Foi há algum tempo o
meu primeiro contacto com a obra de Lurçat.
No verão de 1951,
procurando receber nos olhos quase virgens, e guardar na alma, quase
vazia, todo um mundo de sensações novas que Paris podia dar a quem a
visitava pela primeira vez, encontrei-me diante duma tapeçaria de Jean
Lurçat, aquela que, inspirada pelo poema de Paul Éluard, foi composta e
tecida, clandestinamente, em 1943.
Foi no Museu de
Arte Moderna, ali ao lado do Sena, em frente do símbolo de aço da
época de 1900 e quase ao lado da burocrática central que pretende
defender a humanidade através do germe da sua inexorável e
implacável destruição. Uma palavra saltava do calor da lã e das
cores, e refulgia ainda mais do que os raios ondulantes que partiam
da bola central, tema tão querido do Mestre. Essa palavra dizia tudo
e não dizia nada, porque era de todos e de ninguém. Mas tinha ali o
seu significado e a sua mensagem, viva. Julguei compreender o que
LIBERTÉ, ali, representava. Só mais tarde, porém, é que pude avaliar
a sua extensão.
E se é certo que
as muitos obras de Lurçat, apreciadas depois, me ajudaram a
entendê-lo em toda a sua acção sobre a minha sensibilidade, profana,
mas bem aberta às manifestações artísticas, não é menos certo ter
sido uma confissão simples do homem Jean Lurçat que melhor me fez
entender a sinceridade e as raízes profundas da sua mensagem.
Quando leio, vejo
ou ouço, procuro, acima de tudo, receber e sentir, tal como sou.
Desprezo sempre, ou quase sempre, não por vaidade ou pretensa
suficiência, o que os outros escreveram ou disseram sobre o que
estou a ouvir, ver ou ler. |
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Quero deixar à
sensação recebida o papel de modeladora de cera mole da minha
receptividade. Mais tarde, quando escrevo, procuro informar-me do que os
outros disseram e confrontar as impressões recebidas para melhor
esclarecer os que me lerem. Respeito, porém, a sensação primeira, a
espontânea, aquela que me interessa comunicar aos outros como confissão
humana de quem, por profano, pode representar a massa anónima dos que
vêem, lêem e ouvem sem a frieza calculadora dos que, no seu necessário e
útil papel de críticos, têm por missão estudar e ensinar, relacionando e
apreciando. Não pretendo chamar a mim esse papel. Para tanto me
minguariam conhecimentos e calma. Sou, por natureza, um apaixonado, a
quem por vezes faltará o equilíbrio frio que conduz à justiça, mas a
quem creio não faltar nunca a sinceridade que conduz à Verdade, à minha
Verdade, àquela que não é absoluta e que, por isso mesmo, é verdadeira,
porque é igual às verdades diferentes de todos os sinceros.
Essa confissão de
Jean Lurçat, do homem Jean Lurçat, foi feita recentemente em Portugal
aquando da sua visita.
Eu, que jamais perdi
uma /pág. 6/
oportunidade de sentir os olhos aquecidos pela lã das suas tapeçarias e
pelo calor das suas mensagens de fé e de esperança, – ainda há menos dum
ano, naquele mesmo «Museu Nacional de Arte Moderna», tive a ventura de
ver a exposição quase geral da sua obra de pintor, cerâmico, ilustrador
e artista tapeceiro, e mais recentemente apreciar, nessa jóia da arte
moderna que é a igreja de «Notre-Dame de Toute Grâce» no cenário soberbo
do Plateau d’Assy, na Alta Sabóia, a sua monumental tapeçaria que cerca
todo o altar-mor e foi buscar ao Apocalipse o tema da salvação e do
combate entre a vida e a morte – só agora senti, verdadeiramente,
profundamente, o quanto a obra tinha raízes no homem.
É como latino e
apaixonado que o sinto e como tal o confesso!
