VI –
No século XII a barra estava
localizada na Torreira; no século XV ao sul da Senhora das Areias;
nos meados do século XVII encontrava-se na Vagueira; no século
XVIII atingiu a costa de Mira. Em seiscentos anos a barra veio
caminhando de norte para sul; simultaneamente, foi-se formando o
cordão litoral que ainda perdura.
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Cheia na Ria, 1937 (cedida pela
Direcção do Arquivo do Distrito de Aveiro). |
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Não obstante várias tentativas e
projectos tendentes a melhorar a entrada da barra, ainda em 1801 a
crise era angustiosa. A miséria era geral e as endemias
continuavam a dizimar a população.
Em face das calamidades que
desabavam sobre Aveiro, o Ministro da regência do Príncipe D.
João, o ilustre homem público D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais
tarde Conde de Linhares, encarregou o coronel de engenharia
Reinaldo Oudinot e o capitão engenheiro Luís Gomes de Carvalho de
elaborar cada um o seu
/
11 / projecto de abertura
da nova barra. Era uma esperança que surgia.
Como Oudinot, passado pouco tempo
foi chamado para prestar serviço na ilha da Madeira, onde veio a
falecer, o projecto e a direcção das obras ficaram a cargo de Luís
Gomes de Carvalho. Em 3 de Abril de 1808 o paredão, chamado molhe
sul, hoje central, estava construído e a barra definitivamente
fixada onde actualmente se encontra.
O movimento do porto recomeçou com
a abertura da barra nova. Era um novo período de ressurgimento que
despontava e que havia de durar até 1823.
Em 12 de Maio de 1809, entrou na
laguna um comboio de 48 navios mercantes ingleses com material e
mantimentos para o exército anglo-Iuso, que marchava sobre a
cidade do Porto. Este comboio era escoltado por um navio de guerra
inglês o Port Mahon.
É curioso notar que, só passados
157 anos, em 21 de Julho do ano corrente, novamente demandassem a
barra dois draga-minas da Armada Real Britânica – o Highburton
e o Glasserton – em visita de cortesia. Prestou as honras
do porto o draga-minas «Rosário» da nossa Armada.
Este acontecimento, que a imprensa
exaltou pelo facto de há mais de século e meio não ter entrado no
porto de Aveiro um navio de guerra inglês, marca uma data no
historial do nosso porto lagunar.
Além da construção do molhe sul –
ponto de partida de toda a obra portuária – Luís Gomes de Carvalho
procurou regularizar e coordenar as correntes, a fim de manter o
canal de acesso à Ria sempre desobstruído, de modo a dar fácil
escoante às águas interiores. Assim, resolveu o importante
problema do saneamento de Aveiro. As pestes desapareceram e o
estado sanitário da cidade passou a ser excelente.
Gomes de Carvalho tentou outros
melhoramentos, nem sempre felizes nas suas vicissitudes. Os meios
de trabalho eram pouco mais que rudimentares, não havia os
eficientes maquinismos que há actualmente, e a engenharia
hidráulica não estava tão adiantada como hoje está.
Foram vinte e um anos de esforços
tenazes, de estudo, de preocupações. A recompensa de tantos
trabalhos foi receber de um cirurgião, radicado na cidade, um
leigo, críticas injuriosas; e da Câmara a ordem de expulsão das
obras e, finalmente, o exílio.
Na acta da sessão da Câmara de
Aveiro de 23 de Julho de 1823, lê-se:
«Continuando Luís Gomes de
Carvalho a dirigir semelhantes obras (as da Barra), Aveiro se
tornará inteiramente infeliz e desgraçado, sendo este o unânime
voto do Clero, Nobreza e Povo, com o qual se conforma esta
Câmara».
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Vista aérea da Barra (sem os
molhes Norte e Sul). Foto cedida pela Direcção do Arquivo do
Distrito de Aveiro. |
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Isto disse-se do primeiro obreiro
do porto de Aveiro, do engenheiro distintíssimo que fixou a barra
de uma vez para sempre!
O que é a ingratidão dos homens!
De 1823 a 1858 nada se fez de útil
para continuar a obra de Gomes de Carvalho. Bem pelo contrário.
