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Boletim n.º 12 - Ano VII - 1988

O Gabão de Aveiro é também Cultura

Pelo Dr. M. Ed. dos Santos Oliveiros

 

Sou um "Aveiro" aqui nascido e baptizado na Igreja de S. Domingos, hoje Sé Catedral.

Não irei dizer, como D. João Evangelista, Arcebispo-Bispo de Aveiro, que nasci na proa de uma bateira embalado pelas marolas da Ria.

Mas direi que nos princípios do século nasci à sombra da antiga Sé de Aveiro, ali na rua do mesmo nome, a que vós hoje chamais de outra maneira.

Trago, no sangue, o sabor salgado da água da nossa Ria; e na carne o cheiro a maresia das nossas salinas.

Como "Aveiro" que sou, trago vestido o tradicional GABÃO DE AVEIRO.

 
Imagem de "Aveiro e o seu Distrito", n.º 21, 1976, Ver Página

Menino e moço, antes de me levarem para longes terras, eu via os nossos gabões serem passeados pelos diferentes Bairros da Cidade, desde o Bairro do Alboi e dos Santos Mártires ao Bairro da Beira-Mar e da Apresentação; do Bairro de Sá e das Barrocas ao Bairro das Olarias e da Fonte Nova; e também ao Bairro das Cinco Bicas e de São Martinho.

Encontrava-os a par e passo pela antiga Rua de Trás, que começava no Jardim Público e ia desembocar na Rua das Barcas; pela Rua dos Arrais, para os lados do Rossio; pela Rua dos Marnotos e das Salineiras, próximas da Capela de S. Gonçalinho e do Largo da Apresentação – onde se situa a Igreja da Vera-Cruz – e também pela Rua do Norte e do Vento, que vão até ao Canal de S. Roque.

Vestiam-no os camponeses e os lavradores dos arrabaldes da cidade, no amanho de suas terras, desde Santiago a S. Bernardo; de Aradas à Quinta do Gato e à Quinta do Picado; da Gafanha até Esgueira.

Usavam-no os carpinteiros, os tanoeiros, os calafates e outros mesteirais, nos estaleiros do Canal de S. Roque e da Gafanha; os marnotos nas salinas, os pescadores nas suas bateiras, os barqueiros nos barcos mercantéis e os mercantéis nos saleiros; os trabalhadores da apanha do moliço nos barcos moliceiros.

Estou a olhá-los, nas "malhadas" do Cais dos Santos Mártires e do Canal de S. Roque, a descarregar o moliço dos fundos da Ria e o junco das praias.

Estou a vê-los, no Cais dos Botirões e no Cais dos Mercanteis, junto à praça do peixe, a descarregar o pescado das suas bateiras.

Estou a admirá-los, do cimo da Ponte de S. João, os "Aveiros", os Ílhavos", os "Murtoseiros" irmãos na labuta da Ria – de gabões elegantemente / 10 / enfaixados, de preto ou encarnado, num desafio de perícia, por todo o Canal das Pirâmides, desde estas até à Ponte da Dobadoura ou pelo Canal de S. Roque, em bateiras a remos ou com os vertedouros, em mercantéis ou saleiros à vara, ou em moliceiros à vela, quando havia vento, ou à sirga, nos dias de calmaria.

Todos estes usando gabões de estamenha, de burel ou de surrobeco.

Faziam gala dos seus gabões os "Senhores de Aveiro" nos seus passeios pela Rua Direita e da Costeira, pela Corredoura, pelas Pontes – a dos Arcos e a das Almas – e também aos domingos de manhã ao dirigirem-se para a Igreja de S. Domingos e de Jesus, das Carmelitas e da Misericórdia (os da freguesia da Glória) ou para a Igreja da Apresentação e do Carmo ou para a Igreja do Senhor das Barrocas (os da freguesia da Vera-Cruz).

Faziam gala, dizia eu, com os seus gabões pretos de merino ou de pano acetinado rico.

Era traje obrigatório nas típicas "Arruadas" que percorriam a cidade desde a Passagem de Nível de Esgueira até ao Bairro das Olarias, o limite norte e o limite sul da cidade, com passagem pelas ruas principais e pelo Cais da Ribeira e do Alboi, estes ao longo do Canal Central desde a Ponte dos Arcos até à Ponte da Dobadoura.