Lurçat confessou que
fizera parte do Comité de Libertação do Departamento do Lot e vivia,
clandestinamente. Os alemães, como represália, incendiaram-lhe o
«atelier». Não chegou a ser preso, mas apanharam-lhe o filho Vítor. E
mataram-no! Tornara-se triste, ao contar o sacrifício que a causa da
França e da humanidade lhe impôs, e nada mais pôde dizer ao jornalista!
Eu desconhecia até
que ponto o homem consciente e artista pode sofrer os mesmos golpes do
comum dos mortais, embora soubesse o quanto ao artista pode influenciar
a alegria e a dor, actuais ou transportadas pela lembrança.
Este passo da vida de
Jean Lurçat era-me desconhecido. Foi para mim a explicação de todo um
mundo de interrogações que a mim mesmo fazia diante do conteúdo vivo das
suas tapeçarias.
O encontro com o
Homem predomina, embora o lobo surja, por vezes, no caminho.
O homem, isolado ou
não, buscando no origem de tudo a reconstrução de tudo – Ele sabe que
tudo pode ser destruído pela «Grande Ameaça» – jamais é desamparado pela
esperança, na obra de Lurçat.
É por isso que a obra
do artista e a sua mensagem, só podem verdadeiramente sentir-se e
compreender-se na apreciação conjunta.
Não sei – e quem o
saberá? – até que ponto os galos escarlates e as borboletas chinesas ou
as plantas do Brasil equilibram o peso do Homem de Hiroshima ou dessa
extraordinária e trágica visão negra, negra, negra, salpicada de
pequenos pontos de fogo, tendo ao lado, a sair duma mancha de vermelho,
uma árvore que o deixou de ser, dobrada, descarnada e morta, que é O Fim
de Tudo!
Mas o que senti, bem
fortemente, de todo o conjunto dessa exposição, foi a mensagem do HOMEM
ao HOMEM, que o artista soube transportar para as grandes e pequenas
superfícies das suas tapeçarias.
A pintura mural e,
agora, com Lurçat, a tapeçaria, podem constituir, e constituem já, a
maneira mais directa e activa de comunicação entre o artista e o
público, entre o que tem alguma coisa a dizer ou a mostrar e a multidão,
ansiosa de ver e de ouvir o que possa sentir e apreender.
Os temas em Lurçat
não são abundantes, porque não foram nunca abundantes os temas eternos.
Podemos mesmo reduzi-los a quatro, que tudo abrangem: a vida, o
trabalho, o começo e o fim.
Cada um destes temas
surge-nos como explicação ou interpretação do homem na terra.
O tema da Liberdade,
tema eterno do homem de todas as épocas, é um tema de vida e de morte,
que o mesmo é dizer, de começo e de fim. Aparece-nos em Lurçat na
homenagem aos heróis da Resistência, camaradas de luto, com legendas em
que os génios poéticos de Paul Éluard e de Robert Desnos se irmanam com
o de Lurçat. Na grande tapeçaria de 1954 «Homenagem aos mortos da
Resistência e da Deportação» o ritmo empregado por Lurçat é bem aquele
que vemos na maioria das suas obras. Três círculos juntos como estrelas
gémeas, movimento simbólico que acompanha o crescer da árvore da
resistência através das folhas brancas, azuis e vermelhas da grinalda da
renovação onde versos de Desnos fazem o apelo «dans Ia langue comun de
tous, une Iangue qui n’a qu’un moi, LIBERTÉ.» Por mais colectivo e geral
que seja o pensamento de Lurçat, sentimos que há por ali, naqueles
quarenta e oito metros quadrados de lã, e a par do sangue, das cinzas,
da carne dilacerada e da coragem de tantos, o desespero e a consolação
do Pai que perdeu o filho mas espera que o sacrifício não tenha sido em
vão. É que Lurçat não deixa nunca de mostrar, ao lado do perigo e do
desastre, a esperança que constitui a parte a haver da sua mensagem. E
fá-lo quase com alegria no esvoaçar multicolor das borboletas ou na
arrogância atrevida mas firme dos seus golos, para não falar na doçura
das flores ou no brilho surpreendente das suas tão características
estrelas assimétricas.
