A. G. da Rocha Madahil, Iconografia da Infanta Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 186-276.

ICONOGRAFIA DA INFANTA SANTA JOANA

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O estudo dos famosos painéis de São Vicente está longe do ter atingido o seu termo; retomando as sugestões de 1927, acima relatadas, reivindicamos para a figura feminina que ajoelha ao lado do Santo a identificação com a Infanta D. Joana, e por isso a incluímos também nesta resenha iconográfica.

Várias são as referências bibliográficas a pinturas não contemporâneas e a imagens de vulto que por toda a província representavam a Infanta, documentando o culto público que mesmo antes da beatificação de 1692-1693 lhe era prestado, como acima tivemos ensejo de ver, logo nos Acta Sanctorum, e nos excertos dos processos de beatificação, de 1626 e 1686, agora pela primeira vez trazidos a público.

Há, porém, grupos inteiros de iconografia, como o de Évora, que desapareceram por completo e de que não foi possível encontrar vestígios, sequer. O de Aveiro, como é natural, avulta entre todos, embora grande número de pinturas se encontre no mais deplorável estado de conservação.

Principiando pelas de aspecto mais antigo, pois datada só uma se nos deparou, encontrámos, atribuíveis AO SÉCULO XVIl, as seguintes:

3 – Tela medindo (de vista) 0m,73 de alto por 0,94 de largo. S. a. n. d.

Chegada da Infanta a Aveiro, entre o pai e o irmão; grande acompanhamento de fidalgos; vários coches, vestuários ricos, dignos de nota; bandeiras e galhardetes (1); chão juncado de rosas até à porta do convento, onde as monjas, de cruz alçada, a vêm receber.

Mau estado de conservação, mas susceptível ainda de restauro...

Museu Regional.

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4 – Tela medindo 0m,67 de alto por 0,89 de largo. S. a. n. d.

Claustros (superior e inferior) do Mosteiro, com graciosa fonte ao centro, sobrepujada pelo escudo do Reino assente em cruz de Cristo com coroa fechada. Vasos e estatuetas em volta.

Em dez dos doze arcos do andar de baixo, grupos de freiras, padres e seculares; no 1.º arco, à direita, o Rei, coroado e sentado, sob docel, conversa com a Infanta.

No andar de cima, freiras e figuras seculares espreitam para baixo.

Gaiolas de pássaros, duas araras, e vasos de flores. Carece de ligeiro restauro, no céu.

Museu Regional.


Na cela onde faleceu a Infanta, segundo é tradição
(2), nove telas revestiam as paredes; presentemente encontra-se uma delas na arrecadação, sendo para desejar que regresse, quanto antes, ao seu primitivo lugar, a completar o conjunto. São ainda atribuíveis ao século XVII. Descrevemo-las principiando pela primeira do lado da Epístola e seguindo em volta da cela, pela direita, tal como estão, embora não haja sequência lógica nessa disposição (3).

Todas as telas s. a. n. d.
Museu Regional.


5 – O Rei de França ajoelha perante o retrato da Infanta – fig. 16 –.

6 – Entrada da Infanta para o Convento de Jesus – fig. 17 –.   

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7 – O Arcebispo de Évora, numa varanda do claustro, tenta dissuadir a Infanta de professar, enquanto no andar de baixo o Príncipe D. João fala com a Madre Superiora – filg. 18 –.

8 – Saída da Infanta do Convento, por ocasião de peste – fig. 19 –.

9 – A Infanta fala com o Príncipe e tem uma visão – fig. 20 –.

10 – Préstito fúnebre da Infanta – fig. 21 –.

11 – Corte dos cabelos da Infanta (presentemente na arrecadação).

12 – Encontro da Infanta com D. Afonso V, no regresso de Arzila – fig. 22 –.

13 – Morte da Infanta – fig. 23 –.

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14 – Das colecções do Museu faz parte um pequeno quadro de cobre (0m,223x0,170) em que a Infanta nos aparece de pé, envergando o hábito, tendo aos pés, à sua direita, um escudo partido de três leões e três lizes, e à sua esquerda outro com as armas de Portugal – fig. 24 –. Reposteiro encarnado, ao alto. S. a. n. d.

15 – Em Coimbra, tem o Museu Machado de Castro uma lâmina de cobre dourado, medindo 150 mm de alto por 118 de largo – fig. 25 – s. a. n. d., atribuída igualmente ao séc. XVII, / 267 / e representando a Rainha Santa Isabel, São Lourenço, e a Infanta Santa Joana. Ao alto, entre nuvens, o Padre Eterno (4).

