Acesso à hierarquia superior.

N.º 2

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Dezembro de 1966 

 

O Porto de Aveiro e a sua influência no crescimento económico da região

Pelo Dr. Álvaro Sampaio

Professor do Liceu Nacional de Aveiro,
antigo Presidente da Câmara Municipal de Aveiro

<<<

VI –

No século XII a barra estava localizada na Torreira; no século XV ao sul da Senhora das Areias; nos meados do século XVII encontrava-se na Vagueira; no século XVIII atingiu a costa de Mira. Em seiscentos anos a barra veio caminhando de norte para sul; simultaneamente, foi-se formando o cordão litoral que ainda perdura.

   
 

Cheia na Ria, 1937 (cedida pela Direcção do Arquivo do Distrito de Aveiro).

 

Não obstante várias tentativas e projectos tendentes a melhorar a entrada da barra, ainda em 1801 a crise era angustiosa. A miséria era geral e as endemias continuavam a dizimar a população.

Em face das calamidades que desabavam sobre Aveiro, o Ministro da regência do Príncipe D. João, o ilustre homem público D. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais tarde Conde de Linhares, encarregou o coronel de engenharia Reinaldo Oudinot e o capitão engenheiro Luís Gomes de Carvalho de elaborar cada um o seu / 11 / projecto de abertura da nova barra. Era uma esperança que surgia.

Como Oudinot, passado pouco tempo foi chamado para prestar serviço na ilha da Madeira, onde veio a falecer, o projecto e a direcção das obras ficaram a cargo de Luís Gomes de Carvalho. Em 3 de Abril de 1808 o paredão, chamado molhe sul, hoje central, estava construído e a barra definitivamente fixada onde actualmente se encontra.

O movimento do porto recomeçou com a abertura da barra nova. Era um novo período de ressurgimento que despontava e que havia de durar até 1823.

Em 12 de Maio de 1809, entrou na laguna um comboio de 48 navios mercantes ingleses com material e mantimentos para o exército anglo-Iuso, que marchava sobre a cidade do Porto. Este comboio era escoltado por um navio de guerra inglês o Port Mahon.

É curioso notar que, só passados 157 anos, em 21 de Julho do ano corrente, novamente demandassem a barra dois draga-minas da Armada Real Britânica – o Highburton e o Glasserton – em visita de cortesia. Prestou as honras do porto o draga-minas «Rosário» da nossa Armada.

Este acontecimento, que a imprensa exaltou pelo facto de há mais de século e meio não ter entrado no porto de Aveiro um navio de guerra inglês, marca uma data no historial do nosso porto lagunar.

Além da construção do molhe sul – ponto de partida de toda a obra portuária – Luís Gomes de Carvalho procurou regularizar e coordenar as correntes, a fim de manter o canal de acesso à Ria sempre desobstruído, de modo a dar fácil escoante às águas interiores. Assim, resolveu o importante problema do saneamento de Aveiro. As pestes desapareceram e o estado sanitário da cidade passou a ser excelente.

Gomes de Carvalho tentou outros melhoramentos, nem sempre felizes nas suas vicissitudes. Os meios de trabalho eram pouco mais que rudimentares, não havia os eficientes maquinismos que há actualmente, e a engenharia hidráulica não estava tão adiantada como hoje está.

Foram vinte e um anos de esforços tenazes, de estudo, de preocupações. A recompensa de tantos trabalhos foi receber de um cirurgião, radicado na cidade, um leigo, críticas injuriosas; e da Câmara a ordem de expulsão das obras e, finalmente, o exílio.

Na acta da sessão da Câmara de Aveiro de 23 de Julho de 1823, lê-se:

«Continuando Luís Gomes de Carvalho a dirigir semelhantes obras (as da Barra), Aveiro se tornará inteiramente infeliz e desgraçado, sendo este o unânime voto do Clero, Nobreza e Povo, com o qual se conforma esta Câmara».

   
 

Vista aérea da Barra (sem os molhes Norte e Sul). Foto cedida pela Direcção do Arquivo do Distrito de Aveiro.

