A. G. da Rocha Madahil, Iconografia da Infanta Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 186-276.

ICONOGRAFIA DA

INFANTA SANTA JOANA

No ano de 1890 – quatro séculos se contavam já sobre o passamento da Infanta Santa Joana, filha deI Rei D. Afonso V – a mais importante revista portuguesa de então, "O Ocidente", fazendo-se eco das solenidades celebradas no País em comemoração da piedosa data, publicava, aberta em madeira, a gravura da fachada do Convento de Jesus, de Aveiro, e rematava desta forma categórica o artigo por ela ilustrado:

«Desejariamos publicar algum retrato da santa princeza se o houvesse, mas não ha, como não ha de muitos outros personagens da mesma epoca, de que aliás apparecem alguns retratos apocriphos.»

Ora o "Diário lllustrado", de 17 de Maio desse mesmo ano, que tinha também solenizado o centenário aveirense, inseriu no seu artigo uma gravura em madeira representando a Infanta, que, aliás, não devia constituir grande novidade para os seus leitores habituais, pois aparecera já por duas vezes mais nas páginas do jornal: a 7 de Outubro de 1881, e a 11 de Abril de 1882; a referida gravura, de resto, não era senão a chapa aberta por FRANCISCO PASTOR em 1880 para a segunda edição, muito ilustrada, da História de Portugal, de MANUEL PINHEIRO CHAGAS – fig. 1, do presente estudo –, de larga divulgação na época(1).

Se a "O Ocidente" tivesse interessado conhecer a origem da gravura de PASTOR, e não quisesse ou não pudesse socorrer-se de outra fonte de informação senão a bibliografia, com / 187 / toda a facilidade a teria encontrado no buril da colecção então muito acessível, intitulada Retratos, e elogios dos Varões, e Donas que illustraram a Nação Portugueza em virtudes, armas e artes, assim nacionaes, como estranhos, tanto antigos, como modernos (Lisboa, MDCCCXVII. Na off. de Simão Thaddeo Ferreira) – fig. 2 –.

Era publicação corrente, ao tempo, e fonte usual de informação iconográfica a que toda a gente recorria; só em nossos dias é que atingiu cotações verdadeiramente inverosímeis, pouquíssimas sendo as colecções completas que se conhecem, Aliás, desde 1862 que se encontrava publicado o volume 7º do Dicionário Bibliográfico de INOCÊNCIO FRANCISCO / 188 / DA SILVA, que a pág. 101 citava, expressamente, dois retratos da Princesa: o dos Varões e Donas, exactamente em causa, e outro representando Santa Joana em hábito de dominicana para ilustração da obra (sem nome de autor, mas atribuída a Fr. ANTÓNIO DA SILVEIRA) Epítome da vida de S.TA Joanna, Princeza de Portugal, Religiosa da Ordem de S. Domingos, chamada vulgarmente a Santa Princeza. Traduzido do italiano em Portuguez, e accrescentado por hum seu devoto. Lisboa, Na Officina de Manoel Soares, Anno de MDCCLV.

E se, de investigação em investigação, o redactor da notícia diligenciasse estabelecer, depois de se lhe deparar / 189 / o buril de 1817, a genealogia da estampa que dizia representar SANTA JOANNA, PRINCEZA DE PORTUGAL, FILHA D'EL REI DOM AFFONSO V, com muito menos trabalho do que nós, agora, para alcançarmos resultado idêntico (visto que a bibliografia respectiva vai rareando assustadoramente cada vez mais) encontraria, como sua inspiradora imediata, a delicadíssima gravura a buril, de extrema perfeição, que adorna a obra do Padre JOÃO CARAMUEL LOBKOWITZ, Philippus / prudens / Caroli V. imp. filius / Lusitaniae / Algarbiae, Indiae, Brasiliae / Legitimus Rex / Demonstratus / ... (Antuerpiae, Ex Officina Plantiniana Balthasaris Moreti, M.Dc.XXXIX). – fig. 3 –

Caso a natural curiosidade o impelisse ainda mais além, ou a data de 1639, do livro de CARAMUEL, não fosse já suficientemente respeitável para autenticar os pergaminhos da gravurinha em madeira de FRANCISCO PASTOR, de 1890, o próprio Philippus prudens lhe indicaria a proveniência e origem da sua formosíssima IOANNA PORTVGALLIÆ PRINCEPS, e assim avançaria até 1621, pelo menos, data do famoso Anacephalaeoses id est, summa capita actorum regum Lusitaniae, do Padre ANTÓNIO DE VASCONCELOS, S. J., onde em primeiro estado o formosíssimo buril aparece, em toda a sua pureza inicial, desprovido, ainda, dos retoques, aliás de finíssima execução, que lhe impôs, dezoito anos depois, a decência convencional – fig. 4 –.

Para além de 1621 é que lhe não teria sido fácil progredir, socorrido apenas por bibliografia estreme; mas até lá, podia, com segurança, ter avançado, e uma genealogia artística e histórica de mais de dois séculos e meio alguma consideração lhe deveria ter merecido. Preferiu, contudo, sentenciar categoricamente que não havia retrato algum da Princesa, e que eram apócrifos alguns outros de personagens da mesma época, não nos dizendo quais nem as razões porque o eram.