Era igualmente traje obrigatório na noite dos dias da "Entrega dos Ramos" quando os "Parceiros" se visitavam e cumprimentavam ao som festivo da Banda de música e dos foguetes.

Agora, com gabões pretos ou castanhos, soltos ou enfaixados.

Profusamente vulgarizado em terras bairradinas, o gabão de Aveiro é vestimenta que ainda hoje se apresenta com toda a dignidade, exibido como peça de carácter pelo Arqueólogo Machado Lopes, Director da Cantata e Tocata do Grupo Etnográfico e de Defesa do Património e Ambiente da Região da Pampilhosa – GEDEPA – nos seus cantares da Zona Serrana do Buçaco.

Assim o vimos em 12 de Fevereiro deste ano de 1988 no Palace Hotel do Buçaco; de igual modo o apreciámos no dia 17 de Abril de 1988 no Palace Hotel da Curia.

É vestimenta que ostentam cerimoniosamente os Confrades da "CONFRARIA DOS ENÓFILOS DA BAIRRADA" vestindo o "gabão preto, de boa fazenda de lã... usado apenas nos dias domingueiros, nas festas ou para ir à missa" como o escreveu um muito distinto Enófilo, e que é igualmente vestido nos dias de grande gala, quando se reúnem em Capítulo no Palace Hotel do Buçaco, ou em qualquer dia "Capitular" em que sejam convocados por quem é a alma da Confraria. Recordo, a propósito o dia 19 de Dezembro de 198'1 em que se reuniu o capítulo, com toda a solenidade no Salão Nobre do Palácio do Buçaco para proceder À "Investidura" de novos Enófilos.

Todos os "mestres da Confraria" e muitos enófilos presentes se encontravam com seus gabões negros e a característica "provadeira" de prata pendente do pescoço por uma fita de seda grená.

Vai terminar aqui a minha memória do "uso e desuso do gabão de Aveiro":

O gabão de Aveiro foi por mim olhado com emoção na minha Cidade de Aveiro, na Arruada da noite do dia 4 de Janeiro de 1987, Arruada comemorando os 450 anos da Confraria do S. S. Sacramento da freguesia da Glória, a freguesia do meu nascimento, do meu baptismo e da minha profissão de fé.

E... tudo o vento levou!

 

AVEIRO, esta milenária cidade que se chamou no princípio dos seus tempos "ALAVARIUM": e a quem a nossa Padroeira A PRINCESA SANTA JOANA chamava "Minha Lisboa, a pequena", terra natal da minha paixão, deixou de ser a cidade de seus filhos "Os Alavarienses" ou "Aveiros" onde todos nos conhecíamos, para ser a cidade dos seus habitantes "OS AVEIRENSES", terra de muitas e desvairadas gentes, como Fernão Lopes dizia de Lisboa.

Aqui deixo agora a minha "Mensagem":

É aos Aveiros e aos Aveirenses que cumpre reatar a tradição do uso do gabão, impondo-o nas nossas terras como os alentejanos souberam impor o seu capote à alentejana.

/ 11 / Esta Mensagem é do mesmo modo dirigida a todos quantos vivem e labutam nas terras em redor desta maravilhosa laguna, sem igual, a que chamamos a "RIA DE AVEIRO", terras que se estendem de Ovar até Vagos e Mira, passando pela Murtosa, por Estarreja, por Albergaria-a-Velha e que depois de Aveiro e Ílhavo se prolongam por Águeda, Oliveira do Bairro, Anadia, Mealhada e Cantanhede, a muito falada Região da Bairrada, onde o Gabão de Aveiro era traje tradicional, usado com o seu capuz nas noites das escarpeladas, pelos conhecidos e não identificáveis "encapotados".

Igualmente a dirijo a todos os membros da Confraria dos Enófilos da Bairrada para que persistam em adoptá-lo como seu traje oficial e alargar o uso desta vestimenta – que terá sido o "tabardo arrequifado" medieval de que fala Almeida Garrett, o capote, o gabinardo e é hoje o varino ou o gabão de Aveiro – tão característico do homem da beira-mar, como do homem bairradino, a todos quantos se irmanarem nesta Confraria dos Enófilos da Bairrada.

