Maria Ivone de Morais Sacramento, Mário Emílio de Morais Sacramento, In: Aveirenses Ilustres. Retratos à minuta, Edição do X Encontro de Professores de História da Zona Centro, Aveiro, 1992, pp. 47-54.


Mário Emílio de Morais Sacramento
(1920-1969)

Filho primogénito de: Rita de Morais Sarmento e Sacramento e de Artur Rasoilo Sacramento;

Neto Materno de: Evangelista de Morais Sarmento e de Laura Augusta dos Santos de Morais Sarmento;

Neto Paterno de: Bernardo Francisco Rasoilo e de Maria Emília Rodrigues de Azevedo Sacramento;

Irmão de: Maria Ivone (falecida com 10 meses) e de Maria Ivone de Morais Sacramento;

Casado com Cecília Marques Maia.

Pai de: Rui da Maia Sacramento e Clara da Maia Sacramento;

Avô de: Vasco da Maia Sacramento Ferreira Borges;

Sobrinho Bisneto de: Clemente de Morais Sarmento.

Natural de Ílhavo, nasceu em 7 de Julho de 1920, no Largo do Oitão, n.º 17. Nascimento muito difícil e prolongado, cerca de três dias, apesar de assistido pelo velho Dr. Pereira da Cruz, de A veiro, foi o primeiro traumatismo que sofreu, pois a sua volumosa cabeça exigiu ferros e torturas para ele e sua Mãe. Nasceu todo pisado. Serão Padrinhos de baptismo, a irmã da Mãe, Augusta de Morais Sarmento de Quinta Domingues e o irmão mais velho do Pai, José Rasoilo Sacramento, o PIM.

Recebe o nome de Mário Emílio, em homenagem à avó paterna, Maria Emília, que vegetava após a morte, muito jovem, da filha Sofia e que rejuvenesce com o nascimento do neto. Por caprichos do Registo Civil, é-lhe cortado o apelido Sarmento, pela ressonância com Sacramento, o que causa grande desgosto a sua Mãe. Mais tarde, já Pai, apesar do profundo amor que o liga a Mãe (ver "Diário", páginas 18 a 20), dará aos filhos nomes curtos e um só apelido, dentro da sua formação cultural de síntese. Crê, certamente, que importará apenas transmitir aos seus descendentes – e irá fazê-lo – o exemplo de coragem cívica que recebera dos antepassados de sua Mãe.

Por imperativos profissionais do Pai, a família muda para Aveiro, para um prédio já demolido, na hoje R. Castro Matoso, freguesia da Glória. Aí morre a bebé Maria Ivone e nasce a última irmã, também Maria Ivone, que o Pai, igualmente, regista em Ílhavo.

Pelo mesmo motivo, regressam a Ílhavo, indo morar para a Rua Camões, hoje com o n° 111­113 e só após a morte dos Avós Paternos passarão a residir na Rua Serpa Pinto, n° 2, casa que faz esquina para o Largo do Oitão e o Beco da Filarmónica, onde o Pai, numa pausa da vida marítima, abrira já um escritório comercial.

Essa será a casa da sua adolescência e que os amigos e colegas irão recordar, a casa onde crescerá rodeado dos livros da muito razoável biblioteca do Pai.

Faz o exame de Instrução Primária, com distinção, com o Professor Matias, estuda piano, sem vocação, e começa cedo a trocar as noites pelos dias, na fome devoradora da leitura. Como curiosidade, enquanto a irmã comanda o "batalhão", dos vizinhos, em brincadeiras sem fim e corre as Gafanhas na bicicleta do irmão, Mário Emílio vem direitinho para casa, "sem saber correr", como se queixava o Pai, ansioso por retomar o namoro com os livros. Perdida a noção das horas, é de madrugada que apaga a luz, já muito perto da hora de se levantar para a carreira das 6:30 da madrugada, que o levará ao Liceu.