16 – Da igreja de S. Domingos, de Elvas, é a tela que a nossa – fig. 26 – pela 1.ª vez reproduz; s. a. n. d., ela deve ser consecutiva à Bula de 4 de Abril de 1693 que beatificou a Infanta, pois numa cartela, de tipo do séc. XVII ainda, o artista rotulou o quadro da seguinte forma: B.ta Ioanna Prinsesa Lucitanæa.

Aos pés da Infanta, dum lado, o escudo de Portugal; e do outro, as três coroas correspondentes aos príncipes estrangeiros que a tradição diz terem sido recusados por ela.
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17 – Por último, e para encerrarmos a relação das pinturas atribuíveis ao século XVII que nos foi possível conhecer, apresentaremos ainda a delicada pintura em tela, do Museu Nacional de Arte Antiga, que a nossa – fig. 27 – reproduz (5).

S. a. n. d., mas nitidamente daquele século, figurou na Exposição de retratos seiscentistas, em Março de 1942, no Palácio da Independência, em Lisboa, e foi por aquela ocasião oferecida ao Museu pelo ilustrado coleccionador lisbonense, Senhor Afonso de Sommer

Considerada primitivamente como representando a entrada de D. Maria Francisca Isabel de Sabóia para o Convento das Francesinhas, veio depois a ser identificada, segundo esclarece a ficha respectiva, como sendo a Profissão de Santa Joana.

Representa, como se vê, o corte do cabelo à Infanta, e é valiosíssima pelos pormenores seiscentistas que fornece, conquanto anacrónicos pelo que respeita à filha de D. Afonso V. 0m,72 x 0,76.

18 – Passando à pintura do SÉCULO XVIII, catalogamos em 1.º lugar a única tela que conhecemos datada e assinada: do lado do Evangelho, faz parte da série de seis quadros que revestem as paredes da capela-mor da Igreja de Jesus, em Aveiro, e representa a Infanta recusando uma coroa real que de joelhos um dignitário lhe oferece; no chão vêem-se duas outras coroas, repetindo o conhecido simbolismo que interpreta a tradição. / 269 /

A Infanta ajoelha numa almofada, perante um altar, e um anjo interpõe-se entre ela e o crucifixo dizendo: «não entristecas, Joanna porque teu espozo ovuio os tevs rogos

subs.: EMMANVEL FRR.A E SOVZA FECIT ANNO 1729.º

19 – A Infanta saindo a receber D. Afonso v no regresso de Arzila (?)  – fig. 28 –.

20 – A Infanta recebe o irmão.   / 270 /

21 – A INfanta prediz à Superiora o seu breve falecimento: «irman daqvi a povcos dias descansarei por toda a eternidade»; fundo de jardim.

22 – Morte da Infanta.

23 – Aparição da Infanta, ao alto, após o falecimento, a uma freira que ajoelha perante um altar.

24 – Sobre a grade do coro alto, ainda na igreja, uma tela representa a cena do corte do cabelo à Infanta; a sua colocação dificulta, porém, o exame do quadro, outro tanto acontecendo com as pinturas do teto da igreja, dificilmente visíveis, mas que poderão aludir à vida da Infanta, segundo tradição que recolhemos.

Nas arrecadações e sótão do Museu, que percorremos em 5 de Novembro na companhia do guarda, por obsequiosa / 271 / concessão do ilustre Director, Senhor Dr. Alberto Souto, que muito agradecemos, pudemos identificar as quatro telas que se seguem, nenhuma das quais figurou na Exposição do 5.º centenário do nascimento da Infanta, deste ano.

25 – A Infanta, de frente, meio corpo, vestida de Dominicana, cabeça inclinada para a sua direita, contempla um crucifixo que segura com a mão esquerda juntamente com um ramo de açucenas.

À esq. alta, o escudo de Portugal, com coroa aberta. S. a. n. d. 0m,935 de alto por 0,710 de largo. Em mau estado de conservação, mas susceptível ainda de restauro. / 272 /

26 – A Infanta, sentada em cadeira de espaldar e pregaria, a face apoiada na mão direita e o braço numa almofada verde escuro; vestido bordado, branco e azul, largo decote, de ombro a ombro; cabelos ondeados. No chão, à esquerda, três coroas reais.

