FREQUENTADOR
curioso e atento dos escritos de
temas aveirenses, e por amadorismo me aventurando
nesses domínios com relativa assiduidade, ainda que ao acaso dos
estímulos ocasionalmente mais prementes, a cada passo topo nas minhas
digressões de retrospectivos intentos com o mais diligente e operoso de todos os esmerilhadores
das antiguidades de Aveiro − o investigador,
historiador e crítico JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES − e dele
me socorro com incessante aprazimento e vantajoso resultado. O
meu aveirismo colheu repetidos incentivos na lição da sua
obra, nutriu-se em larga medida dos seus ensinamentos e,
uma por outra vez, logrou germinar, na sombra do roble,
em alguns rebentos tenros e tamaninhos.
Ao anotar-lhe o centenário, apenas me deterei com mais
extensão a dar balanço aos múltiplos motivos da minha admiração permanente. Não me proponho esboçar uma biografia,
nem elaborar uma análise da sua obra − que aliás se impõe efectivar com
zelo e carinho. Modesta e singelamente pretendo tão-somente afirmar um
propósito de homenagem e
um sentimento de gratidão, e avigorar uma chama votiva;
desejo exprimir o louvor e o preito ao estudioso infatigável
que, por mais de meio século, se dedicou a esquadrinhar
documentações dispersas e esquecidas, a registar acontecimentos, e a
apreciá-los e dispô-los em orientada escala de
valores relativos, a reconstituir os pretéritos eventos e a
reavivá-los para nosso esclarecimento e nossa ilustração e
para maior afervoramento e consciencialização do nosso
bairrismo.
/
150 /
MARQUES GOMES
nasceu em Aveiro − a 6 de Fevereiro
de 1853(1) − e foi fundamentalmente um arreigado aveirense.
A sua notoriedade como cultor dos assuntos históricos resultou mais, decerto, das volumosas e pormenorizadas obras
sobre o constitucionalismo, período em que se especializara
e se tornara uma escutada autoridade. Dele patenteou um
lato, profundo e rigoroso conhecimento, da soma de minúcias construindo
o trabalho de conjunto, tanto nas Lutas
Caseiras (1894) − que OLIVEIRA MARTINS qualificou como «um
trabalho nimiamente sugestivo» e «um bom serviço à história contemporânea»
− como no XII volume da História de
Portugal, Popular e Ilustrada, de PINHEIRO CHAGAS (Empresa
da História de Portugal, 1907), inteiramente devido à sua
pena erudita e conceituada. Mas as suas incursões no domínio da história nacional
− apesar da sua relevante valia e de
constituírem, porventura, a parcela de maior projecção e
fôlego da sua actividade de escritor − e os diversos estudos sobre
motivos alheios à sua terra, se firmaram mais solidamente a sua nomeada,
quase podem considerar-se como uma
diversão das suas predilecções mais gratas e absorventes, e
colocar-se no âmbito do episódico.
Na verdade, a atenção desvelada, o interesse mais pertinaz, o mais acendrado entusiasmo, a mais profunda afeição
e os cuidados e canseiras mais prolongados e intensos, dedicou-os ao berço natal e a reerguer-lhe, em laudas inumeráveis de prosa, o gráfico sinuoso da evolução plurissecular.
Não houve, por assim dizer, manuscrito, registo ou publicação em que algum dia não pousassem os seus olhos de esquadrinhador insaciável, nem monumento a que não conhecesse
os últimos escaninhos e esconsos, nem peça de arte de que
/
151 /
menosprezasse a génese e os circunstanciais acidentes ou
desestimasse o merecimento estético. Quase nenhum vulto
da região deixou de merecer-lhe o encómio devido, nenhum grande
acontecimento ficou por assinalar, nenhuma tradição
por justificar e descrever. A sua fervorosa aplicação aos
estudos aveirenses do passado tocou todos os aspectos, e a
revelação escrita de quanto encontrou e apontou forma um
caudal imenso, uma inexaurível arca repleta de notícias e ensinamentos.