Estremunhado, implora várias vezes à irmã, que o vai chamar, "só mais cinco minutos" e, perdida a camioneta, vezes sem conta, lá vai aparecer no Liceu, estafado, de bicicleta... Começa, cedo, esta má distribuição do sono e da leitura.

Vai fazendo traquinices, como é próprio da idade: entala a cabeça ria grade da varanda da avó Laura, em Aveiro , que terá de ser serrada e faz pior, transforma em capacete um vaso de noite, onde também a grande cabeça fica entalada, só liberta com a ajuda de um latoeiro...

Obedece ao Pai, descendo dum 2° andar dentro da manga de lona, usada nos exercícios dos bombeiros, embora não muito afoito, e acompanha-o, aí todo contente, num dos carros dos bombeiros de Ílhavo, sempre que pode, nas chamadas de socorro.

Gosta de nadar, de velejar e de fazer outras travessuras desaparece um dia, juntamente com o hoje Almirante Mário Teles, seu amigo de infância, sem aviso, no barco da "Companha", para saber como era a pesca no alto mar... Foi um alarme em casa, enquanto não apareceram, como se calculará.

Mostrava já a sua verticalidade: a irmã faz uma malandrice e é "condenada", pela Mãe, a ficar, durante algumas horas, amarrada com uma linha a uma perna de uma mesa. Cumpre o que para ela era medonha privação da sua liberdade. Terá companhia: Mário Emílio também se prende, porque entende que a incentivou na proeza...

Mais tarde, já adolescente, por outro "desvio" não memorizado, levou uma pequena bofetada da Mãe – coisa tão rara na Mãe e no filho, que acabou na tragicomédia de ser o filho a consolar a Mãe, chorosa e desgostosa, cena que causou, posteriormente, comovido riso, na família.

Nos primeiros anos do Liceu, começa a fazer um pequeno jornal, redigido à mão, que vende à família, já para comprar livros, num dueto desafinado com a irmã, ela a servir de fadista (!) e ele a tocar a bandurra (instrumento de corda) do Ti' Néu. Daí o convite do Reitor, conhecedor do jornaleco, para dirigir, tão jovem, o Jornal do Liceu.

Dirigirá, posteriormente, a "Voz Académica" em 1935, com 15 anos e em 1937, até o jornal ser suspenso pelo fascismo.

Aprende Esperanto, (escreve um curso não editado), e ensina-o, bem como Francês, Inglês e Literatura, a jovens ávidos de cultura, de menores bases económicas, para o que aluga uma pequena sala de bancos corridos, onde instala boa parte da biblioteca do Pai (perto de mil volumes), mais tarde bastante aumentada, integrada no Illiabum Club.

Aí terá a primeira devassa das autoridades, representada pelo Presidente da Câmara, que inspecciona a sede do grupo esperantista Rondeto Carta Bourlet, acusado de "actividades subversivas"! A proprietária da casa, a viúva do Dr. Malaquias, é pressionada a despejar os rapazes e vale-lhes um sapateiro protestante, o Sr. Pinho, que lhes aluga duas salas, ao Alto Bandeira. Estes elementos foram-ma dados, entre outros muito valiosos, por um desses rapazes, o encarregado da biblioteca, o mais entusiasta e o de menores estudos, mas o mais ávido dessa cultura, para que "se não perdessem".

Transcrevo a carta da oferta do seu arquivo: "À manière de ...

                                                                               Proémio

Nunca supus que os meus recortes de há tantos anos pudessem vir a ter a missão histórica que agora lhes foi imputada – recortes e cartas de Tua autoria.

Assim, é sem apego que os envio à tua irmã, para que ela lhes dê o destino chave de estudo da tua personalidade. Quanto a mim é a maneira única de ser útil a quem tanto me deu: uma consciência política.