À esq. alta, um anjo diz, num filactério: «NÃO TEMAS IOANNA Q IA O ESPOZO OVVIO TEVS ROGOS HE MORTO O NOVO PERTE».

Insusceptível de restauro; merecia, contudo, ser copiado. S. a. n. d. 0m,98 de alto por 0,875.

27 – A Infanta, ajoelhada, de frente e com três coroas aos pés, veste de Dominicana, e olha à direita para um crucifixo que segura; mão esquerda aberta e braço afastado do corpo. Mesa à esq. com livro, caveira e disciplinas.

S. a. n. d. 1m,16 de alto por 0,95. Susceptível de restauro. Este quadro assemeIha-se grandemente a um registo gravado a buril por Joaquim Carneiro da Silva.

28 –Tela em losango emoldurado, mostrando ter pertencido a um tecto.

A Infanta, sentada em nuvens, com três coroas aos pés, tem na mão direita uma haste de açucena e segura com a esq. um livro fechado que se apoia, em posição vertical, sobre a coxa.

Cabeça de frente, corpo voltado à sua esquerda.  / 273 / [Vol. XVIII - N.º 72 - 1952]

Veste de Dominicana.
Em baixo, fundo de paisagem.
Concepção invulgar, mas estado de ruína muito acentuado.
S. a. n. d. 0m,82 nos lados oblíquos; 0,29 no de cima, e 0,85 no de baixo (medidas de vista).

29 – Ao século XVIII pertencerá ainda, a avaliar pelo recorte da cartela que em baixo apresenta a inscrição «B. IOANNA PORTVGALLIÆ PRINCEPS VIRGO.», a tela s. a. n. d. cujo desenho correctíssimo a nossa – fig. 29 – reproduz e que se encontra em Aveiro, sobre o cadeiral da Igreja de São Domingos, presentemente Sé episcopal. Nunca foi reproduzida nem lhe conhecemos referências.

A Infanta, de pé e de frente, vestida de Dominicana, olha para um crucifixo que segura na mão esquerda.

Em baixo, à sua direita, as armas de Portugal e uma coroa fechada. A esq., duas coroas abertas. 1m,08 de alto por 0,47 de largo.

O painel onde encontrámos Santa Joana apresenta duas figuras; à esq., S. ROSA LIMANA VIRGO; à dir., a Infanta.   / 274 /

Os quadros parecem ter sido pintados todos pelo mesmo artista; contam-se onze figuras, de santos e de santas, de cada lado. Desenho correcto e boa pintura.  / 275 /

30 – Entramos agora numa curiosa série de pseudo-retratos da Infanta, trajando à moda do século XVIII, com uma criança nos braços, s. a. n; d., mas acusando todos a proveniência duma oficina comum.

Localizámos cinco, com ligeiras variantes, e a todos reproduzimos aqui.

Apareceu o primeiro em 1882, na Exposição Distrital, como acima deixámos dito – fig. 5 – e foi exposto por Joaquim Rodrigues da Graça, de Águeda. Pertence hoje a seu filho, Ex.mo Senhor António Rodrigues da Graça, daquela mesma localidade.

A Infanta traja vestido vermelho claro, levemente decotado, debruado a renda no pescoço e com bordadura de pedraria no remate da gola.

Cinto de cabedal com fivela, ornado de pedraria; nos punhos, renda branca, doirada. Manto azul debruado a galão amarelo.

Cabelo loiro, olhos azuis.

Brincos de duas pérolas pendentes, uma das quais oblonga. Corar de pérolas em volta do pescoço.

No penteado concentrou o pintor o melhor da sua arte e todo o requinte do século galante por excelência: caracóis, riços, plumas de cores, pregaria floreada, pedras preciosas, formando conjunto formosíssimo de harmonia e riqueza.

Na criança de cabelos loiros também e de olhos azuis, que repousa nos braços da Infanta e para ela estende as / 276 / mãozitas rosadas, só é lícito encontrar alusão ao sobrinhito cuja criação lhe foi confiada pelo sombrio irmão.

O conjunto é, contudo, desconcertante para a história da Infanta, e ninguém identificaria a galante pintura setecentista com o retrato da torturada filha de D. Afonso V se o artista, previdente e, muito naturalmente, consciente também, não inscrevesse, a cerca de 20 cm de altura, a legenda reveladora «S. IOANA P.ª DE P.al».

