Vizinho do mar, liso como a palma da
mão, entretecido de linhas de água doce e salgada, o concelho de
Aveiro, onde as mais diversificadas fainas se processam, tinha de
ser, como de facto é – é ainda –, embora o não pareça aos olhos
menos avisados, incomensuravelmente rico do prisma etnográfico e
folclórico. Com a particularidade, nada comum, de semelhante
riqueza, longe de apresentar carácter uniforme, diferir de região
para região. Completamente distintas, em seus usos e costumes, são
na verdade a Beira-Mar aveirense, a faixa ribeirinha do Vouga, as
zonas agrícolas do interior e a própria nesga de areia de S.
Jacinto, de incontroversas raízes murtoseiras.
Os específicos trabalhos, adaptados
ao meio geográfico ou por ele impostos, acham-se necessariamente na
base da apontada diferenciação, assaz profunda por vezes. As
salinas, as marinhas de junco, as pescas lagunar, do alto e à boca
da barra, as vetustas indústrias, tantas delas exercidas em moldes
artesanais, a par dos modernos estabelecimentos fabris, certos e
contrastantes pormenores entre o labor agrícola nos campos que
marginam o Vouga e nas terras mais «velhas» dos aros de Aveiro,
criaram todo um pequeno mundo de exigências, que se reflectem no
vestuário, na alimentação, nas ferramentas e aprestos, na linguagem,
na maneira de viver, em suma, das populações.
Um camponês da Oliveirinha, por
exemplo, ignora numerosos vocábulos correntios na Beira-Mar, como um
marnoto desconhece histórias tradicionais consabidas na Oliveirinha.
A labuta pela negra côdea não deixa de ser idêntica. Simplesmente, o
modo – ou a técnica – de a agenciar é que é totalmente diverso. Onde
florescem os pampilhos e as papoilas não medram as tramagueiras...
Com o dobar dos anos e ao influxo do
progresso, a vida do povo foi ganhando outra feição. Para melhor,
felizmente. «No meu tempo é que era!», escuta-se a par e passo, numa
louvação.
Nada mais enganador. Se a gente que
trabalha ainda hoje vive mal, outrora apenas vegetava. Moirejando
como escrava de sol a sol, alimentava-se pobremente, carecia de
comezinhos agasalhos, restava-lhe morrer quando a doença batia à
porta, mais bastos que as suas alegrias seriam os tão raros trevos
de quatro folhas...
Entrega dos Ramos, uma velha tradição
aveirense.
Com as vivificantes aragens, muita
coisa, alguma sem dúvida tocada de maravilhosa poesia, de supremo
encanto perfumada, quase levou sumiço. Serão horas, portanto, de
rastrear o que ainda subsiste, de desencantar o que possa jazer
esquecido, a modos de inúteis maravalhas, na arca do peito dos mais
velhos.
Do que foi salvo e compendiado, ao
longo dos tempos, por uma plêiade de beneméritos da Cultura, deveras
lucraram, têm lucrado, sociólogos e artistas. Páginas onde não flua
o povo ou aquilo que respeita ao povo são laudas ao mar – nem um
brilhante estilo lhes dará perenidade.
Trindade Coelho, num volume, «O
Senhor Sete», apresentado e anotado por Augusto da Costa Dias,
escreveu em dado passo: «Tudo o que vem do povo interessa. O povo é
o passado. O povo há-de ser também o futuro. Tudo o que vem do povo
interessa: costumes, crenças, superstições, poesia, música – e até a
sua própria culinária».
Dando o nosso apagado amém aos
dizeres, redigidos no ocaso do século XIX, pelo escritor
transmontano, apresentamos seguidamente uma gabelazinha de singelas
nótulas. Respeitantes ao concelho de Aveiro e, implicitamente, de
índole etnográfica e folclórica.
/ 52 /
AS ESTEIRINHAS
A Senhora da Conceição abre os
armários – rezava velho provérbio aludindo ao ciclo festivo a
decorrer até princípios de Janeiro. Tempo das esteirinhas, como se
dizia em Aveiro, designadamente na Beira-Mar, ou seja, das festas de
confraternização da família, que, uma vez ou outra, incluíam também
parentes e aderentes. Caso, por exemplo, de alguém da casa «receber
o Ramo»...
As esteirinhas eram cinco e o povo
enumerava-as assim:
1.ª Esteirinha – Véspera da Senhora
da Conceição.
2.ª Esteirinha – Véspera de Natal.
3.ª Esteirinha – Véspera do Ano-Bom.
4.ª Esteirinha – Véspera dos Reis.
5.ª Esteirinha – Véspera de São
Gonçalinho.