Resta também dirigi-la de uma forma muito particular A TODOS OS UNIVERSITÁRIOS DA UNIVERSIDADE DE AVEIRO, pois o podereis adoptar como traje académico; será impar no seu significado aveirense, porque o GABÃO DE AVEIRO é, no dizer de Rocha Madahil, "PEÇA DE GRANDE CARÁCTER" que se sabe ter irradiado da região da Ria e é uma réplica à rica e hierática "CAPA DE HONRAS" de Miranda do Douro.

Tal está a acontecer em Vila Real, onde os estudantes universitários se vestem à maneira tradicional de transmontanos que são; em Salamanca, onde os universitários se vestem à maneira tradicional salmantina, bem como em S. Tiago de Compostela, onde os universitários trajam à maneira Compostelana.

Digo-vos como Fernando Pessoa:

"DEUS QUER, O HOMEM SONHA, A OBRA NASCE !"

 

«Mas tenho fé que das cinzas do passado ainda um dia voltará a renascer; e então o Gabão de Aveiro tornará a ser o orgulho dos Aveirenses.» – Mário Fiúza

«Se é que mesmo não será possível ressurgi-los... aos Gabões de Aveiro.» – Eduardo Cerqueira

«Até ao S. João leva o teu gabão! Do S. João em diante (pronuncie diente) leva-o sempre.»

Sentença popular que ainda hoje se ouve frequentemente na região da Bairrada.

De Monsenhor João Gonçalves Gaspar, em "AVEIRO – Notas históricas" Ed. da C. M. A. 1983, nas págs. 34 e seguintes, encontramos as seguintes informações:

«A actividade piscatória, que se desenvolveu a partir do séc. XIV, bem pode considerar-se como o embrião da expansão marítima portuguesa.

Em numerosos documentos referentes a Aveiro, ela não podia deixar de ser expressamente nomeada.

Assim, em 14 de Abril de 1372 el-Rei D. Fernando fez a D. Leonor Teles livre e pura doação, da vila com seu termo e porto de mar. Chancelaria de D. Fernando I, Livro I – fls. 105-105 v. 107-108.

Em 17 de Janeiro de 1434, D. Duarte confirmou e outorgou aos pescadores de Aveiro, todos os seus privilégios – Chancelaria de D. Duarte, Livro I, fls. 52 v.

Caracteristicamente, os pescadores vestiam camisa de lã de padrão axadrezado e de cor / 12 / variável, trozes ou ceroulas de tipo e qualidade igual (no verão e só no mar, manaia em algodão branco ou cru), cinta ou faixa de lã preta franjada nas extremidades e barrete ou carapuça preta em malha de lã com borla, também de lã, na extremidade.

De inverno, acrescentavam O GABÃO, DE BUREL OU PRETO, COM MANGAS, ROMEIRA E CAPUZ.

O lavrador possuía um traje próprio.

No inverno, acrescentava-se o tradicional GABÃO.»

«…embrião da expansão marítima portuguesa" representado numa pintura onde se encontram figurados vários pescadores, alguns envergando o tradicional gabão de Aveiro:

De A. G. da Rocha Madahil, 1941 "ALGUNS ASPECTOS DO TRAJE POPULAR DA BEIRA LITORAL".

Afirma Rocha Madahil que várias gravuras publicadas e entre elas a que publica a pág. 60 do seu trabalho "documentam graficamente o uso do gabão desde 1828 pelos habitantes da região de Aveiro; mas a falta de referências não invalida a remota ascendência do característico vestuário, misto de veste monástica e de trajo civil medieval, igualmente encapuzado, comum a vários países da Europa, entre os quais Portugal.

Se acrescentarmos uma romeira à vestimenta envergada pelo lavrador que - rabiça do arado numa das mãos e arrelhada na outra – ilustra a parte inferior da magnífica gravura em madeira do Livro 22 das "Ordenações de D. Manuel I, de 1514, teremos o gabão, a que nem sequer o capuz faltará; o próprio costume popular de o amarrar à cinta com uma faixa ou simples cordel, já naquela data se verificava, como a gravura mostra.

Também muitas figurinhas dos presépios do séc. XVIII e várias gravuras nos apresentam justamente uma espécie de gabão, que bem podemos considerar como fase da evolução do capote medieval com capuz e mangas.

Mas é igualmente admissível que as vestes monásticas de determinadas congregações tenham influenciado essa evolução.