Contribua, pois, esta modestíssima acção para o erguer do monumento de Homem íntegro, que sempre foste, caro Mário Sacramento."
Lisboa, 11 de Maio de 1969

Amadeu Gomes

Conta, noutra carta: "Um dia... pedi-lhe que me dissesse os jornais em que ia colaborando para assim poder compilar a sua obra. E a sua resposta, num bilhete postal que não tenho, infelizmente, foi um exemplo breve daquilo que, mais tarde, Ele havia de esculpir na nova imagem do Eça – a ironia – dizendo-me que mais valia coleccionar rolhas de cortiça!" Amadeu Gomes coleccionou mesmo as "rolhas de cortiça" e ao seu arquivo se deve não se ter perdido muito do que Mário Sacramento escreveu, debaixo de vários pseudónimos, como Berta de Sousa, Maria do Monte e Miguel dos Santos, na "Independência de Águeda", "Jornal do Minho", etc., etc. Arquivo que já serviu, entre outros, para a obra já concluída sobre Mário Sacramento, que devia estar já publicada, se a eterna burocracia a não travasse.

Traduz para Esperanto vários cadernos da colecção "À volta do Mundo" do Dr. Agostinho da Silva, como, por exemplo, "La Arenoj", idealiza Pousadas da Juventude, multiplica-se em palestras de divulgação.

Faz, no quinto ano do Liceu, um cruzeiro a África, a bordo do paquete "Moçambique", gozando do privilégio gratuito de ser filho VIP do Primeiro Comissário, seu Pai, e profere uma palestra, que será premiada entre as dos jovens componentes do passeio, todos alunos distintos. Aí terá o baptismo de Neptuno, na passagem do Equador, onde todos vão à piscina de boa ou má vontade. Avisado, envergava o seu fatinho de banho, enquanto outros "lavavam" a farpela janota, no mergulho obrigatório.

Dentro do espírito crítico, que sempre, o marcou, organiza uma Excursão jerical a Ílhavo, de chapéu de coco e grandes alforges marcados com $$$, de desagravo a uma Excursão, determinada superiormente e. com a qual os estudantes não concordavam, por estar acima das suas posses e que não se realizará.

Durante todo o curso liceal, fará várias palestras, dentro e fora do Liceu, além de dirigir a "Voz Académica", ser correspondente de outros jornais, e promover homenagens a Homem Cristo e a Agostinho da Silva, já como Presidente da Academia.

No sexto ano, o velho Reitor e seu grande amigo, Dr. José Tavares, hesitará em dar-lhe o prémio Sociedade dos Antigos Alunos, como melhor aluno de Português, ou outro, cujo nome não lembra, do melhor carácter. O Corpo Directivo decide atribuir-lhe o prémio "porque no sétimo ano o outro será dele". Não foi.

No dia 10 de Junho, com 17 anos, a PIDE invade-lhe a casa às cinco horas da madrugada (ver DIÁRIO). O prémio já não poderá ser concedido: vai começar a perseguição política.

A Mãe, desvairada de dor, fica prostrada, com uma perigosa crise cardíaca, durante todo o tempo da prisão; o Pai, casualmente em férias, já afectado da doença que o irá cegar aos 55 anos, dá murros nas paredes e nos olhos, de punhos ensanguentados, enraivecido de impotência perante os "gorilas", que se tinham feito passar por estudantes e que lhe levavam o filho, o jovem mimado por toda a família e o seu grande orgulho.

Para o fazer confessar suspeitas subversivas, quando apenas recebera, pelo correio, papelada de propaganda e que a Mãe queimara, com o seu consentimento, fazem-no ouvir gritos gravados, que lhe dizem ser da Mãe, a ser torturada, e finalizam o sadismo, pressionando-o a assinar confissões de culpa "já que a Mãe morrera!"

Nada tem a assinar: vira-lhes as costas , "louco de dor" (DIÁRlO).

Foi uma semente que a PIDE deixou num jovem, já intelectualmente revoltado contra a ditadura! Uma "pequena" tortura moral! O tio, Capitão Quina Domingues, então Comandante da Polícia de Aveiro, mas, como já se disse, Comandante, não pertencente à PIDE, moveu influências para que a cunhada Rita, e a sobrinha, fossem interrogadas em casa, em Ílhavo, provando assim a versão que contara e a destruição dos panfletos.

