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Artes - Letras - Ciências
Suplemento do n.º 254 do "Litoral"
Setembro de 1959, Ano I, n.º 1
págs. 10 e 18

 

OUSANDO escrever a obra na sua própria língua de leite, e não no latim literário do tempo, Dante colocou-se numa ati­tude de incerta modéstia que o levou a chamar Comédia ao livro a que mais tarde seria acres­centado, nobilitando-o, o atributo de Divina. Este facto, e o de o ter escrito num meio em que se não obliterara totalmente a herança greco-romana e numa época em que esse mes­mo meio, dotado já de uma burguesia larga e influente, podia antecipar-se ao grande surto do Renascimento, suscitou no escritor um de­bate em torno das suas próprias coordenadas culturais que bem merece ser meditado pelos poetas de hoje, filhos que são de um período crítico como o dele.

Conjugando a teologia católica com a cabalística medieval, – cuja con­cepção do «número» enformou a Divina Comédia (da estruturação da estrofe à das partes e número de cantos que a compõem), – Dante atribuiu ao escrito literário quatro sen­tidos: o literal, o alegórico, o moral e o ana­gógico (ou supersentido, de alcance místico). E precisou: «o sentido literal deve sempre ser exposto em primeiro lugar como sendo aquele em que os outros estão encerrados, e sem o qual seria impossível compreender os restan­tes, sobretudo o alegórico». A simbolística que uma tal interpretação envolve era típica do mis­ticismo medieval que, no resumo de S. Boaven­tura, apenas via no Universo um «livro em que se lê o mistério da Trindade», diferindo, por aí, as coisas e os seres em simples sinais do pen­samento de Deus. E foi, aliás, em termos idên­ticos aos preconizados por Dante que a exegese do tempo interpretou, por exemplo, o Antigo Testamento.

Mas o que nos interessa no passo é a cir­cunstância de, à semelhança do que cumprira outrora às sibilas do Monte Vaticano (interpretar os sinais do oculto, transpon­do-os, de vaticínio alegórico, em linguagem prática, literal, humana), caber, agora, à poesia dum tempo em que esse Monte se tornara a sede do sólio pontifício, o dom duma linguagem igualmente bi­fronte (humana e divina), – pois pode­mos reduzir a dois os quatro sentidos indicados, já que o anagógico é uma especificação do alegórico e o moral uma explicitação didáctica do contendo ético dos restantes. Posteriores especulações metafísicas (a neo-platónica, por exemplo) não implicaram sensíveis alterações no processo de Petrarca a Teresa de Ávila (para escolhermos dois nomes que são, para o ensejo representativos), o dualismo Humano-Divino, alongando-se em dualismo Físico-Metafísico, continua a corresponder à bivalência do Literal-Alegórico. Uma origem demiúrgica persiste em nimbar o vate.

Mas Vem Spinoza e, com ele, uma imanência estrita que tende a imbricar o metafísico e o físico numa única interdependência da mente humana. E, de crise em crise, che­ga-se ao «simbolismo» literário moderno, que concebe a poesia como um em-si, atingindo-se um estádio em que ela se descarta da intervenção (figurada) da sibila, para se tornar, de voz do mistério, no mistério ele próprio. Parafraseando o vocabulário mís­tico, poderíamos dizer que a poesia visa a conceber-se a consubstanciação do Verbo.

Que a terá levado, atrás do pensamento mas voltando-lhe as costas, a repudiar assim as bases da sua experiência multi-se­cular? Basta lembrar que a linguagem do que Dante chamou o sentido literal se foi laicizando, de século em século; ou, de ou­tro modo, se tornou propriedade cada vez mais íntima do fenomenal estrito – essoutro livro aberto em que o homem lia agora o seu próprio pensamento apenas. Desde S. Tomás de Aquino que o diálogo entre o humanista e o teólogo se resume, pode dizer-se, à negociação (sempre precária para o segundo) do que é pertença exclusiva do homem (ou apenas literal), e do que o é também do oculto (ou alegórico), reduzindo as margens da querela a uma fímbria tão exígua que mal cabem nela as asas do pégaso. Dante insis­tira (vale a pena repeti-lo) em que o sentido literal é aquele em que os outros estão encerrados, e «sem o qual seria impossível compreender os restantes, sobretudo o ale­górico». Mas, sendo, assim, o literal a forma do conteúdo alegórico, que terá a poesia a esperar da inversão desses termos, a que historicamente foi re­metida? O Orfeu moderno não pode já /página 18/ descer ao antro de Plutão, para trazer Eurídice à vida...

Criou-se destarte o mito de que a poesia se exprime a si mesma, sendo alheia a toda a realidade que não seja especificamente sua própria. Fico embasbacado, devo confessá-lo, perante expressões como essa. Que será o espe­cificamente poético, de per si? E tento iluminá-lo com expressões congéneres: o es­pecificamente musical, o es­pecificamente dramático... Mas não será que nestas fra­ses o advérbio apenas subli­nha o que o substantivo já distinguia? Quando digo: o sentimento, não faço ideia nenhuma do que isso possa ser em essência. Vejo apenas nessa palavra um denomina­dor comum de certos estados que experimentei. E não teria para mim qualquer sentido que alguém quisesse conhe­cer, em lugar deles, o-senti­mento-em-si-mesmo. Do mes­mo modo, quando digo: o sen­timento é... não posso estar a dizer que de facto o seja, mas sim que, no momento em que falo e para um certo fim, empenho nessa abstrac­ção um certo conteúdo con­creto. Só conheço, assim, a Poesia pelo que está diante dela, e é isso que lhe con­fere uma realidade (sem dú­vida!) mas que vejo depen­der dum nexo de relações que, em cada caso, posso distinguir quais sejam.

Creio ser este o dilema perante o qual a poesia está hoje indecisa, e que a obriga a emancipar-se da ambigui­dade da palavra vate, reajus­tando o literal à alegoria do humano. No que bem poderá ajudá-la o testemunho de Dante, eloquente na generosa aventura que o fez preferir, ao refinamento idiomático dos fantasmas do Lácio, o lingua­jar, rude mas vivo, da fala que bebera com o leite ma­terno, lapidando por ela (e para ela) a obra mais am­biciosa que um poeta jamais concebeu.

Ensaio de Mário Sacramento

 

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