S. a. n. d. 415 mm de alto por 34 de largo; pintura em chapa de cobre.

Com pequenas variantes de pormenor, mas fiel certamente a um padrão de oficina, outros exemplares se encontram; assim, que nós conheçamos.

31 – No Museu Regional de Aveiro, em tela, medindo 0m,58 de alto por 43 de largo, e com idêntica legenda – fig. 30 –-.

32 – Em Abrantes, propriedade do Senhor Dr. Oleiro, Director do Museu Regional – fig. 31 –
(6) como refere a estampa LXVI do Inventário Artistico de Santarém.

33 – Em Santarém, na Quinta do Pombal, segundo a estampa LXIX do mesmo Inventário; – fig. 32 –.

(Continua no Vol. XIX – pág. ??? – ►►►)

A. G. DA ROCHA MADAHIL

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(1)A representação do edifício é um valioso documento citadino, merecedor de demorado estudo, que não teve ainda; oportunamente se poderá fazer, visto não ser esta a ocasião mais apropriada para isso; limitamo-nos, aqui, a chamar a atenção dos estudiosos para um pormenor que se nos afigura do maior interesse local; das grades que revestem exteriormente as janelas do mosteiro saem duas grandes bandeiras; uma delas, encarnada, orlada de branco, com as armas reais, não oferece dúvida alguma de interpretação; mas a outra, colocada por igual em posição de significativo destaque, é de campo branco, cortado, no sentido do comprimento e, junto às duas orlas, por um conjunto de três faixas constituído por uma vermelha no meio de duas verdes.

     Entre os dois agrupamentos, das três faixas, como dizemos, campo branco e sem figuração alguma.

    Estaremos em presença, como parece lógico supor, da bandeira de Aveiro do século dezassete, posta a par do estandarte real no acto da recepção de D. Afonso V e de seus filhos? Dizemos, muito propositadamente, século dezassete, e não século quinze, porque o pintor também cometeu igual anacronismo com o vestuário das figuras, apresentando-as à moda da época em que ele viveu.
     A ser como sugerimos, teríamos neste quadro a mais antiga figuração conhecida da bandeira de Aveiro.
      Duma forma ou doutra, o problema merece atenção e desenvolvido estudo.

(2) No tecto da cela, duas cartelas comemoram:

– AQVI . EM . ESTA. CAZA . FA / LEÇEO . S.TA IOANA . PRINÇEZA  A .12 . DE MAIO DE 1490 ANNOS

– CORTOV . OS CABELOS . E TO / MOV. O HABITO. DIA . DA CON / VERSAÕ . D S. PAVLO =   

(3) − Na ocasião em que tomámos os nossos apontamentos não foi possível obter as dimensões das telas, como desejávamos. Que essa falta nos seja benevolamente relevada.

(4) Inédita. Adquirida em 1951 pelo Museu. Pertencera anteriormente à colecção Campos e Sousa, de Lisboa, e foi restaurada em 1913 pelo pintor: António Manuel dos Santos Leonardo. À generosa compreensão e à boa camaradagem do distinto Director do Museu, o ilustre historiador de Arte, Senhor Luís Reis Santos, se deve a inserção desta inédita espécie no presente esboço iconográfico, facto esse que singularmente valoriza o nosso estudo e que muito reconhecidamente aproveitamos o ensejo para publicamente agradecer. 

(5) Tal como acontece com o grupo inédito, pintado em cobre, do Museu Machado de Castro, também públicos agradecimentos aqui se consignam ao distinto Director do Museu Nacional de Arte Antiga e seu ilustre reorganizador, Senhor Dr. João Couto, cuja inteligente compreensão e generosa amizade tornaram possível esta reprodução, que supomos vir a público pela 1.ª vez.

(6) – As figuras 31 e 32, embora referidas no texto, não foram incluídas na publicação deste fascículo do Vol. 18. Algumas gravuras reproduzidas neste volume podem ser vistas a cores, clicando-se sobre a versão impressa a preto e branco. Foram obtidas com a devida autorização. Embora tenhamos fotografado a maior parte das existentes no Museu de Aveiro, apenas reproduzimos uma pequena amostra. Melhor que a sua apresentação aqui, é passar uma manhã ou tarde no local onde se acolheu e morreu a padroeira da nossa cidade. Além da visita a uma terra agradável e acolhedora, encontrarão neste  Museu o  melhor  complemento para esta iconografia de Santa Joana. (Março de 2019 - Henrique J. C. Oliveira).

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