Mário Emílio foi libertado, mas nunca esquecerá a "experiência" e o que sentiu ao chegar a casa e encontrar a Mãe viva, embora não recuperada da crise cardíaca que a acometera (ver DIÁRlO).

Enquanto durou a prisão, assiste-se a uma atitude de grande beleza moral da parte de alguns professores, que marcaram falta a si próprios, para que o seu perseguido aluno não perdesse o ano! De olhos postos no relógio da torre, esperavam, subiam a costeira com todos os vagares, até que passassem os cinco minutos legais e só então entravam na aula, onde, avisados, os alunos os esperavam. Noutra prisão, por altura de uma eleição presidencial, o pide Sachetti informaria Quina Domingues, colega da Academia Militar, que o sobrinho Mário, fizesse ou não fizesse propaganda a favor do candidato da Oposição, iria passar, de novo, seis meses à cadeia, só, porque, figura maior da Oposição, convinha ao Governo o seu isolamento. Com efeito, passou os seis meses, sem ser interrogado, isolado.

Matricula-se, em Coimbra, na Faculdade de Medicina e a seguir no Porto e finaliza em Lisboa, sempre à procura de melhor ensino.

Nas férias do Natal de 42 ou 43, improvisa, no Salão Nobre dos Bombeiros de Ílhavo, então sob o comando do Pai, uma palestra sobre "O Homem e a Máquina". Presentes, entre outros opositores políticos, alguns dos que tinham fomentado a devassa ao juvenil grupo esperantista. O então estudante de Medicina, sem ler, porque nada tinha escrito, regala a assistência com a sua exposição, tanto mais bela, quanto mais directa; à saída, todos se interrogavam: "Que caminho devemos dar ao Homem?". E num desabafo de admiração pelo orador: "Que grande cabeça!" (Arquivo de Amadeu Gomes).

Casa em Dezembro de 1944 no quarto ano, em Coimbra, com a antiga colega do Liceu e das lides jornalísticas, Cecília Marques Maia, já formada em Filologia Românica, a insistente pedido do Pai desta, gravemente doente no Caramulo, e que, por ironia do destino, lhe irá sobreviver longos anos.

Embora namoro antigo, oito anos passados, era muito pouco habitual, nessa época, um casamento antes da formatura; vai ser muito difícil obter o consentimento do Pai, então em serviço de cabotagem na Costa Oriental de África; um pouco conservador, custou-lhe aceitar um casamento antecipado, porventura também receoso que o filho não terminasse o curso, e houvesse aumento de despesas familiares, que perto da cegueira total não pudesse suportar. Foi-lhe demonstrado que não tinha motivos de receio, a futura nora já formada, bem consciente o filho de que os pais só tinham para lhe deixar a enxada do curso. Mesmo assim, com a dificuldade de contacto, Mário Emílio vai dando passos para casar em segredo, o que, felizmente, não chega a fazer. O consentimento acaba por chegar.

Em Julho de 1946, nasce, em Lisboa, o filho Rui.

Milita, totalmente, em todas as actividades cívicas da Oposição, mas isso subentende-se do arquivo apenso. Nestas folhas apenas se pretende lembrar factos pouco conhecidos.

Completo o curso, regressa a Ílhavo, abre consultório na Avenida Manuel da Maia e faz o serviço militar.

Será o médico dos pobres e, talvez, um dos raros médicos que, antes da formatura, tinha doentes à espera que completasse o curso.

Fará sombra e muitas invejas, será perseguido e chegará a ser ameaçado de morte, dentro do Hospital, onde dava consulta e dirigia os Serviços de Radiologia, por um Presidente de Câmara, que lhe monta uma cilada e o provoca, apontando-lhe uma pistola com capangas no corredor. Apercebendo-se do vácuo do pessoal de enfermagem, Mário Emílio reage com profunda calma, limitando-se a um grande "ah! ah! ah!" de total desprezo. Covardemente, o Presidente Abreu recua.

Está traçado o quadro em que a sua saúde fica abalada, ainda não refeito do desgaste, à custa de estimulantes, de querer finalizar o curso antes do nascimento do filho, a par das suas actividades políticas e de escritor. É internado, readquire, embora complexado, todas as suas faculdades e não perde os seus doentes, que nele continuam a confiar totalmente.

Abrevia o nome, como escritor, para Mário Sacramento, o que vai desagradar ao Pai e causar alguns atritos, que o tempo dilui.

Com o regresso definitivo do Pai, que abandona a carreira naval, praticamente cego, deixa a casa dos pais, e muda o consultório para a R. José Estêvão, n.º 17, onde passa a residir. É nessa casa que, em Junho de 1948, vai nascer a filha Clara.

Perde a que seria a terceira filha, com oito meses de gestação, quando da sua terceira prisão, pelos vexames a que a PIDE sujeitou a esposa. Aproveita a liberdade, arrancada a ferros da PIDE, para ver a esposa, em perigo de vida, e visita a mãe, já paralítica, que ignora a sua prisão, como se se tratasse de uma visita de rotina, mas, ao sair do quarto, os olhos estão cheios de lágrimas. Regressa à cadeia.

Muda para Aveiro, em 1957, como consta da Sinopse Biográfica e abre consultório na Avenida Dr. Lourenço Peixinho, n° 50, 1º Dtº., que mantém até morrer e reside, sucessivamente, na R. Tenente Resende, n.º 8, 1º, R. Gustavo Ferreira Pinto Basto, n.º 49,1º Dtº. e, finalmente, na R. Jaime Moniz, n.º 1.

A Mãe, que adorava – Amor, que com o seu exagerado pudor nunca lhe manifestou em vida – tem um acidente vascular em 29 de Junho de 1954 e que se repete em 10 de Março de 1960. Fica em coma profundo, até falecer cinco dias depois. Mário Emílio, que raras vezes a beijava, passa uma das noites em vigília, de joelhos, beijando-lhe longamente as mãos e falando-lhe docemente. Discreta, da porta, a irmã, que mandara descansar, mas não o fizera, observa, comovida a inusitada cena. Ambos decidem que o funeral será religioso como ela era. E também esta decisão foi criticada!

Em 1960, consciente que começa a sentir a surdez hereditária da família paterna, e ansiando por mais tempo livre das actividades profissionais consegue ser bolseiro do Governo Francês, com forte oposição do governo fascista, e especializa-se em gastrenterologia. A luta será muito dura e tuberculiza, tudo escondendo à família, sabendo que não tinha outra saída. De novo a perseguição política não lhe permite que trabalhe como especialista para a então Caixa de Previdência; a sua vida económica será sempre precária.

O Pai tem um enfarte do miocárdio, oito anos depois da morte da esposa, em 26 de Janeiro de 1968. É levado para a Casa de Saúde da Vera Cruz e morre na madrugada seguinte. Espírito sempre curioso, na véspera, à noite, pede que lhe expliquem como funcionava a botija de oxigénio! Mário Emílio, de novo, só beijará longamente o Pai, depois de morto... Singular pudor o deste homem recalcado.

No funeral, Mário Emílio pergunta aos primos: "Qual de nós será o primeiro?" Sabia-se gravemente doente.

Seria ele, um ano após, com 49 anos incompletos.

Na madrugada seguinte à longa e exaustiva noite de trabalhos e debates para a formação do Congresso Republicano, que posteriormente lhe foi dedicado, é acometido de um derrame cerebral, que o mata em 27 de Março de 1969, após uma semana de internamento nos Cuidados Intensivos do Hospital de Santo António, no Porto. Na véspera de morrer, é feita uma tentativa de desvio da sua linha filosófica e religiosa, que a irmã,  casualmente sozinha, impede pelo respeito de coerência que o moribundo lhe merecia. Assim se cortou a especulação inevitável, premonizada na "Carta Testamento".