Não deixemos de lembrar que o gabão foi conhecido e usado, de certeza, pelos Romanos, o que não significa, no entanto, que de Roma nos tenha vindo.

Na celebrada coluna levantada em Roma no ano de 112 em honra do Imperador Trajano, encontra-se uma figura vestida com um manto especial, a que não falta capuz e que parece ter romeira também.»

E, mais adiante, continua Rocha Madahil: «O pescador da Ria, murtoseiro, ilhavense ou gafanhão, o moliceiro e o lavrador de Vale de Ílhavo, ainda hoje vestem o gabão e com ele trabalham, amarrando-o à cinta ou dando nó com as próprias pontas, enroladas, em jeito muitos séculos repetido; cenas como a da figura 42 (Varino com gabão a pág. 60) que foi fotografada cerca de 1910, mantém-se com perfeita actualidade; noutras classes, porém, passou inteiramente de moda o gabão; / 13 / de toda a Província – porque em toda ela se usou – é ainda a região da Ria de Aveiro aquela em que hoje se pode encontrar, sem constituir excepção a que as modernas gerações façam reparo.»

Nota do autor: Lembremos que a publicação de Rocha Madahil é do ano de 1941.

«Tão usado foi por pescadores da Ria que por "varino" passou a ser designado o gabão, ganhando grande aura a nova denominação, que suponho lançada no final do século dezanove.»

«Até para o Tejo os pescadores de Ovar, Murtosa e Ílhavo levaram o seu traje popular da Beira Litoral.» Assim escreve Rocha Madahil a pág. 58 do livro "Alguns Aspectos do Trajo Popular da Beira Litoral.

ÍLHAVO – Pescadores fazendo rede, à porta da rua. Cena muito vulgar, em toda a vila, em 1910.

Em Alguns Aspectos do Trajo Popular da Beira Litoral, 1941, A.G. da Rocha Madahil

 

Também Almeida Garrett no seu livro "Viagens na Minha Terra" ao falar do trajo usado pelos Ílhavos que conheceu numa viagem pelo Tejo a caminho de Alpiarça nos diz:

«Estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos, e o tabardo arrequifado siciliano de pano de varas.»

O amplo saiote grego dos varinos quererá significar as "manaias" dos pescadores da beira-mar; o tabardo arrequifado é uma espécie de capote com capelo e mangas, sendo estas e aquele debruados, usado nos séculos XIII e XIV.

Creio poder afirmar estarmos em presença do tradicional gabão de Aveiro, também conhecido por varino, por ser usado por homens da beira-mar.

/ 14 / Nota do autor: a publicação de as "Viagens na Minha Terra" foi iniciada em folhetins na “Revista Universal Lisbonense” no ano de 1843.

Observem-se as litografias de Jaubert, Macphail e Palhares, datadas de 1841/1842 e 1853 que adiante se publicam e que são conforme a descrição de Almeida Garrett.

VARINO, COM GABÃO – Aguarela não assinada,
reproduzida em cromo,  no Álbum de costumes portugueses, de 1888.


Mas, continuemos ainda com Rocha Madahil: «Em 1869 o Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, publicava um curioso artigo de J. S. Franco, de que vamos transcrever um passo relativo ao trajo aveirense:

«No homem um GABÃO que lhe desce até aos pés, de mangas e capuz. Um barrete catalão que lhe cobre a cabeça como uma asa de gaivota. Camisa branca como neve, por cima da qual se vê às vezes o colete de pano azul ou a camisola; ceroilas que lhe descem até ao joelho, deixando a descoberto o resto da perna; faixa vermelha, embrulhada graciosamente em volta da cinta. É este o trajo mais usado do varino pescador.»

O artigo de J. S. Franco «refere ainda uma peça de grande carácter, que sabemos ter irradiado da Região da Ria para todo o país, alcançando por volta de 1900 extraordinária difusão, que ainda se manteve, com oscilações, quinze ou vinte anos, começando então a sua rápida decadência, a ponto de se encontrar hoje em vias de desaparição: é o gabão também chamado varino.»

Todas as classes o usaram, pobres, remediados e ricos, variando apenas no tecido (que para as classes populares era de burel e surrobeco, ou ainda briche) e no colchete com que se aconchegava ao pescoço, que os ricos usavam de prata acrescentado de uma pequena corrente do mesmo metal.