 

Isto disse-se do primeiro obreiro do porto de Aveiro, do engenheiro distintíssimo que fixou a barra de uma vez para sempre!

O que é a ingratidão dos homens!

De 1823 a 1858 nada se fez de útil para continuar a obra de Gomes de Carvalho. Bem pelo contrário. Deixou-se arruinar o que existia / 12 / feito. Foi um período de marasmo, de inacção, de abandono.

A instâncias de José Estêvão, como já frisámos, o Governo criou a Junta Administrativa e Fiscal das Obras de Aveiro e a direcção dos trabalhos confiada ao Eng.º Silvério Augusto Pereira da Silva.

Depois de demorados estudos e observações, Silvério Pereira da Silva seguiu a esteira de Gomes de Carvalho. Prolongou e consolidou o molhe sul; construiu com estacaria e fachina um molhe norte pouco saliente; reintegrou as águas do braço da ria de Mira no regime geral da laguna, aumentando assim a capacidade da bacia lagunar em mais de oito milhões de metros cúbicos, e projectou o canal do Espinheiro, obra iniciada em 1877, mas não concluída.

   
 

Vista aérea da Barra com os molhes Norte e Sul. Foto cedida pelo "Correio do Vouga" .

 

Durante vinte e oito anos, o general Silvério trabalhou intensamente. O regime das marés melhorou e a barra dava livre acesso à navegação. O movimento anual do porto chegou ao elevado número de 465 navios. A economia local refez-se; a indústria salineira rejuvesneceu; a agricultura prosperou. Foi mais um período de ressurgimento que Aveiro conheceu, que durou cerca de trinta anos. Tinha-se dado mais um passo na senda do almejado objectivo, mas ainda se estava longe.

Como aconteceu com Luís Gomes de Carvalho, o Eng.º Silvério foi vítima de intrigas e críticas injuriosas. Também pagou tributo à ingratidão. Abandonou as obras em 1886.

Até 1932, ano em que se iniciou mais uma fase da construção do porto, a barra ora assoreava, ora dava relativo acesso à laguna. Os navios bacalhoeiros, quando muito carregados, iam aliviar a Leixões, precisamente como os navios da Figueira («José Alberto», «Comandante Tenreiro», «Sotto Mayor» e «Bissaia Barreto») vêm actualmente a Aveiro aliviar a carga de peixe, que depois é transportada em camionetas para aquela cidade. Pois naquela data o mesmo acontecia com Aveiro e Leixões, o que representava um encargo para os armadores da ordem dos 200 contos por navio. Parece que tudo isto está esquecido!

Nesse tempo fomos testemunha de encalhes de alguns bacalhoeiros à entrada da barra e em frente do Farol. A situação era alarmante. Tornava-se necessário agitar a opinião pública e alertar o Governo dos prejuízos que um tal estado de coisas causava à economia nacional.

   
 

O draga-minas «Graciosa» entrando a barra de Aveiro, em Julho de 1959, transportando a bordo sua Excelência o Presidente da República, Almirante Américo Tomás.

 

A imprensa fez-se eco desse clamor.

Em 1927, a Junta presidida por Homem Cristo contratou o Eng.º João Henriques Von Hafe para resolver o problema do passe da barra.

Era uma situação que pedia remédio urgente.

Depois de demoradas experiências e observações contínuas, levadas a cabo com mais ou menos êxito, Von Hafe elaborou o projecto do porto exterior, que se reduzia, fundamentalmente, / 13 / ao prolongamento do molhe norte pelo mar dentro na extensão de 700 metros e de um dique deltoide de concentração de correntes. Este dique ficaria, como ficou, em frente do Forte.

Depois de o projecto ter sido presente ao Governo, surgiu um opúsculo de um leigo, impugnando o plano do Eng.º Von Hafe. O Governo, cauteloso, deliberou ouvir engenheiros ingleses experimentados na construção de portos, a fim de darem o seu parecer.

O autor do opúsculo chegou a afirmar, com convicção, que o dique regulador das correntes, quando construído, não duraria 24 horas! Felizmente já passaram muitos anos e o dique ainda lá se conserva. Mas todas estas interferências atrasaram a obra e contrariaram Von Hafe.