É certo que dois escritores aveirenses, cronistas das comemorações centenárias, nenhuma alusão fizeram a retratos de Santa Joana, apesar de se encontrarem em condições excepcionais, pela sociedade em que viviam, de aprofundar quanto à iconografia da Infanta dissesse respeito; de facto, JOAQUIM DE MELO FREITAS, na "Revista Ilustrada", de 31 de Maio de 1890, escrevendo sobre Festas em Aveiro – Quarto centenário da morte da Princeza Santa Joana (pág. 46 do 1.º vol.), não se refere a quaisquer retratos da festejada, nem a revista, por sua vez, apresenta qualquer figuração de Santa Joana, ilustrando, aliás, por meio de valiosas gravuras em madeira com aspectos do Convento e da procissão, o artigo do seu correspondente. É dessa mesma ocasião o opúsculo in-folio do já então historiador aveirense JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES, intitulado O Convento de Jesus - Memoria / 190 / historica commemorativa do 4.º centenario da Princeza Santa Joanna, e debalde nele se procura qualquer referência a retratos da Infanta, lembrando-se ali, não obstante, as pinturas em tela e os painéis de azulejo que na igreja de Jesus apresentam «passagens da vida da Santa Princeza». / 191 /

No esboço biográfico «D. Joanna de Portugal (A Princeza Santa», de 1879, do mesmo historiador, nenhuma alusão, de qualquer espécie, se encontra também à iconografia de Santa Joana, Princesa.

E muito de notar é ainda que em 1882, na memorável exposição distrital com que Aveiro consagrou o primeiro centenário do Marquês de Pombal, e cuja organização se ficou devendo ao benemérito e bem orientado Grémio Moderno, se encontrasse apenas uma «Pintura a oleo sobre cobre. imagem de Santa Joanna Princeza em trajos de corte», pertencente / 192 / a Joaquim Rodrigues da Graça, de Águeda (n.º 491 do respectivo catálogo impresso) (2) – fig. 5 –.

Retrato propriamente dito da Infanta, parece, pois, que, de facto, se não conhecia por então em Aveiro, nem no Convento, que forneceu bastantes peças para a exposição, nem no próprio Distrito.

A «exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza e hespanhola, celebrada em Lisboa em 1882 sob a protecção de Sua Magestade EI-Rei o Senhor D. Luiz I e a presidencia de Sua Magestade EI-Rei o Senhor D. Fernando II» (3), que / 193 / [VoI. XVIII - N.º 71 - 1952] pretendeu ser a réplica nacional à exposição de Londres, do South Kensington Museum, do ano transacto(4), e que, na verdade, assinalou uma época e uma geração na História da Arte em Portugal, nenhum retrato da Infanta apresentou também, apesar da comissão organizadora ter percorrido o País e ter estado em Aveiro.

Anos volvidos, em 1895, já então o Convento de Jesus, de Aveiro, onde a Infanta falecera, se transformara em «Colegio de Santa Joanna Princeza», nova exposição de arte religiosa se organizou, adentro dos seus muros, desta vez «em beneficio dos pobres de Aveiro».

Percorra-se porém o utilíssimo catálogo, organizado igualmente por MARQUES GOMES (5): encontrar-se-á menção de um relicário – fig. 6 – com peças de vestuário da Infanta (N.º 22), / 194 / outro – fig 7 – com a madeixa dos seus cabelos loiros (N.º 23), uma moldura de madeira entalhada contendo uma gravura que representava «Santa Joana Princesa em trajos de corte» (N.º 139, pertença de MARQUES GOMES), encontra-se ainda (N.º 178) a «imagem de Santa Joana vestida com o hábito da Ordem domínica, de setim preto e branco bordado profusamente a oiro», – fig. 8 – um «Grupo em barro vermelho pintado e dourado, representando a morte de Santa Joana Princesa» (N.º 212), pertença da «Extinta Mitra de Aveiro» (6), e um quadro de estranhas dimensões (N.º 273) assim descrito a pág. 39:

     «Santa Joanna Princesa. Ao centro, a santa com os habitos de religiosa dominica. Em baixo no primeiro Plano as armas de Portugal e as de França. Seculo XVII. Moldura coeva. Altura 0m,19 – largura 1,1 4.
     Collegio de Santa Joanna Princeza.
»

Nenhuma outra figuração da Infanta aparece, todavia, registada nas páginas do catálogo.

Positivamente, não era conhecida.

Aliás, os próprios inventários oficiais do convento, de 1859 (10 de Maio) e 1874 (4 de Março), que no Arquivo Histórico do Ministério das Finanças recentemente tivemos ensejo de estudar, nenhum retrato da Infanta registam, embora grande número de quadros e de imagens, de variada invocação, aí se tenham arrolado.