 

O GABÃO É A RÉPLICA DA BEIRA-LITORAL À CAPA DE HONRAS DE MIRANDA DO DOURO, rica e hierática e ao capote alentejano de feirantes e lavradores de montados e charnecas; mais sóbrio do que qualquer desses, nem por isso é menos cómodo, tendo ainda a vantagem de ser mais leve.

É menos rodado que o capote alentejano. Tem mangas, romeira e capuz, que puxado sobre a cabeça, defende eficazmente da chuva e à noite... de olhares indiscretos espiando eternas aventuras.

«O gabão mais velho era usado de inverno quando vinham do trabalho, ou mesmo durante ele, se chovia; o novo para usar na vila, fora do trabalho e aos domingos; sem ele não iam à Igreja.

Assim escreveu o Conselheiro Ferreira da Cunha e Sousa, no seu manuscrito, Memórias antigas de Ílhavo.»

Seguidamente Rocha Madahil transcreve as notas do reverendo João Vieira Resende, historiador do Concelho de Ílhavo, que diz textualmente:

«– O gabão a que mais tarde se chamou varino ainda aqui continuou a usar-se quando por outras terras há muito tinha sido substituído pelo sobretudo.»

Em Aveiro fizeram igualmente a sua época; como reminiscência desse remoto tempo aparecem todos os anos pelo Natal e pelo Ano Novo, por ocasião da "Entrega dos Ramos" – cortejo característico que constitui uma das maiores curiosidades populares da cidade, de grande colorido e de comunicativo entusiasmo bairrista: – levam barrete encarnado os homens dos foguetes, à frente do rancho; uma faixa vermelha também, cinge-lhe à cintura o gabão de burel.

Em tudo aquilo esfusia vida, alegria e tradição.»

É de anotar que o investigador António Gomes da Rocha Madahil, ílhavo ilustre, Conservador do Arquivo e Museu de Arte da Universidade de Coimbra, vogal da Academia Nacional de Belas Artes, Director do Museu Marítimo e Regional de Ílhavo, publicou em 1968 um estudo sobre os / 15 / "TRAJOS E COSTUMES POPULARES PORTUGUESES DO SÉCULO XIX" com Litografias de Jaubert, Macphail e Palhares, litografias com datas expressamente declaradas de 1841 a 1842, sendo de 1853 o mais conhecido conjunto da autoria do desenhador Palhares Júnior, algumas das quais aqui se reproduzem, bem como as legendas que as acompanham.

ÍLHAVOS PESCADORES DE SARDINHA

Ambas as figuras trajam manaias e camisa branca. O homem à direita veste gabão de surrobeco castanho debruado a azul claro na romeira e no capuz. Barretes do mesmo tipo; o do moço, à esquerda, encarnado com rebordo verde; o do homem, castanho escuro com rebordo encarnado.

A camisa do moço, entreaberta, deixa ver um fio ao pescoço, com medalhas e Crucifixo. Rede com pesos de barro.

Encalhado na praia, à esquerda, um esgueirão com toldo armado sobre varas.

PESCADORES DE ÍLHAVO

Grupo análogo ao já registado, da 1.ª e da 2.ª série Palhares, propositadamente aqui apresentado como exemplificação da insistência editorial em determinados tipos populares de maior agrado púbico.
Exemplar não colorido.
Barretes compridos, de tipo diferente dos anteriormente exibidos.

Trata-se de "trajos populares, alguns tão pitorescos, tão sugestivos e tão belos... como os dos pescadores de Ílhavo" no dizer de Ramalho Ortigão em "Culto da Arte em Portugal".

ESTUDOS ETNOGRÁFICOS Coordenados por D. José de Castro (Domingos)

AVEIRO, VI Tomo, Edição do Instituto de Alta Cultura, Lisboa, 1943-1945.

Na página 336 destes Estudos Etnográficos, acerca de "Parceiros de Ramos" lê-se a propósito do uso do gabão:

«…revestindo o seguinte trajo: camisa branca com gola, gravata preta, casaco e calça pretos (lã) GABÃO NEGRO COM ROMEIRA E CAPUZ (lã) barrete negro com borla na extremidade (lã) faixa também negra em volta da cintura, sapato preto e peúga de lã.»