A Missão Inglesa introduziu determinadas modificações no projecto Von Hafe, como a amputação de 250 m. no molhe norte, mas algumas delas foram postas de parte no decorrer da obra.

Em 1930, o projecto, com ligeiras alterações, foi aprovado em Conselho de Ministros. A adjudicação das obras fez-se em 1931. Os trabalhos do molhe norte e do dique regulador das correntes, uma vinda do canal de Ovar outra do canal de Mira, iniciaram-se em Março de 1932 e prolongaram-se até 1936.

O fiscal das obras, por parte do Estado, era o distinto Eng.º Duarte Abecassis.

Em 16 de Outubro de 1932, veio a Aveiro inaugurar, simbolicamente, as obras do porto exterior, o sr. Presidente da República, ao tempo General Óscar Carmona.

Depois desta data, o volume de água salgada entrada aumentou bastante. A indústria salineira experimentou novo surto; a pesca da Ria desenvolveu-se; a frota bacalhoeira viu subir o contingente de algumas unidades.

Estava vencida a segunda batalha.

 

VII

Para completar a obra do porto exterior, para manter o «buraco» aberto, no dizer pitoresco de um dos engenheiros da Missão Inglesa, faltava um dispositivo que impedisse a invasão

/ 14 / das areias, isto é, um dispositivo que afastasse a entrada da barra da zona de instabilidade que lhe causava o movimento das areias arrastadas pelas correntes marítimas, transferindo-a para fundos onde aquelas correntes não se fizessem sentir.

Para director-geral dos Serviços Hidráulicos do Ministério das Obras Públicas, foi nomeado nessa altura, o Eng.º Duarte Abecassis, que fiscalizara, por parte do Estado, a obra do molhe norte e conhecia perfeitamente o comportamento da barra. Além disso, era ao director-geral que incumbia, coadjuvado pelo Eng.º Viriato Canas e outros técnicos, dar parecer sobre o projecto definitivo das obras exteriores do porto, a fim de se resolver o problema do assoreamento da barra. Duarte Abecassis propôs então a construção de um novo molhe, de 700 m. de extensão sobre o mar, enraizado a sul do Farol, afastado cerca de 300 m. do molhe norte que devia ser prolongado como previra Von Hafe, até 700 metros. Foi assim posto de parte o corte de 250 m. aconselhado pela Missão Inglesa. Presentemente, depois do estudo feito no Laboratório de Engenharia Civil, em modelo reduzido, não sabemos se terá de ser ainda mais aumentado o comprimento do molhe norte. O projecto do Eng.º Duarte Abecassis foi aprovado e as obras do molhe sul iniciaram-se em 1 de Junho de 1953 e terminaram em 1958.

Estava ganha a última batalha contra a Natureza.

Nesta data calculou-se que a quantidade de água salgada entrada na laguna na preia-mar era de cerca de 88 milhões de metros cúbicos, e nas quebradas à roda de 31 milhões.

Ao fim de século e meio tinha-se encontrado a solução definitiva do problema do porto de Aveiro.

Anote-se que já em 1855, o Eng.º Inglês John Rennie, tinha proposto a construção de dois diques, um a norte e outro a sul da entrada da barra, mas esta sugestão não foi concretizada por motivos que desconhecemos.

As obras do porto exterior deram óptimos resultados. Todavia, é preciso não esquecer a advertência do Eng.º Abecassis – a necessidade de dragagens.

Temos a impressão de que se tem descurado este aspecto fundamental – dragagens – tão necessárias a portos da natureza do nosso.

/ 15 / Umas vezes porque desviam a draga Arantes e Oliveira para outros portos, outras vezes porque a frota das dragas está velha, o certo é que o porto de Aveiro está muito carecido de limpeza de fundos.

Devemos frisar que, antes da construção do molhe enraizado a sul do Farol, em 1951, ainda o molhe norte não tinha os 700 metros de comprimento, a barra já dava franco acesso aos maiores bacalhoeiros atestados de peixe.

