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Filho primogénito de: Rita de Morais
Sarmento e Sacramento e de Artur Rasoilo Sacramento;
Neto Materno de: Evangelista de Morais
Sarmento e de Laura Augusta dos Santos de
Morais Sarmento;
Neto Paterno de: Bernardo Francisco
Rasoilo e de Maria Emília Rodrigues de Azevedo
Sacramento;
Irmão de: Maria Ivone (falecida com 10
meses) e de Maria Ivone de Morais Sacramento;
Casado com Cecília Marques Maia.
Pai de: Rui da Maia Sacramento e Clara da Maia Sacramento;
Avô de: Vasco da Maia Sacramento Ferreira Borges;
Sobrinho Bisneto de: Clemente de Morais Sarmento. |
Natural de Ílhavo, nasceu em 7 de
Julho de 1920, no Largo do Oitão, n.º 17. Nascimento muito difícil e
prolongado, cerca de três dias, apesar de assistido pelo velho Dr.
Pereira da Cruz, de A veiro, foi o primeiro traumatismo que sofreu,
pois a sua volumosa cabeça exigiu ferros e torturas para ele e sua
Mãe. Nasceu todo pisado. Serão Padrinhos de baptismo, a irmã da Mãe,
Augusta de Morais Sarmento de Quinta Domingues e o irmão mais velho do
Pai, José Rasoilo Sacramento, o PIM.
Recebe o nome de Mário Emílio, em
homenagem à avó paterna, Maria Emília, que vegetava após a morte,
muito jovem, da filha Sofia e que rejuvenesce com o nascimento do
neto. Por caprichos do Registo Civil, é-lhe cortado o apelido
Sarmento, pela ressonância com Sacramento, o que causa grande desgosto a sua Mãe.
Mais tarde, já Pai, apesar do profundo amor que o liga a Mãe (ver
"Diário", páginas 18 a 20), dará aos filhos nomes curtos e um só
apelido, dentro da sua formação cultural de síntese. Crê, certamente,
que importará apenas transmitir aos seus descendentes – e irá fazê-lo
– o exemplo de coragem cívica que recebera dos antepassados de sua
Mãe.
Por imperativos profissionais do Pai,
a família muda para Aveiro, para um prédio já demolido, na hoje R. Castro Matoso, freguesia da
Glória. Aí morre a bebé Maria Ivone e nasce a última irmã, também
Maria Ivone, que o Pai, igualmente, regista em Ílhavo.
Pelo mesmo motivo, regressam a Ílhavo,
indo morar para a Rua Camões, hoje com o n° 111113 e só após a morte
dos Avós Paternos passarão a residir na Rua Serpa Pinto, n° 2,
casa que faz esquina para o Largo do Oitão e o Beco da Filarmónica, onde o Pai, numa pausa da
vida marítima, abrira já um escritório comercial.
Essa será a casa da sua adolescência e
que os amigos e colegas irão recordar, a casa onde crescerá rodeado
dos livros da muito razoável biblioteca do Pai.
Faz o exame de Instrução Primária, com
distinção, com o Professor Matias, estuda piano, sem vocação, e começa
cedo a trocar as noites pelos dias, na fome devoradora da leitura.
Como curiosidade, enquanto a irmã comanda o "batalhão", dos
vizinhos, em brincadeiras sem fim e corre as Gafanhas na bicicleta do
irmão, Mário Emílio vem direitinho para casa, "sem saber correr", como
se queixava o Pai, ansioso por retomar o namoro com os livros. Perdida
a noção das horas, é de madrugada que apaga a luz, já muito perto da
hora de se levantar para a carreira das 6:30 da madrugada,
que o levará ao Liceu.
Estremunhado, implora várias vezes à
irmã, que o vai chamar, "só mais cinco minutos" e, perdida a
camioneta, vezes sem conta, lá vai aparecer no Liceu, estafado, de
bicicleta... Começa, cedo, esta má distribuição do sono e da leitura.