Viveu na História mais do que viveu na vida. Mas da
vida das comunidades só vale o que potencialmente contém história. E
quem narra a História, e a estratifica e estrutura,
prolonga a vida, multiplica-a nas gerações do porvir. Essa
a razão pela qual amiudadas vezes tão dilatadamente se perpetua o nome do que relata as acções como o daquele mesmo
que as pratica, e outras tantas só resta conhecimento deste
através do primeiro.
Em MARQUES GOMES a historiografia representava uma
genuína vocação. Aos vinte anos, na idade em que as suscitações da pujança física primam às preocupações do espírito e as futilidades transitórias se sobrepõem aos motivos de interesse
perdurável, em que se está de frente para o que há-de vir e ainda não
conta nem se conta o vivido por nós ou por outrem, entrega-se já
denodada e pacientemente − como, em termos de franco louvor e surpresa,
então acentuou CÂNDIDO DE FIGUEIREDO − à faina de «revolver empoadas
crónicas, decifrar os gregotins dos velhos forais, sondar os mistérios
da epigrafia, sentir nas mãos o peso e na pituitária o bafio
dos in-fólios heráldicos, numismáticos e etnográficos...».
Coligindo e ampliando artigos insertos num periódico local,
lança à publicidade em 1875 o primeiro dos seus livros − e
ainda hoje um dos mais estimados − Memórias de Aveiro.
Haverá por ali, sem dúvida, algum joio, e alguma divagação
se poderá acoimar de despicienda. Mas daquele trigo se alimentou por largo tempo a curiosidade e o empenho de conhecer de todos os
que à cidade, e à vila que a precedeu, nalgum momento dirigiram os seus
pensamentos. E, porque de longe
sobrelevam os frutos sazonados às manifestações de inexperiente verdor,
três quartos de século depois de sair dos prelos esse livro de
estreante é ainda como que o breviário de todos os devotos da história
aveirense.
O caminho estava aberto e traçado. Com notável regularidade e persistência seguirá o caminho, e escreverá, sem descanso,
durante seis longas décadas. Nessa espécie de
saprofitismo ressuscitador, que é uma das características dos
narradores do passado, exuma e vivifica da catalepsia amarelecidos
papéis que jazem, desde incontáveis tempos, em
arrecadações invioladas como sepulcros. Sopra-lhes o pó
/
152 /
e leva-lhes o sopro que os reanima. E, mercê da sua actividade e do seu
gosto e jeito de transmitir o que descobre, Aveiro − especialmente
Aveiro − torna-se maior: mostra até que
profundidades chegam algumas das suas principais raízes e de onde muitas
radículas sorveram o húmus. A cidade que, devido às vicissitudes
catastróficas da barra, caíra na mais indigente ruína, e começara a
reerguer-se, já no decorrer do século XIX, com aspectos de ilusória
modernidade, sofria de uma obnubiladora amnésia colectiva. MARQUES
GOMES, na dianteira de todos, recondu-la à consciência do que fora, restitui-lhe a memória perdida, reintegra-a na sequência de uma
vida que se afigurava com ilógicas soluções de continuidade.
Com − O Distrito de
Aveiro − «Notícia geográfica, estatística,
heráldica, arqueológica e biográfica da cidade de Aveiro e de todas as
vilas e freguesias do seu Distrito» − trouxe nova e valiosa
contribuição para esclarecer não só o passado da sua terra, mas então
também o de toda a circunscrição administrativa de que ela é a capital.
Editada apenas dois anos mais tarde, e não obstante os limites
reservados a cada uma das localidades, revela esta obra uma segurança de
orientação, um domínio dos assuntos, um critério de selecção e uma
maturidade bem mais pronunciados. E desde então, com maior ou menor
desenvolvimento, com objectivos de menor ou maior relevância presta
sucessivos e prestimosos serviços à terra que lhe foi berço. Vulgariza a
biografia de Santa Joana Princesa; publica estudos sobre
individualidades das mais salientes da região, como Mendes Leite, José
Estêvão, Manuel Firmino, Jerónimo de Morais Sarmento, D. Manuel Correia
de Bastos Pina, e os conselheiros António José da Rocha, Castro Matoso e
António Ferreira de Araújo e Silva; celebra os «Aveirenses que
morreram, sofreram e combateram pela liberdade»; rememora
a contribuição de Aveiro para os movimentos liberais de 1820 e 1828.