Mas, esteirinhas porquê? Talvez – e
não encontramos razão mais plausível – por a família comer sempre na
cozinha, sentada invariavelmente numa esteira onde, ao centro, sobre
uma toalha ou um pano muito limpo, fumegava a comida. Esteira e,
daí, esteirinha, o diminuitivo a sugerir refeição melhorada,
própria, como o povo diz ainda hoje, dos dias diferençados.
ENCAMISADAS
Pela festa de «São Bartolameu», em
Sarrazola – que se realiza em Agosto e é o drago (orago) da
localidade –, efectuavam-se, outrora, movimentadíssimas e
pinturescas encamisadas.
De noite, com grande alarido, negros
barretes de lã na cabeça e faixas escarlates na cinta, homens e
rapazes já espigados, montando toda a sorte de cavalgaduras – éguas,
cavalos, machos, jumentos –, partiam em tropel, seguidos de numerosa
peonagem, ab transpor, de qualquer modo, as fogueiras que se
fizessem por ali ou nos lugares próximos.
Já de sobreaviso, os promotores das
fogueiras buscavam que elas fossem tanto quanto possível
intransponíveis...
Motivo de enorme e duradoiro gáudio
para a encamisada ou para quem fazia as fogueiras era,
respectivamente, a facilidade ou a dificuldade que o obstáculo
oferecera...
De anos a anos, a encamisada levava
grades de lavoura, puxadas por muares, a fim de, lançando os animais
pelos pontos onde as labaredas se mostrassem menos alterosas, as
grades destruírem aos fogueiras, apagando-as depressa.
Por ocasião da festa do Espíritlo
Santo, em Cacia, também se organizavam encamisadas.
A SENHORA DAS AREIAS
A Senhora das Areias,
ai dim, ai dim, ai dão,
Tem um dedinho cortado,
ai charlequiti, ai charlequitão,
Que lhe cortaram os moiros,
Que lhe cortaram os moiros,
Mariquinhas logo
disse,
Mariquinhas logo
disse,
De cima do seu telhado!
(S. Jacinto)
/ 53 /
A CASA DA BEIRA-MAR
NO PRIMEIRO QUARTEL DO SÉCULO
De um só piso, beiral corrido, uma
porta com soleira alta de pedra e uma janela de guilhotina, eis a
casa típica da Beira-Mar. Designadamente do bairro piscatório e
salineiro, onde tais moradias, lambuzadas de cal, sucedendo-se, sem
intermitências, umas às outras, constituíam inteiras e
características ruas.
A Senhora das Areias, em S. Jacinto,
«deita fitas a voar...»
Se, exteriormente, a arquitectura
era simples, simples era também a do interior. À frente, a toda a
largura, o aposento nobre, a sala, para a qual dava uma alcova. Ao
fundo, porta e janela rasgadas para exíguo logradouro ou
quintalzito, a cozinha, centro de toda a vida familiar, pois nela se
comia e recebiam as visitas. No corredor, que, invariavelmente
fronteiro à janela e não à porta da rua, por mor das correntes de
ar, ligava a sala com a cozinha, uma ou duas alcovas mais. Mas, por
vezes, a casa tinha sótão – amplo, sobretudo para armazenagem das
redes, ou dividido em quartos de dormir, destinados aos
filhos-família – para o qual se subia, da cozinha, por modesta
escadita. Quando não por uma escada móvel, de trolha. Como o espaço
escasseava, forçoso era economizá-lo...
No pequeno logradouro, onde se
situava a casinha ou sentina, arrumavam-se, sob um telheiro, as
velas, os remos e demais alfaias do barco. Não raro, ao longo do
corredor da casa, em suportes altos, cravados na parede mestra, ou
no próprio sótão, é que se arrecadavam alguns dos aprestos. As
velas, especialmente, que, no inverno, não convinha de forma alguma
«deixar ao tempo».
O tecto era de madeira e o pavimento
de terra negra batida e coberto de junco, que se renovava todas as
semanas, por via de regra ao sábado.
Ingénuo luxo ou vaidade consistia,
entretanto, em se espalhar areia do mar e fazer a juncada «ralinha»
para que a brancura da areia luzisse – aos olhos indiscretos da
vizinhança ou das poucas visitas da casa...
BILHARACOS
Fritos de massa de abóbora menina,
farinha de trigo, ovos, açúcar e manteiga.
Cose-se a polpa da abóbora,
previamente cortada aos pedaços, e põe-se a escorrer, de um dia para
o outro, numa saca ou num pano. Bem escorrida portanto, amassa-se
com ovos, um tudo-nada de farinha, açúcar e manteiga. Em forma de
bolas, frita-se em azeite ou óleo, numa sertã. Já na travessa, os
bilharacos polvilham-se com açúcar e canela. Entretanto, há quem
prefira cobri-los, o que é menos vulgar, com uma calda de açúcar em
ponto.
A quantidade dos ovos, do açúcar, da
manteiga e até da farinha depende do critério – ou das posses de
quem faz os bilharacos
(1), doce caseiro generalizado na
quadra do Natal.
AS SESTAS
A Senhora da Alegria traz a sesta e
o S. Paio leva o sesta – recordam a seu tempo os poucos lavradores e
trabalhadores que, em Aveiro, ainda fabricam as terras. Por sua vez,
os operários da cidade e arredores diziam, outrora, ir buscar as
sestas à romaria da Senhora do Álamo ou da «Alma». Uma outra
sentença lembra, igualmente: Senhora da Piedade, primeiro dia de
sesta.
Na Oliveirinha, já a regra é mais
completa e quiçá mais curiosa. Reza desta maneira: As sestas e as
merendas começam na segunda-feira de Pascoela. Mas vem o S. Paio e
rouba (sic) as sestas, as merendas e dez tostões.
Efectivamente, como os dias são mais
pequenos, toca de os trabalhadores ganharem menos. Outrora, os tais
dez tostões.
Uma data que, no concelho de Aveiro,
recorda também o início das sestas respeita à pequena romaria da
Senhora da Conceição, na segunda-feira de Pascoela, em Madeiro
(Mamodeiro), onde se comem muitos folares. Aflui povo das redondezas
e, como incentivo para a ida à festa, vá de relembrar: – Vamos a
Mamodeiro buscar a sesta!
A propósito, refira-se que a Senhora
da Piedade se venera na Quinta do Gato e que da Senhora da Alegria
existe em Aveiro, no velho Bairro de Sá, uma
/ 54 / capela do século XVI –
ou talvez XV – pertencente outrora à irmandade de mareantes e
pescadores.
Quanto ao S. Paio, entronizado na
Torreira, torna-se desnecessário falar. A romaria é famosa muitas
léguas em redondo.
Corrida de bateiras no Canal de S.
Roque.
FORNOS DA POIA
Nos fins do primeiro quartel deste
século, se não da terceira década, existiam ainda em Aveiro três
«fornos da poia» – o da Maria do Forno e o da Rosa Lavada,
contíguos, ambos na rua do Vento, e o do «Polino», no Alboi.
As donas de Casa – daquelas casas em
que, quando muito, só se comia pão-trigo de manhã, ao almoço –,
depois de amassarem e levedarem a massa com fermento caseiro,
deixado de uma vez para a outra numa malga, iam cozer a broa ao
«forno da poia». Tantas broas quantas supunham necessárias para o
governo da casa durante a semana. Assim, coziam um alqueire, meio
alqueire, uma quarta ou tão-somente um «çurmil» (selamim).
Com as broas era também cosida uma
bola, à boca do forno, que iam buscar, à noitinha, para a ceia. A
fim de não arrefecer até casa, pois devia ser comida ainda quente,
por mais gostosa, embrulhavam-na cuidadosamente numa toalha e outros
panos. As broas, mais altas do que a bola, ficavam no forno, para
cozerem melhor, até à manhã do dia seguinte.
No intuito de se evitarem trocas, ou
enganos – só o forno da Rosa Lavada tinha capacidade para quinze
alqueires –, as freguesas usavam marcas diferentes, como conchas,
carolos, seixos miúdos, carimbos recortados em folha de flandres,
rolos de papel de várias qualidades...
Quem, por qualquer razão, tinha de
antecipar o dia de cozer, ia, de manhãzinha, «pedir ordens», quer
dizer, espaço no forno: – Ordem! – gritava da porta. – Quanto? –
queria saber a forneira. – Meio alqueire!
Quando não havia «Ordem», algumas
freguesas chegavam a atribuir-se mutuamente as culpas e punham o «creto»
ao sol uma das outras. Isto é, descompunham-se. Com reflexos nas
vendas ou tabernas, dado que os maridos também comentavam a seu modo
a «falta de ordes»...
AS GRALHAS E AS ANDORINHAS
As gralhas e as andorinhas
encontram-se no caminho. Quando umas chegam, as outras já partiram.
Os lavradores não poupam as
primeiras, atirando-lhes cada «fogacho» que fica o chão estrumado
delas, mas respeitam as segundas. De modo que as gralhas regressam
dizimadas e mais numerosas partem as andorinhas.
Quando se cruzam no caminho, estas
perguntam, irónicas:
– Que vos aconteceu, minhas loucas,
que éreis tantas e vindes tão poucas?!
Ao que as gralhas, não menos
ironicamente, logo contrapõem:
– Que fizestes, minhas p..., que
éreis tão poucas e vindes muitas?!
(Conto tradicional – Oliveirinha)
/ 55 /
REMAR A JOJA POR MOR DAS BRUXAS
O ti Pedro, de noite, foi à chincha.