O telefone do Hospital toca constantemente, por ele. É o fim. Já não é o pessoal de enfermagem que atende, mas a família.

É transportado para Aveiro e sepultado no Cemitério Central de Aveiro, por decisão da sua mulher, em campa rasa, privativa, oferecida pelos amigos que, juntamente com a irmã e cunhados, chamarão a si as despesas da doença e morte. E até nesta será perseguido – seus inimigos políticos irão atribuir-lhe a escolha da última morada, que foi indicada apenas por razões práticas de transporte da esposa, o que deu lugar a nojentas tentativas para lhe retirarem o nome da toponímia de Ílhavo.

O povo de Ílhavo vai levantar-se e vencer. O nome de Mário Sacramento irá honrar a toponímia de Ílhavo, Aveiro, Cova da Piedade, Setúbal e Loures.

O seu busto será esculpido em bronze e o rosto perpetuado pelos pintores e na medalhística:

– Euclides Vaze Vítor Marques moldam o busto em bronze.

– Armando Andrade, Alba e Vasco Berardo perpetuam-lhe o rosto na medalhística.

– Jorge Trindade desenha-o; Manuel Cabanas executa xilogravuras para postais; de novo Jorge Trindade cobre, num painel gigantesco com a sua efígie, o Teatro Aveirense, onde se efectuará o Congresso Republicano.

Sua obra literária, principalmente o sector crítico, continuará a ser consultada e apreciada, embora haja a lamentar que o seu excessivo sentido crítico tenha sempre amordaçado a faceta oculta do romancista, que tantas vezes o levou a destruir drasticamente obras em fase terminal.

Total ou parcialmente são-lhe dedicados:

– Eduardo Lourenço (1968): "Sentido e forma da poesia neo-realista";
– Idalécio Cação (1968): "Raízes na areia";
– Óscar Lopes (1969): "Ler e depois";
– Manuel Alegre(1970): "O canto e as armas";
– José Ferreira Monte(1970): "Assim a frio";
– José Carlos de Vasconcelos: "Tempo de Elegia";
– Nelson de Matos (1971): "A Leitura e a crítica";
– Mário Braga (1971): "Os olhos e as vozes";
– Vasco Branco (1973): "Roteiro impopular de uma cidade";
– Antunes da Silva (1973): "Rio Degebe".

Entre outros, estudam-no: Taborda de Vasconcelos, José Régio, Alexandre Cabral, Antunes da Silva, Eduardo Prado Coelho, Urbano Tavares Rodrigues, Joaquim Barradas de Carvalho, Óscar Lopes, Joel Serrão.

Citam-no, também entre outros, Fernando Guimarães, Maria da Glória Padrão, Eduardo

Lourenço, João Medina, Agostinho da Silva.

Referem a sua obra vários Dicionários de Literatura e Enciclopédias.

Peca-se por omissão.

Mário Sacramento era altamente respeitado nos meios religiosos: provou-se no diálogo com os católicos (ver o seu livro "Frátria ") e no seu próprio funeral. O Bispo de Aveiro, ausente da cidade, envia uma comovida e gentil carta de muito pesar e membros da Igreja Católica deslocaram-se à sua residência, a cumprimentar a família em luto e acompanharam o corpo até onde lhes era permitido fazê-lo num funeral civil – um dos maiores jamais efectuados em Aveiro.

O III Congresso Republicano terá a sua figura, projectada em cartazes gigantes, como sombra tutelar.

Do exercício pleno da sua cidadania, da sua verticalidade como Homem e da sua categoria como crítico e escritor, dirá o arquivo que se apensa. Falará quem mais sabe; essas serão as melhores palavras, escritas à sua medida.

Aqui vão ficar só alguns dados, porventura menos conhecidos, e mais íntimos; uma pequena contribuição para melhor conhecimento do Homem que levou até à exaustão física, com rara coragem, sabendo-se perto da morte, uma lição de amor ao próximo, e à sua luta pelos Direitos Humanos.

Do Homem, aparentemente frio, que, por esse amor, prematuramente perdeu a vida.


 

SINOPSE BIOGRÁFICA DE MÁRIO EMÍLIO

1920 - Nasce a 7 de Julho, em Ílhavo (Largo do Oitão)

1931 - Com a classificação de "Distinto", faz exame de instrução primária e matricula-se no Liceu de José Estêvão.

1935 - Dirige, de 18 de Março a 11 de Junho, "A Voz Académica" ,jornal dos alunos do Liceu. Tem 15 anos e, num cruzeiro de férias a Moçambique, profere no navio, onde o pai era Comissário de bordo, uma palestra.

1937 - Volta a dirigir "A Voz Académica" (Janeiro de 1937 a Janeiro de 1938). O Conselho Pedagógico e Disciplinar do Liceu de Aveiro confere-lhe o prémio "Sociedade dos Antigos Alunos", constituído por certa importância em dinheiro que, espontaneamente, oferece a um condiscípulo para pagamento de propinas. Entretanto, o mesmo Conselho comunica ao respectivo encarregado de educação que «mais uma vez se confirmaram os créditos deste aluno, aliás brilhantemente revelados na redacção do jornal dos alunos deste Liceu – "A Voz Académica", do qual foi a verdadeira alma no ano escolar que findou em Julho último.» Pouco depois, o jornal seria suspenso pelos poderes fascistas.

1938 - Aluno do sétimo ano, no dia 10 de Junho sofre a primeira prisão. Anteriormente, a 7 de Abril, na qualidade de presidente da Academia, entregara a Homem Cristo uma mensagem subscrita por cerca de três centenas de alunos do Liceu e usa da palavra no decurso da homenagem ao notável jornalista aveirense.

1939 - Matricula-se em Medicina na Universidade de Coimbra, que, por não lhe agradar, frequentaria apenas um ano e onde tiraria os preparatórios, cursando seguidamente no Porto e, depois, durante mais dois anos, a de Lisboa, a fim de nesta ter Pulido Valente como mestre.

1944 - Consorcia-se em 27 de Dezembro com a Dr.ª Cecília Marques da Maia Sacramento, sua antiga colega no Liceu e redactora da "Voz Académica".

1945 - Ganha o "Prémio Oliveira Martins" nos Jogos Florais da Queima das Fitas de Coimbra, sendo então já aluno da Universidade de Lisboa. Faz parte da Comissão Central do MUD Juvenil.

1946 - Nasce, em 7 de Julho, seu filho Rui. No exame da cadeira de História da Medicina apresenta o trabalho "A sugestão através da História da Medicina - Trabalho apresentado ao exame da cadeira de História da Medicina". Completa o curso médico, em Lisboa, e inicia o cumprimento do serviço militar. Fixa-se na terra natal, onde passa a exercer clínica.

1948 - Nasce, a 23 de Junho, sua filha Clara. 1953 - Sofre a segunda prisão, de um ano e meio, e escreve em Caxias o volume "Fernando Pessoa ­ Poeta da Hora Absurda".

1955 - É preso pela terceira vez. A certa altura, mercê de firmes protestos, o encarceramento é interrompido, dado a esposa, por virtude das buscas e detenção que sofreu, se encontrar em perigo de vida. Como consequência, nasce morto, com oito meses, o seu terceiro e último filho.

1957 - Transfere a residência para A veiro, onde abre consultório. Promove o I Congresso Republicano, do qual seria secretário-geral

1960 - Frequenta em Paris, como bolseiro do governo francês, o Hospital de St. Antoine, a fim de se especializar em gastrenterologia

1962 - Mais uma prisão, a quarta, em Caxias. Inicia a segunda Colectânea de "Ensaios de Domingo", postumamente publicada (1974)

1965 - Com outros intelectuais, e em representação da Sociedade Portuguesa de Escritores, participa em Itália, no Congresso dos Escritores Europeus.

1967 - Na Pousada de S. Jerónimo, Caramulo, redige, em 7 de Abril, o seu testamento político.

1968 - Faz, em Setembro, uma curta viagem de recreio ao Funchal, contactando com jovens escritores madeirenses.

1969 - Última alocução, no Teatro Aveirense, quando das comemorações do 31 de Janeiro. Preside, em Fevereiro, ao VI Encontro da Imprensa Cultural, realizado em Guimarães, e faz parte do júri para atribuição do "Prémio Almeida Garrett", no Porto. Publica o seu derradeiro artigo, a que dá o título de , "Último". Fomenta e impulsiona os trabalhos para a realização do II Congresso Republicano. Morre a 27 de Março, vitimado por um derrame cerebral. No dia seguinte, é sepultado em Aveiro, e, por sua expressa vontade, em campa rasa.

Maria Ivone de Morais Sacramento

 

BIBLIOGRAFIA DE MÁRIO SACRAMENTO

A Criança nas Relações com o Adulto (1943)

Retrato de Eça de Queirós (1944)

Eça de Queirós - Uma estética da Ironia (1945) Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda (1959) Lírica e Dialéctica em Cesário Verde

Ensaios de Domingo - I (1959)

Teatro Anatómico (1959)

Fernando Namora (1967)

Há uma estética Neo-realista? (1968)

31 de Janeiro (1 a e 2a edição, 1969)

Fernando Pessoa, Poeta da Hora Absurda (2.ª ed., 1970)

Frátria, Diálogo com os Católicos (ou talvez não)1970

O Ápis (conto)

Carta-Testamento (1973)

Ensaios de Domingo - II (1974)

 

LIVROS QUE PREFACIOU

Cartas de Estalinegrado (1960)

Horas Vivas, de Natália Correia (1968)

O Homem na Cidade, de vários autores (1968)

Praça da Canção, de Manuel Alegre (2ª ed., 1969)

 

VOLUMES COM COLABORAÇÃO:

Livro do Centenário de Eça de Queirós (1945)

Perspectiva Literária Portuguesa do século XIX ( 1948)

Livro do Cinquentenário da Vida Literária de Ferreira de Castro (1966)

Vietnam - Os Escritores Tomam Posição (1968)

Natal (1968)

A Criança e o Livro

A Revolta de Ontem nas Palavras de Hoje (1969)

21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade

Charrua em Campo de Pedras (1975)

 

VOLUMES COM CAPÍTULOS OU ESTUDOS SOBRE A SUA OBRA

Regresso à Inteligência, Taborda de Vasconcelos ( 1962)

Poemas de Deus e do Diabo, José Régio (1969)

Memórias de um Resistente, Alexandre Cabral (1970)

Uma Pinga de Chuva, Antunes da Silva (1972)

O Reino Flutuante, Eduardo Prado Coelho (1972)

Deserto com Vozes, Urbano Tavares Rodrigues

O Obscurantismo Salazarista, Joaquim Barradas de Carvalho (1974).



Artigos de ou acerca de Mário Sacramento inseridos em «Aveiro e Cultura»

       - 31 de Janeiro de 1969
       - Acerca de M. S. - por Costa e Melo
       - A Geração de 40
       - A última Aventura de Júlio Verne
       - Ave, Aveiro 22-Fev.-1969
       - Carta a Fernando Namora
       - Carta-Testamento de 7-4-1967
       - Do homem que perdeu a revolução... 

       - Mário Sacramento um autor neo-realista português
       - O Ápis (Conto)
       - O testemunho de Dante

       - Páginas dedicadas a M. Sacramento
       - Perspectiva histórica acerca do 16 de Maio de 1828
 


    Página anterior Menu inicial Página seguinte