O PARCEIRO DE RAMOS

Na Estampa LVI destes estudos a fig. 3, que aqui se publica, representa

"Um Homem de Gabão, neste caso com a legenda: – “O Parceiro de Ramos".

O USO e o desuso do Gabão de Aveiro estende-se a todo o povo varino desde Ovar até Mira e ainda hoje se ouve falar dele com um toque de profundo saudosismo.

Vamos transcrever da Separata de "O FURADOURO" as palavras sobre o "O TRAJE" da autoria do Dr. Eduardo Lamy Larangeiro:

/ 16 / «Chegado o inverno frio e molhado, o pescador embrulhava-se no gabão do avô, vestimenta farta, com mangas, cabeção largo e respectivo capuz para se defender das inclemências do tempo.

No século passado e ainda nos começos do actual, a moda espalhou o gabão entre as diversas classes da população, independentemente da maior ou menor riqueza de cada um.

O próprio Eça de Queirós, nos Maias, escreveu que o Ega «meditava a morte de Satanás encolhido no seu "Gabão de Aveiro".

O gabão, semelhante a um hábito fradesco, também conhecido por varino era um casacão de pano forte – estamenha ou burel – de cor acastanhada ou mesmo negra, comprido até aos tornozelos, com mangas muito largas, cabeção curto, e rematado por um capuz em bico. No pescoço e para mais aconchego, o gabão apertava-se por meio de um colchete.

No mesmo autor encontra-se na Revista "Aveiro e o seu Distrito", n.º 15 de 1973, a pág. 8 o artigo "Duas Páginas de História de Ovar" com a seguinte informação:

«No próprio traje, que indubitavelmente sofreu a influência padronizada do tempo presente, ainda se encontram influências, muitíssimo atenuadas, é certo, do que acabamos de afirmar: – o gabão vareiro, o barrete do pescador, e tantos outros trajes já completamente desaparecidos.»

A testemunhar o seu uso tradicional no passado, encontra-se exposto numa das salas do Museu de Ovar, um manequim envergando um antigo gabão de surrobeco de cor castanha, com mangas, romeira e capuz em bico, que data de 1825.

HOMEM COM GABÃO – 1825 - Museu de Ovar.

O manequim está vestido com camisa e manaias brancas de estopa ou linho como era hábito e se lê na legenda que tem a seus pés. As mangas do gabão parecem estar forradas de preto e encontram-se reviradas nas suas extremidades; a romeira tem dois pespontos no rebordo; o capuz é todo forrado de preto e apresenta-se revirado no bordo; a capa do gabão é igualmente debruada de preto na face interna dos seus dois panos frontais, os quais se podem justatapor quando apertados à frente com um colchete de metal para o aconchegar ao pescoço. De anotar a existência de um bolso aberto obliquamente em cada um dos lados da capa – único exemplar que vi assim até hoje .

 

"O GABÃO DE AVEIRO", de Dr. José Pereira Tavares, Reitor do Liceu de José Estêvão, in "Arquivo do Distrito de Aveiro", vol. XXXIII.

 

"A circunstância de haver caído em desuso esta muito característica peça da indumentária masculina da região aveirense, ainda no começo deste século do gosto de toda a gente – determinou que nas revistas de costumes locais se registasse e comentasse o facto. 

/ 17 /   A primeira revista em que entrou o "GABÃO" intitulava-se "Ao Cantar do Galo". Foi seu autor Mário Fiúza, subiu à cena em 1936 e foi repetida em 1961 por grupos cénicos do Clube dos Galitos. Eis a fala do "Gabão":

– Quem sou? Sou o "Gabão de Aveiro".

– Este gabão que eu trago – que parece um hábito de frade – já hoje desusado, julgado velharia e ridículo talvez  foi moda de alguns séculos, consolo de muitas gerações, teve voga e deixou muitas saudades.

Era agasalho dos pobres – mesmo a cair aos farrapos – era orgulho dos ricos, talhado em fazenda duradoura. Este gabão aproximava as classes, irmanava os homens, adoçava as diferenças sociais!...

Tornou-se vestuário do janota, luxo da terra, cobiça dos estranhos e admiração dos visitantes!

MAS TENHO FÉ QUE, DAS CINZAS DO PASSADO, AINDA UM DIA VOLTARÁ A RENASCER; E ENTÃO O GABÃO DE AVEIRO TORNARÁ A SER O ORGULHO DOS AVEIRENSES!..