Deixou-se arruinar o que existia
/ 12 / feito.
Foi um período de marasmo, de inacção, de abandono.
A instâncias de José Estêvão, como
já frisámos, o Governo criou a Junta Administrativa e Fiscal das
Obras de Aveiro e a direcção dos trabalhos confiada ao Eng.º
Silvério Augusto Pereira da Silva.
Depois de demorados estudos e
observações, Silvério Pereira da Silva seguiu a esteira de Gomes
de Carvalho. Prolongou e consolidou o molhe sul; construiu com
estacaria e fachina um molhe norte pouco saliente; reintegrou as
águas do braço da ria de Mira no regime geral da laguna,
aumentando assim a capacidade da bacia lagunar em mais de oito
milhões de metros cúbicos, e projectou o canal do Espinheiro, obra
iniciada em 1877, mas não concluída.
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Vista aérea da
Barra com os molhes Norte e Sul. Foto cedida pelo "Correio do
Vouga" . |
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Durante vinte e oito anos, o
general Silvério trabalhou intensamente. O regime das marés
melhorou e a barra dava livre acesso à navegação. O movimento
anual do porto chegou ao elevado número de 465 navios. A economia
local refez-se; a indústria salineira rejuvesneceu; a agricultura
prosperou. Foi mais um período de ressurgimento que Aveiro
conheceu, que durou cerca de trinta anos. Tinha-se dado mais um
passo na senda do almejado objectivo, mas ainda se estava longe.
Como aconteceu com Luís Gomes de
Carvalho, o Eng.º Silvério foi vítima de intrigas e críticas
injuriosas. Também pagou tributo à ingratidão. Abandonou as obras
em 1886.
Até 1932, ano em que se iniciou
mais uma fase da construção do porto, a barra ora assoreava, ora
dava relativo acesso à laguna. Os navios bacalhoeiros, quando
muito carregados, iam aliviar a Leixões, precisamente como os
navios da Figueira («José Alberto», «Comandante Tenreiro», «Sotto
Mayor» e «Bissaia Barreto») vêm actualmente a Aveiro aliviar a
carga de peixe, que depois é transportada em camionetas para
aquela cidade. Pois naquela data o mesmo acontecia com Aveiro e
Leixões, o que representava um encargo para os armadores da ordem
dos 200 contos por navio. Parece que tudo isto está esquecido!
Nesse tempo fomos testemunha de
encalhes de alguns bacalhoeiros à entrada da barra e em frente do
Farol. A situação era alarmante. Tornava-se necessário agitar a
opinião pública e alertar o Governo dos prejuízos que um tal
estado de coisas causava à economia nacional.
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O draga-minas
«Graciosa» entrando a barra de Aveiro, em Julho de 1959,
transportando a bordo sua Excelência o Presidente da
República, Almirante Américo Tomás. |
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A imprensa fez-se eco desse
clamor.
Em 1927, a Junta presidida por
Homem Cristo contratou o Eng.º João Henriques Von Hafe para
resolver o problema do passe da barra.
Era uma situação que pedia remédio
urgente.
Depois de demoradas experiências e
observações contínuas, levadas a cabo com mais ou menos êxito, Von
Hafe elaborou o projecto do porto exterior, que se reduzia,
fundamentalmente,
/ 13 / ao prolongamento do molhe norte pelo mar dentro
na extensão de 700 metros e de um dique deltoide de concentração
de correntes. Este dique ficaria, como ficou, em frente do Forte.
Depois de o projecto ter sido
presente ao Governo, surgiu um opúsculo de um leigo, impugnando o
plano do Eng.º Von Hafe. O Governo, cauteloso, deliberou ouvir
engenheiros ingleses experimentados na construção de portos, a fim
de darem o seu parecer.
O autor do opúsculo chegou a
afirmar, com convicção, que o dique regulador das correntes,
quando construído, não duraria 24 horas! Felizmente já passaram
muitos anos e o dique ainda lá se conserva. Mas todas estas
interferências atrasaram a obra e contrariaram Von Hafe.
A Missão Inglesa introduziu
determinadas modificações no projecto Von Hafe, como a amputação
de 250 m. no molhe norte, mas algumas delas foram postas de parte
no decorrer da obra.
Em 1930, o projecto, com ligeiras
alterações, foi aprovado em Conselho de Ministros. A adjudicação
das obras fez-se em 1931. Os trabalhos do molhe norte e do dique
regulador das correntes, uma vinda do canal de Ovar outra do canal
de Mira, iniciaram-se em Março de 1932 e prolongaram-se até 1936.
O fiscal das obras, por parte do
Estado, era o distinto Eng.º Duarte Abecassis.
Em 16 de Outubro de 1932, veio a
Aveiro inaugurar, simbolicamente, as obras do porto exterior, o sr.
Presidente da República, ao tempo General Óscar Carmona.
Depois desta data, o volume de
água salgada entrada aumentou bastante. A indústria salineira
experimentou novo surto; a pesca da Ria desenvolveu-se; a frota
bacalhoeira viu subir o contingente de algumas unidades.
Estava vencida a segunda batalha.
VII –
Para completar a obra do porto
exterior, para manter o «buraco» aberto, no dizer pitoresco de um
dos engenheiros da Missão Inglesa, faltava um dispositivo que
impedisse a invasão
/
14 /
das areias, isto é, um dispositivo
que afastasse a entrada da barra da zona de instabilidade que lhe
causava o movimento das areias arrastadas pelas correntes
marítimas, transferindo-a para fundos onde aquelas correntes não
se fizessem sentir.
Para director-geral dos Serviços
Hidráulicos do Ministério das Obras Públicas, foi nomeado nessa
altura, o Eng.º Duarte Abecassis, que fiscalizara, por parte do
Estado, a obra do molhe norte e conhecia perfeitamente o
comportamento da barra. Além disso, era ao director-geral que
incumbia, coadjuvado pelo Eng.º Viriato Canas e outros técnicos,
dar parecer sobre o projecto definitivo das obras exteriores do
porto, a fim de se resolver o problema do assoreamento da barra.
Duarte Abecassis propôs então a construção de um novo molhe, de
700 m. de extensão sobre o mar, enraizado a sul do Farol, afastado
cerca de 300 m. do molhe norte que devia ser prolongado como
previra Von Hafe, até 700 metros. Foi assim posto de parte o corte
de 250 m. aconselhado pela Missão Inglesa. Presentemente, depois
do estudo feito no Laboratório de Engenharia Civil, em modelo
reduzido, não sabemos se terá de ser ainda mais aumentado o
comprimento do molhe norte. O projecto do Eng.º Duarte Abecassis
foi aprovado e as obras do molhe sul iniciaram-se em 1 de Junho de
1953 e terminaram em 1958.
Estava ganha a última batalha
contra a Natureza.
Nesta data calculou-se que a
quantidade de água salgada entrada na laguna na preia-mar era de
cerca de 88 milhões de metros cúbicos, e nas quebradas à roda de
31 milhões.
Ao fim de século e meio tinha-se
encontrado a solução definitiva do problema do porto de Aveiro.
Anote-se que já em 1855, o Eng.º
Inglês John Rennie, tinha proposto a construção de dois diques, um
a norte e outro a sul da entrada da barra, mas esta sugestão não
foi concretizada por motivos que desconhecemos.
As obras do porto exterior deram
óptimos resultados. Todavia, é preciso não esquecer a advertência
do Eng.º Abecassis – a necessidade de dragagens.
Temos a impressão de que se tem
descurado este aspecto fundamental – dragagens – tão necessárias a
portos da natureza do nosso.
/
15 / Umas vezes porque
desviam a draga Arantes e Oliveira para outros portos, outras
vezes porque a frota das dragas está velha, o certo é que o porto
de Aveiro está muito carecido de limpeza de fundos.
Devemos frisar que, antes da
construção do molhe enraizado a sul do Farol, em 1951, ainda o
molhe norte não tinha os 700 metros de comprimento, a barra já
dava franco acesso aos maiores bacalhoeiros atestados de peixe.
O movimento de navios dos últimos
5 anos foi o que se segue:
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MOVIMENTO DE NAVIOS ENTRADOS NO
PORTO DE 1961 A 1965 |
|
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Anos |
Número de navios |
Tonelagem |
1961
1962
1963
1964
1965 |
153
165
161
194
154 |
107.331
101.895
107.534
144.936
112.623 |
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Em 1959, aproveitando as festas do
milenário de Aveiro e bicentenário da elevação a cidade, o Sr.
Presidente da República, Almirante Américo Tomás, procedeu à
inauguração oficial das obras do porto exterior, do porto de pesca
costeira e respectiva lota, e de um padrão nas proximidades da
meia-laranja, no molhe central. Esteve presente neste
acontecimento o Sr. Ministro das Comunicações, Eng.º Carlos
Ribeiro, natural do Distrito.
Sua Excelência o Presidente da
República entrou a barra a bordo do
draga-minas «Graciosa»
escoltado pelos navios da nossa Armada «Santo Antão», «S.
Nicolau», «Santa Luzia» e pelo submarino «Narval».
As obras inauguradas naquele ano,
em 5 de Julho, importaram, segundo declarou o Sr. Ministro das
Comunicações, em 120 mil contos.
Pela sua grandeza e concepção as
obras portuárias de Aveiro honram a engenharia portuguesa e
marcam uma época de ressurgimento de uma região das mais
prometedoras do País.
No padrão, com a forma de pirâmide
triangular e construído de granito polido, estão inscritas as
seguintes legendas:
/
16 /
«Estando as águas da Ria
represadas durante cerca de um século, por motivo de insuficiência
da Barra, foi construído, de 1802 a 1808, sob a regência do
Príncipe D. João, o molhe central que abriu definitivamente a
comunicação com o mar, saneou a região e restabeleceu a
navegação».
Noutra face da pirâmide, lê-se:
«Em 16 de Outubro de 1932, o
Presidente da República, general António Óscar de Fragoso Carmona,
lançou solenemente a primeira pedra para a construção das obras de
melhoramentos da Barra».
Na terceira face lê-se:
«Aos 5 dias do mês de Julho de
1959, durante as comemorações do milenário de Aveiro, o Presidente
da República, Almirante Américo de Deus Rodrigues Tomás, descerrou
este padrão comemorativo das obras exteriores do porto».
A poente deste padrão e a poucos
metros de distância, foi construída a «Casa dos Pilotos», com a
respectiva torre para perfeita observação da entrada da barra, a
inaugurar no corrente mês
(5). É mais um serviço prestado ao nosso
porto pelo Comandante Agostinho Simões Lopes, que muito se
esforçou por levar por diante a construção deste edifício tão
necessário à navegação que demanda a barra de Aveiro.
Segundo a autorizada opinião do
Sr. Eng.º Coutinho de Lima, que durante vinte anos acompanhou as
obras do porto de que foi abalizado director e a quem Aveiro deve
inestimáveis serviços que seria ingratidão esquecer, as obras
realizadas desde 1802 a 1958, obedeceram a quatro concepções
distintas, levadas a efeito por quatro notáveis engenheiros: Luís
Gomes de Carvalho (1802-1823); Silvério Augusto Pereira da Silva
(1858-1886); João Henriques Von Hafe (1927-1930); e Duarte
Abecassis, na qualidade de director-geral dos Serviços Hidráulicos
do Ministério das Obras Públicas.
As quatro concepções originárias
de técnicos diferentes e em diferentes épocas, tiveram o grande
mérito de concorrer para a solução definitiva do problema
portuário de Aveiro. Qualquer delas, isoladamente, era inoperante;
qualquer delas, sem o concurso das três restantes, era necessária
mas não suficiente. Juntas, completaram-se. Dir-se-ia a barra um
cofre de segredo que só abriria com quatro chaves. Cada um dos
engenheiros citados concebeu e forjou a sua.
Não destruíram o que era essencial
na obra dos seus predecessores, antes, todos eles, embora a muitos
anos de distância uns dos outros, continuaram os estudos iniciados
em 1802, apurando observações, repetindo experiências, registando
o comportamento da barra, orientando-se, em suma, pela mesma
estrela.
Houve espírito de continuidade
que, neste caso concreto, foi garantia do êxito.