Vai fazendo traquinices, como é
próprio da idade: entala a cabeça ria grade da varanda da avó Laura, em Aveiro , que terá de ser
serrada e faz pior, transforma em capacete um vaso de noite, onde
também a grande cabeça fica entalada, só liberta com a ajuda de um
latoeiro...
Obedece ao Pai, descendo dum 2° andar
dentro da manga de lona, usada nos exercícios dos bombeiros, embora
não muito afoito, e acompanha-o, aí todo contente, num dos carros dos
bombeiros de Ílhavo, sempre que pode, nas chamadas de socorro.
Gosta de nadar, de velejar e de fazer
outras travessuras
– desaparece um dia, juntamente com o hoje
Almirante Mário Teles, seu amigo de infância, sem aviso, no barco da "Companha",
para saber como era a pesca no alto mar... Foi um alarme em casa, enquanto não apareceram, como se
calculará.
Mostrava já a sua
verticalidade: a irmã faz uma malandrice e é "condenada", pela Mãe, a ficar, durante
algumas horas, amarrada com uma linha a uma perna de uma mesa. Cumpre
o que para ela era medonha privação da sua liberdade. Terá companhia:
Mário Emílio também se prende, porque entende que a incentivou na
proeza...
Mais tarde, já adolescente, por outro "desvio" não memorizado, levou uma
pequena bofetada da Mãe – coisa tão rara na Mãe e no filho, que acabou
na tragicomédia de ser o filho a consolar a Mãe, chorosa e desgostosa, cena que
causou, posteriormente, comovido riso, na família.
Nos primeiros anos do Liceu, começa a
fazer um pequeno jornal, redigido à mão, que vende à família, já para
comprar livros, num dueto desafinado com a irmã, ela a servir de
fadista (!) e ele a tocar a bandurra (instrumento de corda) do Ti' Néu.
Daí o convite do Reitor, conhecedor do jornaleco, para dirigir, tão
jovem, o Jornal do Liceu.
Dirigirá, posteriormente, a "Voz
Académica" em 1935, com 15 anos e em 1937, até o jornal ser suspenso
pelo fascismo.
Aprende Esperanto, (escreve um curso
não editado), e ensina-o, bem como Francês, Inglês e Literatura, a
jovens ávidos de cultura, de menores bases económicas, para o que
aluga uma pequena sala de bancos corridos, onde instala boa parte da
biblioteca do Pai (perto de mil volumes), mais tarde bastante aumentada, integrada no
Illiabum Club.
Aí terá a primeira devassa das
autoridades, representada pelo Presidente da Câmara, que inspecciona a
sede do grupo esperantista Rondeto Carta Bourlet, acusado de
"actividades subversivas"! A proprietária da casa, a viúva do Dr.
Malaquias, é pressionada a despejar os rapazes e vale-lhes um
sapateiro protestante, o Sr. Pinho, que lhes aluga duas salas, ao Alto
Bandeira. Estes elementos foram-ma dados, entre outros muito valiosos,
por um desses rapazes, o encarregado da biblioteca, o mais entusiasta
e o de menores estudos, mas o mais ávido dessa cultura, para que "se
não perdessem".
Transcrevo a carta da oferta do seu
arquivo: "À manière de ...
Proémio
Nunca supus que os meus recortes de há
tantos anos pudessem vir a ter a missão histórica que agora lhes foi
imputada – recortes e cartas de Tua autoria.
Assim, é sem apego que os envio à tua
irmã, para que ela lhes dê o destino chave de estudo da tua
personalidade. Quanto a mim é a maneira única de ser útil a quem tanto
me deu: uma consciência política.
Contribua, pois, esta modestíssima
acção para o erguer do monumento de Homem íntegro, que sempre foste,
caro Mário Sacramento."