Em 1956, também o gabão aparece na revista "Última visita de Pangloss" da autoria do Dr. José Pereira Tavares, representada por alunas e alunos do 7.º ano do Liceu de José Estêvão, de que o autor foi ilustre Reitor nos períodos de 1926 a 1931 e de 1940 a 1957.

«…Olhe,  onde vês tu hoje, por exemplo, um gabão?

Não obstante, era no nosso tempo agasalho vulgaríssimo de pobres e ricos. Tão vulgar que os velhos da nossa mocidade ainda se lembram de ter visto "debaixo dos Arcos" embrulhados neles, José Estêvão, Mendes Leite e outros grandes cá da terra".

"CORREIO DO VOUGA" n.º 2597, de 16 de Julho de 1982.

Destacamos as palavras de Eduardo Cerqueira, jornalista aveirense de renome, acerca do "DESAPARECIDO GABÃO DE AVEIRO".

"…Desapareceram os gabões.

Os gabões ou varinos de Aveiro. Que varino, talvez nem etimologicamente, nada tinha a ver com Ovar.

Era mesmo de Aveiro. Como a Ria na designação global. Varinos de Aveiro. Também assim se denominavam os mais correntes "GABÕES DE AVEIRO".

Tanto serviam, espessos e pesados, de burel ou surrobeco, ou de qualquer tecido mais leve e igualmente acalentador, para agasalhos eficientíssimos nas madrugadas ou nas densas noites frias....

HOMEM E MULHER DE OVAR – Saia castanho claro, muito curta e rodada. Camisa branca, de mangas compridas com cabeção, e colete azul escuro com duas idas de 3 grandes botões. Mantel castanho escuro, posto ao ombro. Lenço amarelo com barra encarnada e chapeirão com travincas guarnecidas com borlas. O homem veste manaias e camisa branca, de boles, colete encarnado e gabão castanho, cingido na cinta. Barrete encarnado.

 

O grande Eça, reavivando as suas recordações infantis de "filho de Aveiro" quase peixe da Ria encafua num amplo gabão (rodado, amplo e indesvendável) para certamente se furtar a olhares indiscretos comentadores de escândalos badalados por maledicência, o incestuoso Carlos da Maia, nas suas visitas à "Toca" (Os Maias", 7.ª ed. 1924, vol. II. pág. 154).

O gabão – e eu recordo-me bem e cheio de saudades daquele em que me enrodilhava tantas vezes – não era, pois, apenas um agasalho tão castiço e típico como um moliceiro ou um mercante!.

Era também um denso, impenetrável dominó que anonimizava  quem o envergasse com finalidades de disfarce.

E enrolavam-se nos desabafados gabões, circundados por faixas de alacre colorido os "parceiros dos Ramos" nas alturas da quadra natalícia ou nos inícios dos novos anos.

E com a extinção das tão características "entregas" ficou por aí, praticamente, o gabão.

 / 18 / Conheci-os na plenitude da costumeira usança.

Mas parece que lhes sobrevivi. O que melancoliza e todavia não é de todo mau. SE É QUE MESMO NÃO SERÁ POSSÍVEL RESSURGI-LOS ... AOS GABÕES DE AVEIRO:

Nota: É pena que esteja por fazer a história da estadia de Eça de Queirós, em casa de seus avós paternos, em Verdemilho.

Eduardo Cerqueira, saudoso jornalista aveirense Boletim Municipal de Aveiro, n.º 1 – Março de 1983

"Os gabões de Aveiro, uso perdido – apesar de uma, mais ou menos vã, ainda que louvável, tentativa de ressurgimento – relegaram-se à evocação de passada indumentária característica.

Tão ao sabor de Aveiro como as embarcações da Ria, haviam irradiado como agasalho e vestimenta, ou envoltório para disfarce ou ocultação previdente de divagações furtivas, maus passos, ou aventuras que exigiam capas não translúcidas. Em certas circunstâncias de sigilo conveniente às boas reputações, cada um, com o gabão, se poderia furtar a olhares indiscretos e a línguas malévolas, badaladoras de novidadezinha comprometedora.

Eça de Queirós – esse imorredoiro "pobre homem da Póvoa do Varzim" que, no fundo e até final, ficaria um "filho de Aveiro, quase peixe da Ria" – lembra-os nesta função acobertadoura de passos a que não convém as testemunhas mais ou menos incontinentes e linguareiras. E, também, no seu espesso pano de surrobeco, ou mais graduada fazenda, as reminiscências da meninice, passada em Verdemilho ou na cidade, a dois passos da igreja paroquial de Nossa Senhora da Apresentação, na mais específica função agasalhadora.

Já algures apontei nestes preciosos termos, mencionando as referências do grande escritor a Aveiro: ... "o gabão, agasalho então em voga por todo o país, dentro do qual se encolhia o "famoso Craveiro" enquanto congeminava a "Morte de Satanás" e que o próprio Carlos Maia, elegante e rico, não desdenhava de encafuar nas suas visitas à "Toca", para mais fácil dissimulação".

Na quadra dos "Ramos", nas noites gaudiosas, aparece ainda hoje, em esporádicas exumações – que o costume exige-o, como à opa da manhã.

Com efeito, no início do ano, como na derradeira semana do precedente, a cerimónia festiva do calendário tradicional subsiste ainda – e cremos que por longos anos ainda – na "Entrega dos Ramos".

 

AVEIRO ANTIGO, edição da C.M.A. - 1985

Encontramos nesta publicação um repositório de fotografias antigas da cidade, de trajos e de costumes dos seus habitantes, da autoria de António Graça, nascido na antiga Rua da Sé no ano de 1903, meu vizinho e companheiro dos tempos antigos.

Assim na pág. 29 vem publicada uma fotografia, com a legenda "Descarga de junco no canal de S. Roque", uma das muitas malhadas da Ria de Aveiro.

Do conjunto faz parte um homem "envergando o gabão de Aveiro" como o diz a própria legenda.

Gabão bastante amplo, descendo até aos tornozelos, de cor negra (segundo parece) reconhecendo-se / 19 / perfeitamente uma farta romeira e um capuz em bico.

Anotar o uso de chancas ou tamancos – calçado com solas de madeira (Iodão, nogueira ou amieiro).

Na mesma publicação e a pág. 87, vem publicada uma fotografia com a legenda: "Trajes regionais" representando um grupo de personagens (três homens e três mulheres) que bem poderia designar-se por "intervenientes na cerimónia da Entrega dos Ramos", que assim se podem descrever:

– Dois mordomos dos Ramos da Confraria do S. S. Sacramento da freguesia da Glória e da Confraria do Senhor Bendito da freguesia da Vera-Cruz. acompanhados de três tricanas de Aveiro e do Parceiro dos Ramos.

Os mordomos dos Ramos vestem camisa e laço branco, fato e sapatos pretos, luvas brancas e opa de seda escarlate, aconchegada à volta do pescoço por um cordão terminado por uma vistosa borla com franja de fios de ouro pendente sobre o peito Seguram na mão esquerda o característico Ramo da Entrega e na mão direita a vara do Juiz da Irmandade (Confraria).

Estão acompanhados lado a lado por uma tricana de Aveiro, que pensamos serem suas esposas trajando à época e uma tricana de Aveiro trajando à antiga.

Do grupo faz parte como figura central o PARCEIRO DOS RAMOS que segundo os costumes veste o tradicional gabão de Aveiro de burel ou de pano negro, enfaixado por uma cinta e usando barrete, cuja ponta com borla descai sobre o lado direito da cabeça.

Na mão esquerda segura um molho de foguetes, destinados a serem atirados à porta do parceiro, à noite, durante a Arruada, ao som da Banda de música.

 

AVEIRO E O SEU DISTRITO

Publicação semestral da Assembleia Distrital de Aveiro

Também nesta revista, no seu n.º 31 do ano de 1983, num artigo assinado pelo Dr. Amaro Neves "Cem Anos de Artes Plásticas" é publicada (?????) a fotografia de um quadro do artista plástico aveirense Lauro Corado, pertencente à colecção da C.M.A., representando dois Mordomos dos Ramos e o Parceiro. Este veste o Gabão de Aveiro, enfaixado, transportando aconchegado ao peito um molho de foguetes.

E acompanhado por um rapazito que segura e sopra a "mecha" de atiçar os foguetes. Tem por fundo o Cais dos Botirões e a cúpula da Capela de S. Gonçalinho.

(Continuação do artigo) - ►►►
 

 

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