Entre as diversas monografias que dedicou a questões ligadas a Aveiro,
não deve esquecer-se, mesmo num artigo de reduzidos limites de espaço e
intenção, a obra Subsídios para a história de Aveiro (1899), a meu ver a
mais bem
fundamentada e desvendadora que o seu filial carinho lhe ditou, a que
mais fundo penetra em certas determinantes, conquanto a confine a um
restrito número de aspectos.
Noutro local, e igualmente a pretexto do centenário do seu nascimento,
escrevi que a homenagem evocativa a prestar-lhe poderia resumir-se, em
termos comezinhos mas com
inteira propriedade, e no mais lídimo e justo significado, numa
expressão que a ética e a sabedoria populares cristalizaram para
designar a reciprocidade do sentimento e da obrigação, quando não mesmo
do desforço. A frase do povo diz: «amor com amor se paga». Ora ninguém,
na nossa terra,
/
153 /
acrescentava eu nesse ensejo, mais diligente e devotadamente
se afadigou a recordar os homens que se distinguiram por seus méritos e
virtudes, e os exalçou e lhes deu publicidade, e procurou credenciá-los
para a admiração e memória dos contemporâneos e vindouros. Pagar-lhe na
mesma moeda será, mesmo antes de se atentar mais detidamente nos outros
títulos com que conquistou o nosso apreço, a contra partida a que ganhou
indiscutível direito, o que tem a haver pelo que se lhe deve;
digamos, o eco das vozes que lançou para a glorificação de outros vultos
eminentes da sua terra e que reverte agora, a seu turno, em sua honra e
exaltação. Um homem que possuía o não muito comum predicado de venerar e
dar lembrança laudatória dos que em sua volta emergiam da banalidade,
até por esse único facto, repito, mesmo que não fossem sobejos os demais
motivos para lhe rendermos o nosso preito, não pode esquecer-se, sem desdouro nosso. O que nos deixou, em livros e opúsculos, sobre as
individualidades citadas, e, nos periódicos locais, acerca de figuras
aveirenses das mais representativas, como Fernão de Oliveira, Edmundo
de Magalhães Machado, Manuel de Melo, António Emílio de Almeida Azevedo,
José Maria Barbosa de
Magalhães, Agostinho Pinheiro, Bento de Magalhães, José Eduardo de
Almeida Vilhena e tantos outros, forçosamente se nos inculcará como
imperativo exemplo de retribuição. Por mim, numa data em que se vencem
os juros do reconhecimento de que lhe sou devedor, pontualmente me
apresento a satisfazê-los.
A primeira memória que guardo de MARQUES GOMES vivo
é um tanto
longínqua e imprecisa. Assomava eu às primeiras iniciativas pessoais de
menino da escola, só com olhos no presente e no futuro − que era então
muito mais uma perspectiva risonha do que uma incógnita de múltiplas soluções, e talvez nenhuma exacta
− quando se me deparou, paredes-meias com a minha aula do extinto
convento de Jesus, corpulento e grave, esse homem extremamente dedicado
às coisas do passado, que vivia na intimidade delas, e delas me parecia
quase uma emanação. Respeitava esse homem supersticiosamente, como uma
sobrevivência de um enublado tempo que ficara agarrado às imagens e aos altares, e às paredes, e às
sepulturas do velho mosteiro, e deles ressumava com um perfume estranho,
inquietador e misterioso.
Aliás, o ilustre aveirense, mesmo quando passei a ter alguma coisa para
trás de mim, e ainda agora, quando me comprazo a buscar no passado com
que preencher as vagas e os vagares do presente, ficou como que um elo
entre as épocas de antanho, envoltas sempre num véu encobridor −
embora mais ténue para a minha compreensão de cada vez que repito as
minhas investidas inquiridoras por esses domínios
/
154 / − e a vida real, do dia a dia labutado, da rua e do ar livre. A
cada passo − insisto − que vim a tentar na procura do que existiu e
sucedeu no berço comum, a sua erudição de investigador quase exaustivo,
em relação às possibilidades de que dispunha, me forneceu prontos
elementos e indicações elucidativas, e me traçou as rotas ou, pelo
menos, por qualquer pegada bem vincada me proporcionou uma
orientação no caminho a trilhar.