Lisboa, 11 de Maio de 1969
Amadeu Gomes
Conta, noutra carta: "Um dia...
pedi-lhe que me dissesse os jornais em que ia colaborando para assim
poder compilar a sua obra. E a sua resposta, num bilhete postal que
não tenho, infelizmente, foi um exemplo breve daquilo que, mais tarde,
Ele havia de esculpir na nova imagem do Eça – a ironia – dizendo-me que
mais valia coleccionar rolhas de cortiça!" Amadeu Gomes
coleccionou mesmo as "rolhas de cortiça" e ao seu arquivo
se deve não se ter perdido muito do que Mário Sacramento escreveu,
debaixo de vários pseudónimos, como Berta de Sousa, Maria do Monte e
Miguel dos Santos, na "Independência de Águeda", "Jornal do Minho", etc., etc. Arquivo que já serviu,
entre outros, para a obra já concluída sobre Mário Sacramento, que
devia estar já publicada, se a eterna burocracia a não travasse.
Traduz para Esperanto vários cadernos
da colecção "À volta do Mundo" do Dr. Agostinho da Silva, como, por
exemplo, "La Arenoj", idealiza Pousadas da Juventude, multiplica-se em
palestras de divulgação.
Faz, no quinto ano do Liceu, um
cruzeiro a África, a bordo do paquete "Moçambique", gozando do
privilégio gratuito de ser filho VIP do Primeiro Comissário, seu Pai,
e profere uma palestra, que será premiada entre as dos jovens
componentes do passeio, todos alunos distintos. Aí terá o baptismo de
Neptuno, na passagem do Equador, onde todos vão à piscina de boa ou má
vontade. Avisado, envergava o seu fatinho de banho, enquanto outros "lavavam" a farpela janota, no mergulho
obrigatório.
Dentro do espírito crítico, que
sempre, o marcou, organiza uma Excursão jerical a Ílhavo, de chapéu de
coco e grandes alforges marcados com $$$, de desagravo a uma Excursão,
determinada superiormente e. com a qual os estudantes não concordavam,
por estar acima das suas posses e que não se realizará.
Durante todo o curso liceal, fará
várias palestras, dentro e fora do Liceu, além de dirigir a "Voz Académica", ser correspondente de
outros jornais, e promover homenagens a Homem Cristo e a Agostinho da
Silva, já como Presidente da Academia.
No sexto ano, o velho Reitor e seu
grande amigo, Dr. José Tavares, hesitará em dar-lhe o prémio Sociedade
dos Antigos Alunos, como melhor aluno de Português, ou outro, cujo
nome não lembra, do melhor carácter. O Corpo Directivo decide
atribuir-lhe o prémio "porque no sétimo ano o outro será dele". Não
foi.
No dia 10 de Junho, com 17 anos, a PIDE invade-lhe a casa às cinco horas da madrugada (ver DIÁRIO). O
prémio já não poderá ser concedido: vai começar a perseguição
política.
A Mãe, desvairada de dor, fica
prostrada, com uma perigosa crise cardíaca, durante todo o tempo da prisão; o Pai,
casualmente em férias, já afectado da doença que o irá cegar aos 55
anos, dá murros nas paredes e nos olhos, de
punhos ensanguentados, enraivecido de impotência perante os "gorilas", que se tinham feito
passar por estudantes e que lhe levavam o filho,
o jovem mimado por toda a família e o seu
grande orgulho.
Para o fazer confessar suspeitas
subversivas, quando apenas recebera, pelo correio, papelada de
propaganda e que a Mãe queimara, com o seu consentimento, fazem-no
ouvir gritos gravados, que lhe dizem ser da Mãe, a ser torturada,
e finalizam o sadismo, pressionando-o a assinar confissões de culpa
"já que a Mãe morrera!"
Nada tem a assinar:
vira-lhes as costas , "louco de dor" (DIÁRlO).
Foi uma semente que a PIDE deixou num
jovem, já intelectualmente revoltado contra a ditadura! Uma "pequena" tortura moral!
O tio, Capitão Quina Domingues, então
Comandante da Polícia de Aveiro, mas, como já se disse, Comandante, não pertencente à PIDE, moveu
influências para que a cunhada Rita, e a sobrinha, fossem
interrogadas em casa, em Ílhavo, provando assim a
versão que contara e a destruição dos panfletos.
Mário Emílio foi libertado, mas nunca
esquecerá a "experiência" e o que sentiu ao chegar a casa e encontrar
a Mãe viva, embora não recuperada da crise cardíaca que a acometera (ver
DIÁRlO).
Enquanto durou a prisão, assiste-se a
uma atitude de grande beleza moral da
parte de alguns professores, que marcaram falta a si próprios, para que o seu perseguido aluno não
perdesse o ano! De olhos postos no relógio da torre, esperavam, subiam
a costeira com todos os vagares, até que passassem os cinco minutos legais e só então
entravam na aula, onde, avisados, os alunos os
esperavam. Noutra prisão, por altura de uma
eleição presidencial, o pide Sachetti
informaria Quina Domingues, colega da Academia Militar,
que o sobrinho Mário, fizesse ou não fizesse
propaganda a favor do candidato da Oposição, iria
passar, de novo, seis meses à cadeia, só, porque, figura maior da Oposição, convinha ao Governo o seu
isolamento. Com efeito, passou os seis meses, sem ser interrogado, isolado.
Matricula-se, em Coimbra, na Faculdade
de Medicina e a seguir no Porto e
finaliza em Lisboa, sempre à procura de melhor ensino.
Nas férias do Natal de 42 ou 43,
improvisa, no Salão Nobre dos Bombeiros de Ílhavo, então sob o comando
do Pai, uma palestra sobre "O Homem e a Máquina". Presentes, entre
outros opositores políticos, alguns dos que tinham
fomentado a devassa ao juvenil grupo esperantista. O então
estudante de Medicina, sem ler, porque nada tinha
escrito, regala a assistência com a sua exposição,
tanto mais bela, quanto mais directa; à saída, todos se
interrogavam: "Que caminho devemos dar ao Homem?". E num desabafo de admiração pelo orador:
"Que grande cabeça!" (Arquivo de Amadeu Gomes).
Casa em Dezembro de 1944 no quarto
ano, em Coimbra, com a antiga colega do Liceu e das lides jornalísticas, Cecília Marques
Maia, já formada em Filologia Românica, a insistente
pedido do Pai desta, gravemente doente no Caramulo,
e que, por ironia do destino, lhe irá sobreviver
longos anos.
Embora namoro antigo, oito anos
passados, era muito pouco habitual, nessa época, um casamento antes da
formatura; vai ser muito difícil obter o consentimento do Pai, então em serviço
de cabotagem na Costa Oriental de África; um pouco
conservador, custou-lhe aceitar um casamento
antecipado, porventura também receoso que o filho
não terminasse o curso, e houvesse aumento
de despesas familiares, que perto da cegueira
total não pudesse suportar. Foi-lhe demonstrado que não
tinha motivos de receio, a futura nora já formada, bem consciente o filho de que os pais só tinham para
lhe deixar a enxada do curso. Mesmo assim, com a
dificuldade de contacto, Mário Emílio vai dando
passos para casar em segredo, o que, felizmente,
não chega a fazer. O consentimento acaba por
chegar.
Em Julho de 1946, nasce, em Lisboa, o
filho Rui.
Milita, totalmente, em todas as
actividades cívicas da Oposição, mas isso subentende-se do arquivo apenso. Nestas folhas apenas
se pretende lembrar factos pouco conhecidos.
Completo o curso,
regressa a Ílhavo, abre consultório na Avenida Manuel da
Maia e faz o serviço militar.
Será o médico dos pobres e, talvez, um
dos raros médicos que, antes da formatura, tinha doentes à espera que
completasse o curso.
Fará sombra e muitas invejas, será
perseguido e chegará a ser ameaçado de morte, dentro do Hospital, onde
dava consulta e dirigia os Serviços de Radiologia, por um Presidente
de Câmara, que lhe monta uma cilada e o provoca, apontando-lhe uma
pistola com capangas no corredor. Apercebendo-se do vácuo do pessoal
de enfermagem, Mário Emílio reage com profunda calma, limitando-se a
um grande "ah! ah! ah!" de total desprezo. Covardemente, o Presidente
Abreu recua.