Chegou à praia, desembarcou, e veio por ali fora. A certa altura,
topou uns patos. Foi direito a eles e agarrou dois.
|
– Patos! Mas que ricos patos!
Regressou a casa e disse:
– Maria, topei agora dois patos na
praia.
– Ó home, olha que pode ser alguma
bruxa.
– Quais bruxa, quais diabo! Vão mas
é já prá caixa. E meteu-os na caixa da cozinha, pumba! Pra dentro.
Foi deitar-se com a mulher, mas ainda não tinha pregado olho quando
os patos começaram:
|
A Capela de S. Bartolomeu, na
Beira-Mar. |
– Ti Pedro! Abra-nos a caixa, ti
Pedro.
E a mulher, que também ouviu,
principiou a dizer baixinho:
– Eu não te dizia que eram bruxas?!
O ti Pedro levantou-se, foi à caixa,
mas, quando lá chegou, quero que é deles. Qual patos, qual diabo! –
Já cá não estão, Maria!
– Caredo! Sempre eu tinha razão,
caredo, santo nome de Jasus!
O ti Pedro, quando, depois, ia à
praia, só remava à joja, com os remos cruzados, e deixava-os também
da mesma maneira, isto é, em forma de cruz.
Nunca mais lhe assucedeu nada.
(Conto tradicional. – Beira-Mar)
SABEDORIA DAS NAÇõES
Encomendas sem dinheiro ficam no
cais de Aveiro.
O peixe nunca puxou à carroça.
Peixe morto, pescador vivo.
Quem muito aperta a enguia, ela lhe
foge da mão.
A cebola é a galinha dos pobres.
Barco afundado, embarcação nova.
Até ao S. João, gabão; do S. João em
diente, gabão sempre.
No Santo António é devida uma
chuvada. No S. João, também. O S. Pedro manda a última cabaçada.
Feijão segura o calção.
Portugal é um ovo, a Espanha uma
peneira e a França uma eira.
Pescadores fazendo a caldeirada. Foto de
há meio século (princípios do século XX), que podia ser repetida
hoje. Os pobres da laguna continuam pobres...
SÃO BARTOLOMEU E O SEU MOÇO
No dia de «São Bertolameu» anda o
diabo à solta – consta da chamada sabedoria popular. Sucedem muitos
desastres e não se deve fazer qualquer trabalho a eles mais atreito.
Não obstante o atávico temor
popular, recorre-se ao santo para resolver situações delicadas.
Em Sarrazola, de que é padroeiro,
figura com o Dialho preso por uma corrente. À cautela, o
povo, nas suas promessas, costuma englobar um e outro. Assim, ao
entregarem qualquer óbolo, destinam, por exemplo, dez mil réis ao
santo e vinte e cinco tostões ao «moço» – nome que dão ao
inseparável companheiro de São Bartolomeu...
Ainda em Sarrazola, algumas casadas,
quando desconfiam que o «seu home» anda metido com outra mulher,
vão, ao dar da meia-noite, bater à porta da capela. Pedindo ao santo
que lhes deite o marido abaixo da cama da amiga...
Por seu turno, em Aveiro, quando
alguém se acha roubado ou perdeu um objecto e não lho entregam, vai
igualmente bater à porta da capelinha de São Bartolomeu, na
Beira-Mar, e diz três vezes:
«São Bertolameu»
desprende o teu moço,
que faça guerra
àquilo que é meu.
/ 56 /
Tais palavras devem ser proferidas
ao bater da meia-noite e repetem-se, pela semana adiante, até que o
objecto apareça. Ao mesmo tempo, é de obrigação deitar por baixo da
porta a mais insignificante moeda que então correr. Em tempos, cinco
réis. Agora, e obviamente, um tostão...
O REBOLÃO
Ao dar da meia-noite, na véspera de
São João, muitas pessoas, de todas as idades e de ambos os sexos,
iam rebolar-se no declive da pequenina eminência onde assenta, junto
do típico canal de S. Roque, a capela da Senhora das Febres.
Em trajos menores, estendiam-se ao
comprido com a soleira da porta do modesto templo beira-marense e,
depois de proferirem, três vezes, «Em louvor de São João, pra me
tirar a rapeira, sim ou não», desatavam a rebolar até ao largo
fronteiro. Protestavam ficar curadas e mesmo preservadas da «rapeira»
e de todas as doenças da pele...
A assistir, discretamente, que é
como quem diz, «à descoroçoa», não faltavam mirones.
Tal usança perdurou até fins da
primeira metade do século em curso (XX), mais coisa menos coisa...
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(1)
– Em Aveiro diz-se bilharacos e não como consta dos dicionários,
belharacos. De resto, os etimologistas ainda não chegaram a acordo
sobre a origem da palavra. Consequentemente, da sua «arquitectura»
definitiva. |