Com todas as adendas e corrigendas que se julgue necessário pospor à sua
obra, com tudo quanto haja de actualizar à luz de novos documentos e
critérios, os trabalhos que produziu são ainda o legado opulento e
indispensável, de obrigatória consulta e permanente proveito, para todo o
estudioso ou mero curioso do passado aveirense. No trato pessoal de
convivência, porque eu era demasiadamente moço e alheado dos assuntos em
que ocupava as suas faculdades, tive escassa oportunidade de lhe
apreciar os dotes e o saber. Mas daquele modo e naquele sentido muito de
imediato lhe devo no conhecimento do que Aveiro foi e evolucionou, e no
adquirir de uma mais exacta concatenação dos antecedentes que
constituíram os fundamentos e as seivas da cidade a que fervidamente me
sinto apegado. E quanto digo de mim, como membro da comunidade à qual consagrou os seus laboriosos
serviços de investigador e publicista, tenho-o como extensivo, mais
próxima ou mais distantemente, a cada um dos que filialmente estimam a
sua terra, e, na generalidade, a esta própria, pois todo o benefício lhe
coube da solicitude e fecundidade do prestimoso escritor da sua
história.
Além das produções escritas, que somam umas quatro dezenas de volumes e
opúsculos e muitos centenares de artigos esparsos por órgãos da imprensa periódica não só de
Aveiro, mas de diversas localidades do país(2), a sua acção
− porque é
verdadeiramente actuante o convívio e a exumação das antiguidades, da
História e da Arte − estendeu-se a empreendimentos de notável expressão
cultural. Entre eles, passando sobre a iniciativa de diversos números
comemorativos para os quais reuniu qualificadas colaborações, de várias
sessões de feição artística, e da criação do Grémio Aveirense, merecem
particular registo as exposições distritais de 1882 e 1895, que
alcançaram extensa repercussão. A todas, porém, culminou a organização e
instalação do
/
155 /
Museu Regional − para cuja criação seria injusto esquecer,
especialmente, a contribuição do dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS − decerto o
mais destacado dos seus títulos de servidor da cultura aveirense e
também o que lhe mereceu os maiores dissabores. Referindo-se a esse
estabelecimento, escreveu algures o insigne cientista Prof. EGAS MONIZ
(3)
− glória do país e do distrito de Aveiro: «Não me canso de louvar a
iniciativa do homem que pôde realizar esta obra, por certo a maior que
nos últimos anos foi levada a cabo nesta cidade e é, por muitos títulos,
um dos grandes beneméritos desta terra: Marques Gomes».
Vascularmente afeiçoado à investigação histórica e à narração dos
acontecimentos pretéritos − mesmo no que era actual via preferentemente,
como acima salientei, o que história poderia chegar a ser − importando-lhe
mais conhecer de onde vinha a corrente e por onde o rio da História
serpeara, do que o rumo que levava e do que dirigi-lo no sentido das
práticas utilidades, considerando no dia de hoje mais, porventura, um
resultado do que um factor, antes uma meta do que um ponto de passagem
ou de partida, construiu, afinal, uma obra para o futuro.
A mais de vinte anos da sua morte, estamos prodigamente usufruindo os
benefícios dessa obra e não podemos dispensá-la. Fonte inesgotável onde
todos saciam a sede de saber do Aveiro de outras épocas, embora
desactualizada e insatisfatória, em diversos capítulos, para as
exigências do presente, representa, indiscutivelmente, por sua extensão
e merecimentos, um dos serviços mais importantes e perduráveis que um
filho de Aveiro tem dispensado à sua terra. Com o sábio neurologista e
eminente homem de letras Doutor EGAS MONIZ, porque nessa convicção estou
e o tenho como de inteira justiça, concluirei estas despretensiosas
linhas sobre MARQUES GOMES, afirmando: «Aveiro colocará o seu nome na
galeria dos que mais a ilustraram e melhor a serviram.»
EDUARDO CERQUEIRA |