Está traçado o quadro em que a sua
saúde fica abalada, ainda não refeito do desgaste, à custa de
estimulantes, de querer finalizar o curso antes do nascimento do
filho, a par das suas actividades políticas e de escritor. É
internado, readquire, embora complexado, todas as suas faculdades e
não perde os seus doentes, que nele continuam a confiar totalmente.
Abrevia o nome, como escritor, para
Mário Sacramento, o que vai desagradar ao Pai e causar alguns atritos,
que o tempo dilui.
Com o regresso definitivo do Pai, que
abandona a carreira naval, praticamente cego, deixa a casa dos pais, e
muda o consultório para a R. José Estêvão, n.º 17, onde passa a
residir. É nessa casa que, em Junho de 1948, vai nascer a filha Clara.
Perde a que seria a terceira filha,
com oito meses de gestação, quando da sua terceira prisão, pelos
vexames a que a PIDE sujeitou a esposa. Aproveita a liberdade,
arrancada a ferros da PIDE, para ver a esposa, em perigo de vida, e
visita a mãe, já paralítica, que ignora a sua
prisão, como se se tratasse de uma visita de rotina, mas, ao sair do
quarto, os olhos estão cheios de lágrimas. Regressa à cadeia.
Muda para Aveiro, em 1957, como
consta da Sinopse Biográfica e abre consultório na Avenida Dr. Lourenço
Peixinho, n° 50, 1º Dtº., que mantém até morrer e reside,
sucessivamente, na R. Tenente Resende, n.º 8, 1º, R. Gustavo
Ferreira Pinto Basto, n.º 49,1º Dtº. e, finalmente, na R. Jaime Moniz,
n.º 1.
A Mãe, que adorava – Amor, que com o
seu exagerado pudor nunca lhe manifestou em vida – tem um acidente
vascular em 29 de Junho de 1954 e que se repete em 10 de Março de
1960. Fica em coma profundo, até falecer cinco dias depois. Mário
Emílio, que raras vezes a beijava, passa uma das noites em vigília, de
joelhos, beijando-lhe longamente as mãos e falando-lhe docemente.
Discreta, da porta, a irmã, que mandara descansar, mas não o fizera,
observa, comovida a inusitada cena. Ambos decidem que o funeral será
religioso como ela era. E também esta decisão foi criticada!
Em 1960, consciente que começa a
sentir a surdez hereditária da família paterna, e ansiando por mais tempo livre das actividades
profissionais consegue ser bolseiro do Governo
Francês, com forte oposição do governo fascista, e especializa-se em
gastrenterologia. A luta será muito dura e tuberculiza, tudo
escondendo à família, sabendo que não tinha outra saída. De novo a
perseguição política não lhe permite que trabalhe como especialista
para a então Caixa de Previdência; a sua vida económica será sempre
precária.
O Pai tem um enfarte do miocárdio,
oito anos depois da morte da esposa, em 26 de Janeiro de 1968. É
levado para a Casa de Saúde da Vera Cruz e morre na madrugada
seguinte. Espírito sempre curioso, na véspera, à noite, pede que lhe
expliquem como funcionava a botija de oxigénio! Mário Emílio, de novo,
só beijará longamente o Pai, depois de morto... Singular pudor o deste
homem recalcado.
No funeral, Mário Emílio pergunta aos
primos: "Qual de nós será o primeiro?" Sabia-se gravemente doente.
Seria ele, um ano após, com 49 anos
incompletos.
Na madrugada seguinte à longa e
exaustiva noite de trabalhos e debates para a
formação do Congresso Republicano, que posteriormente lhe foi
dedicado, é acometido de um derrame cerebral, que o mata em 27 de
Março de 1969, após uma semana de internamento nos Cuidados Intensivos
do Hospital de Santo António, no Porto. Na véspera de morrer, é feita
uma tentativa de desvio da sua linha filosófica e religiosa, que a
irmã, casualmente sozinha, impede pelo
respeito de coerência que o moribundo lhe merecia.
Assim se cortou a especulação inevitável, premonizada na "Carta
Testamento".
O telefone do Hospital toca
constantemente, por ele. É o fim. Já não é o pessoal
de enfermagem que atende, mas a família.
É transportado para Aveiro e
sepultado no Cemitério Central de Aveiro, por
decisão da sua mulher, em campa rasa, privativa,
oferecida pelos amigos que, juntamente com a irmã e cunhados, chamarão a si as despesas da doença e
morte. E até nesta será perseguido – seus inimigos
políticos irão atribuir-lhe a escolha da última
morada, que foi indicada apenas por razões práticas de
transporte da esposa, o que deu lugar a nojentas
tentativas para lhe retirarem o nome da toponímia de Ílhavo.
O povo de Ílhavo vai levantar-se e
vencer. O nome de Mário Sacramento irá honrar a
toponímia de Ílhavo, Aveiro, Cova da Piedade,
Setúbal e Loures.
O seu busto será
esculpido em bronze e o rosto perpetuado pelos pintores e na
medalhística:
– Euclides Vaze Vítor
Marques moldam o busto em bronze.
– Armando Andrade, Alba e
Vasco Berardo perpetuam-lhe o rosto na medalhística.
– Jorge Trindade desenha-o; Manuel
Cabanas executa xilogravuras para
postais; de novo Jorge Trindade cobre, num painel
gigantesco com a sua efígie, o Teatro Aveirense, onde
se efectuará o Congresso Republicano.
Sua obra literária, principalmente o
sector crítico, continuará a ser consultada e
apreciada, embora haja a lamentar que o seu
excessivo sentido crítico tenha sempre amordaçado a faceta oculta do romancista, que tantas vezes o levou a
destruir drasticamente obras em fase terminal.
Total ou parcialmente são-lhe
dedicados:
– Eduardo Lourenço
(1968): "Sentido e forma da poesia neo-realista";
– Idalécio Cação (1968): "Raízes na areia";
– Óscar Lopes (1969): "Ler e depois";
– Manuel Alegre(1970): "O canto e as armas";
– José Ferreira Monte(1970): "Assim a frio";
– José Carlos de Vasconcelos: "Tempo
de Elegia";
– Nelson de Matos (1971): "A Leitura e
a crítica";
– Mário Braga (1971): "Os olhos e as vozes";
– Vasco Branco (1973): "Roteiro
impopular de uma cidade";
– Antunes da Silva (1973): "Rio Degebe".
Entre outros, estudam-no: Taborda de Vasconcelos, José Régio, Alexandre
Cabral, Antunes da Silva, Eduardo Prado Coelho, Urbano
Tavares Rodrigues, Joaquim Barradas de
Carvalho, Óscar Lopes, Joel Serrão.
Citam-no, também entre outros,
Fernando Guimarães, Maria da Glória Padrão,
Eduardo
Lourenço, João Medina, Agostinho da
Silva.
Referem a sua obra
vários Dicionários de Literatura e Enciclopédias.
Peca-se por omissão.
Mário Sacramento era altamente
respeitado nos meios religiosos: provou-se no
diálogo com os católicos (ver o seu livro "Frátria ") e no seu próprio funeral. O Bispo de Aveiro,
ausente da cidade, envia uma comovida e gentil
carta de muito pesar e membros da Igreja Católica
deslocaram-se à sua residência, a cumprimentar a família em luto e
acompanharam o corpo até onde lhes era permitido fazê-lo num funeral civil
– um dos
maiores jamais efectuados em Aveiro.
O III Congresso Republicano terá a sua figura, projectada em cartazes
gigantes, como sombra tutelar.
Do exercício pleno da sua cidadania,
da sua verticalidade como Homem e da sua
categoria como crítico e escritor, dirá o arquivo que
se apensa. Falará quem mais sabe; essas serão as
melhores palavras, escritas à sua medida.
Aqui vão ficar só
alguns dados, porventura menos conhecidos, e mais íntimos; uma
pequena contribuição para melhor conhecimento
do Homem que levou até à exaustão física, com
rara coragem, sabendo-se perto da morte, uma lição
de amor ao próximo, e à sua luta pelos Direitos
Humanos.
Do Homem,
aparentemente frio, que, por esse amor, prematuramente perdeu a vida.
SINOPSE BIOGRÁFICA DE MÁRIO EMÍLIO
1920 - Nasce a 7 de Julho, em Ílhavo
(Largo do Oitão)
1931 - Com a classificação de
"Distinto", faz exame de instrução primária e matricula-se no Liceu de
José Estêvão.
1935 - Dirige, de 18 de Março a 11 de
Junho, "A Voz Académica" ,jornal dos alunos do Liceu. Tem 15 anos e,
num cruzeiro de férias a Moçambique, profere no navio, onde o pai era
Comissário de bordo, uma palestra.
1937 - Volta a dirigir "A Voz
Académica" (Janeiro de 1937 a Janeiro de 1938). O Conselho Pedagógico e
Disciplinar do Liceu de Aveiro confere-lhe o prémio "Sociedade dos
Antigos Alunos", constituído por certa importância em dinheiro que,
espontaneamente, oferece a um condiscípulo para pagamento de propinas.
Entretanto, o mesmo Conselho comunica ao respectivo encarregado de
educação que «mais uma vez se confirmaram os créditos deste aluno,
aliás brilhantemente revelados na redacção do jornal dos alunos deste
Liceu – "A Voz Académica", do qual foi a verdadeira alma no ano
escolar que findou em Julho último.» Pouco depois, o jornal seria
suspenso pelos poderes fascistas.
1938 - Aluno do sétimo ano, no
dia 10 de Junho sofre a primeira prisão. Anteriormente, a 7 de Abril,
na qualidade de presidente da Academia, entregara a Homem Cristo uma
mensagem subscrita por cerca de três centenas de alunos do
Liceu e usa da palavra no decurso da homenagem ao notável jornalista aveirense.
1939 - Matricula-se em Medicina na
Universidade de Coimbra, que, por não lhe agradar, frequentaria apenas
um ano e onde tiraria os preparatórios, cursando seguidamente no Porto
e, depois, durante mais dois anos, a de Lisboa, a fim de nesta ter
Pulido Valente como mestre.
1944 - Consorcia-se em 27 de Dezembro
com a Dr.ª Cecília Marques da Maia Sacramento, sua antiga colega no
Liceu e redactora da "Voz Académica".
1945 - Ganha o "Prémio Oliveira
Martins" nos Jogos Florais da Queima das Fitas de Coimbra, sendo então já aluno da Universidade
de Lisboa. Faz parte da Comissão Central do MUD Juvenil.
1946 - Nasce, em 7 de Julho, seu filho
Rui. No exame da cadeira de História da Medicina apresenta o trabalho "A sugestão através da História da Medicina - Trabalho apresentado ao
exame da cadeira de História da Medicina". Completa o curso médico,
em Lisboa, e inicia o cumprimento do serviço militar. Fixa-se na terra
natal, onde passa a exercer clínica.
1948 - Nasce, a 23 de Junho, sua filha
Clara. 1953 - Sofre a segunda prisão, de um ano e meio, e escreve em
Caxias o volume "Fernando Pessoa Poeta da Hora Absurda".
1955 - É preso pela terceira vez. A
certa altura, mercê de firmes protestos, o encarceramento é
interrompido, dado a esposa, por virtude das buscas e detenção que
sofreu, se encontrar em perigo de vida. Como consequência, nasce
morto, com oito meses, o seu terceiro e último filho.
1957 - Transfere a residência para A
veiro, onde abre consultório. Promove o I Congresso Republicano, do
qual seria secretário-geral
1960 - Frequenta em Paris, como
bolseiro do governo francês, o Hospital de St. Antoine, a fim de se
especializar em gastrenterologia
1962 - Mais uma prisão, a quarta, em
Caxias. Inicia a segunda Colectânea de "Ensaios de Domingo",
postumamente publicada (1974)
1965 - Com outros intelectuais,
e em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores, participa em
Itália, no Congresso dos Escritores Europeus.
1967 - Na Pousada de S.
Jerónimo, Caramulo, redige, em 7 de Abril, o seu testamento político.
1968 - Faz, em Setembro, uma
curta viagem de recreio ao Funchal, contactando com jovens escritores
madeirenses.
1969 - Última alocução, no Teatro Aveirense, quando das comemorações do 31 de Janeiro. Preside, em
Fevereiro, ao VI Encontro da Imprensa Cultural, realizado em
Guimarães, e faz parte do júri para atribuição do "Prémio Almeida
Garrett", no Porto. Publica o seu derradeiro artigo, a que dá o título
de , "Último". Fomenta e impulsiona os trabalhos para a realização
do II Congresso Republicano. Morre a 27 de Março, vitimado por um
derrame cerebral. No dia seguinte, é sepultado em Aveiro, e, por sua
expressa vontade, em campa rasa.
Maria Ivone de Morais Sacramento
BIBLIOGRAFIA DE MÁRIO
SACRAMENTO
A Criança nas Relações com o Adulto
(1943)
Retrato de Eça de Queirós (1944)
Eça de Queirós - Uma estética da
Ironia (1945) Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda (1959) Lírica e
Dialéctica em Cesário Verde
Ensaios de Domingo - I (1959)
Teatro Anatómico (1959)
Fernando Namora (1967)
Há uma estética Neo-realista? (1968)
31 de Janeiro (1 a e 2a edição, 1969)
Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda
(2.ª ed., 1970)
Frátria, Diálogo com os Católicos (ou
talvez não)1970
O Ápis (conto)
Carta-Testamento (1973)
Ensaios de Domingo - II (1974)
LIVROS
QUE PREFACIOU
Cartas de Estalinegrado (1960)
Horas Vivas, de Natália Correia (1968)
O Homem na Cidade, de vários autores
(1968)
Praça da Canção, de Manuel Alegre (2ª ed., 1969)
VOLUMES COM
COLABORAÇÃO:
Livro do Centenário de Eça de Queirós
(1945)
Perspectiva Literária Portuguesa do século XIX ( 1948)
Livro do Cinquentenário da Vida
Literária de Ferreira de Castro (1966)
Vietnam - Os Escritores Tomam Posição
(1968)
Natal (1968)
A Criança e o Livro
A Revolta de Ontem nas Palavras de
Hoje (1969)
21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade
Charrua em Campo de Pedras (1975)
VOLUMES COM CAPÍTULOS OU ESTUDOS SOBRE A SUA OBRA
Regresso à Inteligência, Taborda de
Vasconcelos ( 1962)
Poemas de Deus e do Diabo, José Régio
(1969)
Memórias de um Resistente, Alexandre Cabral
(1970)
Uma Pinga de Chuva, Antunes da Silva
(1972)
O Reino Flutuante, Eduardo Prado
Coelho (1972)
Deserto com Vozes, Urbano Tavares
Rodrigues
O Obscurantismo Salazarista, Joaquim
Barradas de Carvalho (1974).
Artigos de ou acerca de Mário Sacramento inseridos em «Aveiro e
Cultura»
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31 de Janeiro de 1969
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Acerca de M. S. - por Costa e Melo
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A Geração
de 40
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A última Aventura de Júlio Verne
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Ave, Aveiro
22-Fev.-1969
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Carta a Fernando Namora
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Carta-Testamento de 7-4-1967
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Do homem que perdeu
a revolução...
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Mário Sacramento um autor neo-realista português
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O Ápis
(Conto)
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O testemunho de Dante
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Páginas dedicadas a M. Sacramento
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Perspectiva histórica acerca do 16 de Maio de 1828