O movimento de navios dos últimos 5 anos foi o que se segue:

  MOVIMENTO DE NAVIOS ENTRADOS NO PORTO DE 1961 A 1965  
 

Anos

Número de navios

Tonelagem

1961

1962

1963

1964

1965

153

165

161

194

154

107.331

101.895

107.534

144.936

112.623

 

Em 1959, aproveitando as festas do milenário de Aveiro e bicentenário da elevação a cidade, o Sr. Presidente da República, Almirante Américo Tomás, procedeu à inauguração oficial das obras do porto exterior, do porto de pesca costeira e respectiva lota, e de um padrão nas proximidades da meia-laranja, no molhe central. Esteve presente neste acontecimento o Sr. Ministro das Comunicações, Eng.º Carlos Ribeiro, natural do Distrito.

Sua Excelência o Presidente da República entrou a barra a bordo do draga-minas «Graciosa» escoltado pelos navios da nossa Armada «Santo Antão», «S. Nicolau», «Santa Luzia» e pelo submarino «Narval».

As obras inauguradas naquele ano, em 5 de Julho, importaram, segundo declarou o Sr. Ministro das Comunicações, em 120 mil contos.

Pela sua grandeza e concepção as obras portuárias de Aveiro honram a engenharia portuguesa e marcam uma época de ressurgimento de uma região das mais prometedoras do País.

No padrão, com a forma de pirâmide triangular e construído de granito polido, estão inscritas as seguintes legendas: / 16 /

«Estando as águas da Ria represadas durante cerca de um século, por motivo de insuficiência da Barra, foi construído, de 1802 a 1808, sob a regência do Príncipe D. João, o molhe central que abriu definitivamente a comunicação com o mar, saneou a região e restabeleceu a navegação».

Noutra face da pirâmide, lê-se:

«Em 16 de Outubro de 1932, o Presidente da República, general António Óscar de Fragoso Carmona, lançou solenemente a primeira pedra para a construção das obras de melhoramentos da Barra».

Na terceira face lê-se:

«Aos 5 dias do mês de Julho de 1959, durante as comemorações do milenário de Aveiro, o Presidente da República, Almirante Américo de Deus Rodrigues Tomás, descerrou este padrão comemorativo das obras exteriores do porto».

A poente deste padrão e a poucos metros de distância, foi construída a «Casa dos Pilotos», com a respectiva torre para perfeita observação da entrada da barra, a inaugurar no corrente mês (5). É mais um serviço prestado ao nosso porto pelo Comandante Agostinho Simões Lopes, que muito se esforçou por levar por diante a construção deste edifício tão necessário à navegação que demanda a barra de Aveiro.

Segundo a autorizada opinião do Sr. Eng.º Coutinho de Lima, que durante vinte anos acompanhou as obras do porto de que foi abalizado director e a quem Aveiro deve inestimáveis serviços que seria ingratidão esquecer, as obras realizadas desde 1802 a 1958, obedeceram a quatro concepções distintas, levadas a efeito por quatro notáveis engenheiros: Luís Gomes de Carvalho (1802-1823); Silvério Augusto Pereira da Silva (1858-1886); João Henriques Von Hafe (1927-1930); e Duarte Abecassis, na qualidade de director-geral dos Serviços Hidráulicos do Ministério das Obras Públicas.

As quatro concepções originárias de técnicos diferentes e em diferentes épocas, tiveram o grande mérito de concorrer para a solução definitiva do problema portuário de Aveiro. Qualquer delas, isoladamente, era inoperante; qualquer delas, sem o concurso das três restantes, era necessária mas não suficiente. Juntas, completaram-se. Dir-se-ia a barra um cofre de segredo que só abriria com quatro chaves. Cada um dos engenheiros citados concebeu e forjou a sua.

Não destruíram o que era essencial na obra dos seus predecessores, antes, todos eles, embora a muitos anos de distância uns dos outros, continuaram os estudos iniciados em 1802, apurando observações, repetindo experiências, registando o comportamento da barra, orientando-se, em suma, pela mesma estrela.

Houve espírito de continuidade que, neste caso concreto, foi garantia do êxito.

>>>

páginas 5 a 27

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte