preconizados por Dante que a exegese do tempo
interpretou, por exemplo, o Antigo Testamento.
Mas o que nos
interessa no passo é a circunstância de, à semelhança do que cumprira
outrora às sibilas do Monte Vaticano (interpretar os sinais do oculto,
transpondo-os, de vaticínio alegórico, em linguagem prática, literal,
humana), caber, agora, à poesia dum tempo em que esse Monte se tornara a
sede do sólio pontifício, o dom duma linguagem igualmente bifronte
(humana e divina), – pois podemos reduzir a dois os quatro sentidos
indicados, já que o anagógico é uma especificação do alegórico e o moral
uma explicitação didáctica do contendo ético dos restantes. Posteriores
especulações metafísicas (a neo-platónica, por exemplo) não implicaram
sensíveis alterações no processo de Petrarca a Teresa de Ávila (para
escolhermos dois nomes que são, para o ensejo representativos), o
dualismo Humano-Divino, alongando-se em dualismo Físico-Metafísico,
continua a corresponder à bivalência do Literal-Alegórico. Uma origem
demiúrgica persiste em nimbar o vate.
Mas Vem Spinoza e,
com ele, uma imanência estrita que tende a imbricar o metafísico e o
físico numa única interdependência da mente humana. E, de crise em
crise, chega-se ao «simbolismo» literário moderno, que concebe a poesia
como um em-si, atingindo-se um estádio em que ela se descarta da
intervenção (figurada) da sibila, para se tornar, de voz do mistério, no
mistério ele próprio. Parafraseando o vocabulário místico, poderíamos
dizer que a poesia visa a conceber-se a consubstanciação do Verbo.
Que a terá levado,
atrás do pensamento mas voltando-lhe as costas, a repudiar assim as
bases da sua experiência multi-secular? Basta lembrar que a linguagem
do que Dante chamou o sentido literal se foi laicizando, de século em
século; ou, de outro modo, se tornou propriedade cada vez mais íntima
do fenomenal estrito – essoutro livro aberto em que o homem lia agora o
seu próprio pensamento apenas. Desde S. Tomás de Aquino que o diálogo
entre o humanista e o teólogo se resume, pode dizer-se, à negociação
(sempre precária para o segundo) do que é pertença exclusiva do homem
(ou apenas literal), e do que o é também do oculto (ou
alegórico), reduzindo as margens da querela a uma fímbria tão exígua
que mal cabem nela as asas do pégaso. Dante insistira (vale a pena
repeti-lo) em que o sentido literal é aquele em que os outros estão
encerrados, e «sem o qual seria impossível compreender os restantes,
sobretudo o alegórico». Mas, sendo, assim, o literal a forma do
conteúdo alegórico, que terá a poesia a esperar da inversão desses
termos, a que historicamente foi remetida? O Orfeu moderno não pode já
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ao antro de Plutão, para trazer Eurídice à vida...
Criou-se destarte o
mito de que a poesia se exprime a si mesma, sendo alheia a toda a
realidade que não seja especificamente sua própria. Fico embasbacado,
devo confessá-lo, perante expressões como essa. Que será o
especificamente poético, de per si? E tento iluminá-lo com expressões
congéneres: o especificamente musical, o especificamente dramático...
Mas não será que nestas frases o advérbio apenas sublinha o que o
substantivo já distinguia? Quando digo: o sentimento, não faço ideia
nenhuma do que isso possa ser em essência. Vejo apenas nessa palavra um
denominador comum de certos estados que experimentei. E não teria para
mim qualquer sentido que alguém quisesse conhecer, em lugar deles,
o-sentimento-em-si-mesmo. Do mesmo modo, quando digo: o sentimento
é... não posso estar a dizer que de facto o seja, mas sim que, no
momento em que falo e para um certo fim, empenho nessa abstracção um
certo conteúdo concreto. Só conheço, assim, a Poesia pelo que está
diante dela, e é isso que lhe confere uma realidade (sem dúvida!) mas
que vejo depender dum nexo de relações que, em cada caso, posso
distinguir quais sejam.
Creio ser este o
dilema perante o qual a poesia está hoje indecisa, e que a obriga a
emancipar-se da ambiguidade da palavra vate, reajustando o
literal à alegoria do humano. No que bem poderá ajudá-la o testemunho de
Dante, eloquente na generosa aventura que o fez preferir, ao refinamento
idiomático dos fantasmas do Lácio, o linguajar, rude mas vivo, da fala
que bebera com o leite materno, lapidando por ela (e para ela) a obra
mais ambiciosa que um poeta jamais concebeu.
Ensaio de Mário Sacramento |