A série de tapeçarias
que constituem «A Grande Ameaça», primeiros fragmentos dum conjunto que
medirá 125 metros de comprimento, é verdadeiramente extraordinária.
Ao trágico da
primeira tapeçaria, aquela que simboliza a explosão atómica no interior
duma bola de fogo e em cuja crosta se adivinham, a marcar a
universalidade do perigo: um templo chinês, as pirâmides, um templo
grego, a torre Eiffel, uma mesquita, um templo russo e um arranha-céus,
tudo isso coberto por uma coruja sinistra, segue-se o «Homem de
Hiroshima» e «O Fim de Tudo»!
Lurçat-artista tem,
porém, confiança no homem seu /página
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tapeçarias seguintes a esperança e a alegria de viver.
Naquelas, a grande
ameaça da bomba atómica e da guerra, e nestas: «O Homem em glória na
Paz» e o «Fogo e a Água», Lurçat exprime – e de que maneira! – a
esperança no homem libertado dos horrores da guerra. «O Fogo e a Água» é
bem o hino à natureza fundamental, ao começo de tudo e à força que o
homem pode aproveitar na PAZ e destruir no Guerra.
Mas não fica por aqui
a mensagem de esperança e confiança.
Lurçat olha para a
natureza e vê-a através das borboletas garridas, das tartarugas, dos
galos e até do carneiro imponente ou do touro ameaçador, ornado de
folhas, que salta sobre a aldeia adormecida. As corujas aparecem
sinistras aqui e ali, e até os peixes e os insectos, as aves e os
répteis surgem na grande tapeçaria «Eu anuncio um canto», um canto onde
a noite esteja ausente, na qual a árvore da Paz cresce do campo fértil
da terra, dando origem ao fruto, representado pelo sempre querido motivo
do círculo cheio de toda a vida da terra.
«A Esperança» é outra
obra extraordinária de vigor, talvez de todos a mais bela para mim. Tem
como legenda o verso de Éluard «Toujours vit l’espoir sur terre»!
Que dizer das cores
em Jean Lurçat? Os negros quentes têm nas suas tapeçarias um significado
a que não é alheio o contraste com os amarelos vivos das estrelas
assimétricas e os vermelhos, por vezes desbotados, de algumas estrelas
vizinhas. Os verdes encontram na tapeçaria de grande porte «As vindimas»
a sua aleluia. É nessa que o trabalho quotidiano e simples da terra
encontra o seu momento. E é curioso o efeito que surge após uns
instantes de observação atenta. Olhamos, e tudo são videiras com folhas,
troncos e uvas, numa variegada série de verdes. Não tarda muito que o
milagre do trabalho se opere e, de entre as folhas, comecem a surgir,
nítidos, os trabalhadores da vindima, que diríamos escondidos e trazidos
à superfície por mágica influência de alguém.
Se é certo que o
valor decorativo das tapeçarias de Lurçat é enorme – e hoje ele bem o
sente nas solicitações que lhe são dirigidas –, importa reconhecer que a
sua mensagem suprema vai para além do Belo, porque atinge o Homem e a
sua própria sobrevivência.
Mostra as ameaças que
sobre ele pesam, mas anima-o com a esperança que o encaminha e lhe dá
força.
Mensagem sublime a
que Lurçat nos transmite, filha de si próprio, da sua fé no Homem e na
esperança de que outros homens há, diferentes dos que lhe roubaram e
mataram o filho.
A mensagem já lá
estava, no artista, mas quero crer que o clarão que a iluminou e tornou
verdadeiramente grande para o Mundo foi o sangue e a dor que o fizeram
sofrer e procurar, para os outros, a expressão da ameaça, da grande
ameaça, e da esperança, dessa esperança sem a qual a morte do filho
teria sido, como a de tantos seus irmãos, um sacrifício em vão.
Costa e Melo |