Dos autos de 1859 a verba n.º 43 é constituída por «uma imagem de Santa Joana Princesa, que está no altar, no valor de 4$800 reis» – fig. 9 –; e o n.º 44 regista «uma dita de roca da mesma Santa no valor de 9$600» – fig. 8 –. / 195 /

Em 1874 repete-se o arrolamento e os mesmos laudos:

«N.º 43 – Uma Imagem de Santa Joana Princesa, que está no altar, avaliada em quatro mil e oitocentos reis.»

«N.º 44 – Dita de roca, avaliada em nove mil e seiscentos reis». / 196 /

O n.º 97 do Inventário adicional arrola «uma urna de vidro com guarnições de prata, contendo as reliquias de Santa Joana, com o peso de 2.550 gramas, avaliada em setenta e um mil e quatrocentos reis»; e o n.º 98 «Um relicário de vidro com guarnição de prata, contendo o cabelo de Santa Joana, de peso 650 gramas, avaliado em dezoito mil e duzentos reis» – figs. 6 e 7 –.

E nada mais, da Infanta, por lá se nos deparou.

A exposição aveirense de 1895, se não apresentou assinalado progresso sobre a de 1882 –nem isso era fácil – despertou, contudo, novo interesse ao historiador e crítico de Arte que nessa época dominava inteiramente os estudos da especialidade entre nós, o eminente JOAQUIM DE VASCONCELOS, que, aliás, como acima frisámos, colaborara naquele primeiro certame regional, de 1882, e deixara preciosas e abundantes notas, ainda hoje fundamentais, no álbum ilustrado então aparecido.

Exteriorizou-se aquele interesse em dois artigos por ele publicados no "Comércio do Porto" (n.os 224 e 225 de 20 e de 21 de Setembro do referido ano), reimpressos em apêndice ao próprio catálogo da exposição(7); e é então que surge a novidade que hoje classificaríamos de sensacional, / 197 / mas que, não obstante, parece não ter alterado a orgânica de princípio destinada à exposição, nem ter encontrado eco nos estudos históricos locais da época; escreve JOAQUIM DE VASCONCELOS:

«Sobre o claustro cingido de formosas capellas, onde os mais deliciosos azulejos luzem discretamente n'uma fresca e perfumada penumbra paira ainda o espirito gentil que dentro d'aquelles muros se enterrou voluntariamente, renunciando aos esplendores do throno n'um seculo em que a mão de uma infanta portugueza pesava a valer na balança do equilibrio europeu.

Olha o visitante para o seu formoso rosto melancolico – n'uma preciosa pintura coeva, suspensa no côro alto e por detraz surge a tragedia de Setubal e o cadafalso de Evora, um proximo parente apunhalado pelo irmão (D. João II), e outro parente, o duque de Bragança, cuja cabeça viu talvez em sonhos, rolando no pó do Alemtejo, com uma pennada do mesmo irmão.

Como viveu até 1490, viu tudo isso e o mais que encheu o reino de pavor e de admiração no curto, mas glorioso e fecundo reinado do Principe Perfeito (14 annos).

Essa unica obra, o retrato da princeza, vestida com todo o esplendor da corte, mas triumphante sobretudo pela sua ideal belleza, vale uma viagem a Aveiro. É um encanto! Foi gravado no principio do seculo XVlI, em Flandres, por Boutats habilmente, mas com pouca fidelidade, e parece não ter sido reconhecido ate hoje na sua importancia capital como pintura coeva, intacta, facto que terá de ser comprovado com razões intrinsecas e technicas. Deixamos essa tarefa para outro lugar, pondo aqui em evidencia sómente a figura historica, que creou o singular e raro muzeu d'onde sahiu o melhor quinhão para a exposição de arte religiosa de Aveiro.»

E mais adiante, após referência cuidadosa às pinturas do século XVI expostas, volta a referir-se ao retrato do coro alto escrevendo:

«Vimos tambem algumas joias novas de valor e relíquias de summo interesse da Santa Princeza nos competentes engastes de prata e ouro, filagrana (sic), etc. Commove-nos o relicario circular de crystal e prata (n.º 23) com uma madeixa dos formosissimos cabellos loiros da Santa Princeza; é um reflexo das ondas de ouro que inundam o esbelto busto no retrato do côro.»

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A. G. DA ROCHA MADAHIL

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(1) A 3.ª edição, de 1900, apresenta o mesmo retrato de Santa Joana, mas em fotogravura de PIRES MARINHO. O desenho fundamental, todavia, é o memo.

(2) Porto, Imprensa Comercial, 1883; da autoria de MARQUES GOMES. Saiu também um álbum ilustrado, com texto de MARQUES GOMES e JOAQUIM DE VASCONCELOS. 

(3) − Catalogo illustrado... Lisboa, Imp. Nacional, 1882; um volume de texto e outro de estampas.

(4) Catalogue of the special loan exhibition of spanish and portuguese ornamental art, South Kensington Museum, 1881, edited by J. C. Robinson. 

(5) Catalogo da Exposição de Arte religiosa no collegio de Santa Joanna Princeza em beneficio dos pobres de Aveiro. Aveiro, Minerva Central, 1895.  

(6) MELO FREITAS, em 1911 (Feixe de motivos..., pág. 17), dá o referido grupo de barro como existente de portas a dentro do Convento de Jesus.

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