Meu caro Fernando Namora
Lembrou-se este suplemento de criar
uma secção de convívio entre autores e leitores, através da qual os
segundos dirijam aos primeiros, aberta e publicamente, as dúvidas,
sugestões, perplexidades, reparos, meditações — e até as simples
curiosidades — que a leitura dos seus livros ou a audição ou
contemplação das suas obras lhes despertem; e na qual os segundos
respondam, se o quiserem, às questões assim levantados por tais
representantes ad hoc do público a que destinam as suas
mensagens, colhendo junto deles os resultados do diálogo entre
criação e fruição que toda a obra de arte ou de pensamento
pressupõe. E pedem-me os seus redactores que abra a série, já que
alguém terá de fazê-lo para encorajar os demais. |
|
|
Ora, em matéria de coragem, os médicos
têm a triste vantagem duma profissão que os manda pregar o estoicismo à
dor e à morte — dos outros... Daí que eu o escolhesse para partilhar
comigo este sacrifício, o que é sem dúvida uma péssima maneira de
agradecer o seu último livro — Cidade Solitária — que eu li com o
grato prazer que sempre suscita o triunfo do autor que admiramos num
passo decisivo da sua carreira de escritor (neste seu caso, o da
novelística urbana), mas é também uma oportunidade, e talvez única, de
confrontar consigo uma experiência comum, se bem que de valor muito
diferente.
Médico e escritor, o seu caso é talvez o
mais representativo duma conexão de actividades muito característica, na
generalidade que lhe cabe, da época que atravessamos. Com efeito, no
século transacto e primeiro quartel deste, quase todos os
médicos-escritores vieram a desertar da medicina, quer para o
jornalismo, quer para outras actividades mais afins da sua vocação
literária. E, presentemente, não me ocorre um nome (Jaime Cortesão vem
de trás) que haja renunciado totalmente a ela. Abstraio das razões
históricas, sociais, políticas que explicam este facto. Como abstraio
das determinantes pessoais, familiares, sociais que trouxeram à
medicina, em todos os tempos, homens que viriam a realizar-se,
sobretudo, como escritores, políticos ou artistas. Passo também à margem
da escola de humanismo que a todos seduziu nesse curso e profissão, E
esqueço o conteúdo específico que o exercício da última fez predominar
na obra de alguns, e por vezes na sua. Pergunto-lhe apenas: será que a
sua experiência confirma, como penso, que, nas condições em que vivemos,
a fidelidade a um humanismo concreto — na arte, no pensamento, na acção
— implica hoje, no médico-escritor, o apelo transido da prática
profissional, que dia a dia o põe em presença dos aspectos gelados da
sociedade a que pertence, obrigando-o a comparticipar neles e a
depender deles? E ainda: a profissionalização literária (admitido que a
pudesse conseguir), na fase presente da sua obra, viria interromper a
marcha duma experiência ainda fecunda na direcção que tomou (e em que a
medicina foi uma pedra básica) ou poderia marcar a hora propícia à
elaboração da grande síntese romanesca que a sua vivência sucessiva
(como médico e como escritor) do conflito entre campo e cidade permite
esperar de si?
Seu muito dedicado e grato admirador
Mário Sacramento
Esta secção é tua, leitor. Publica nela o que pensares dum livro,
dum autor, duma obra.
|
|