No ano de 1890
– quatro séculos
se contavam já sobre
o passamento da Infanta Santa Joana, filha deI Rei
D. Afonso V – a mais importante revista portuguesa de então, "O Ocidente",
fazendo-se eco das solenidades
celebradas no País em comemoração da piedosa data, publicava, aberta em
madeira, a gravura da fachada do Convento
de Jesus, de Aveiro, e rematava desta forma categórica o
artigo por ela ilustrado:
«Desejariamos publicar algum retrato da santa princeza se o houvesse,
mas não ha, como não ha de muitos outros personagens da mesma epoca, de
que aliás apparecem alguns retratos apocriphos.»
Ora o "Diário lllustrado", de 17 de Maio desse mesmo
ano, que tinha também solenizado o centenário aveirense,
inseriu no seu artigo uma gravura em madeira representando a Infanta, que, aliás, não devia constituir grande novidade para os seus leitores habituais, pois aparecera já por
duas vezes mais nas páginas do jornal: a 7 de Outubro de 1881, e a 11 de
Abril de 1882; a referida gravura, de resto, não era senão a chapa
aberta por FRANCISCO PASTOR em 1880
para a segunda edição, muito ilustrada, da História de Portugal, de MANUEL PINHEIRO CHAGAS
– fig. 1, do presente estudo –, de
larga divulgação na época(1).
Se a "O Ocidente" tivesse interessado conhecer a origem da gravura de
PASTOR, e não quisesse ou não pudesse socorrer-se de outra fonte de
informação senão a bibliografia, com
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187 /
toda a facilidade a teria encontrado no buril da colecção então muito
acessível, intitulada Retratos, e elogios dos Varões, e Donas que illustraram a Nação Portugueza em virtudes, armas e artes, assim nacionaes, como estranhos, tanto antigos, como
modernos (Lisboa, MDCCCXVII. Na off. de Simão Thaddeo Ferreira) – fig.
2 –.
Era publicação corrente, ao tempo, e fonte usual de informação
iconográfica a que toda a gente recorria; só em nossos dias é que
atingiu cotações verdadeiramente inverosímeis, pouquíssimas sendo as
colecções completas que se conhecem, Aliás, desde 1862 que se encontrava
publicado o volume 7º do Dicionário Bibliográfico de INOCÊNCIO
FRANCISCO
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188 /
DA SILVA, que a pág. 101 citava, expressamente, dois retratos da
Princesa: o dos Varões e Donas, exactamente em causa, e
outro representando Santa Joana em hábito de dominicana
para ilustração da obra (sem nome de autor, mas atribuída a
Fr. ANTÓNIO DA SILVEIRA) Epítome da vida de S.TA Joanna,
Princeza de Portugal, Religiosa da Ordem de S. Domingos,
chamada vulgarmente a Santa Princeza. Traduzido do italiano em Portuguez, e accrescentado por hum seu devoto. Lisboa,
Na Officina de Manoel Soares, Anno de MDCCLV.
E se, de investigação em investigação, o redactor da
notícia diligenciasse estabelecer, depois de se lhe deparar
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189 /
o buril de 1817, a genealogia da estampa que dizia representar SANTA JOANNA, PRINCEZA DE PORTUGAL, FILHA D'EL REI DOM AFFONSO
V, com muito menos trabalho do que nós, agora, para alcançarmos
resultado idêntico (visto que a bibliografia respectiva vai rareando
assustadoramente cada vez mais) encontraria, como sua inspiradora
imediata, a delicadíssima gravura a buril, de extrema perfeição, que
adorna a obra do Padre JOÃO CARAMUEL LOBKOWITZ, Philippus / prudens /
Caroli V. imp. filius / Lusitaniae / Algarbiae, Indiae, Brasiliae /
Legitimus Rex / Demonstratus / ... (Antuerpiae, Ex Officina Plantiniana
Balthasaris Moreti, M.Dc.XXXIX). – fig. 3 –
Caso a natural curiosidade o impelisse ainda mais além,
ou a data de 1639, do livro de CARAMUEL, não fosse já suficientemente
respeitável para autenticar os pergaminhos da gravurinha em madeira de
FRANCISCO PASTOR, de 1890, o próprio Philippus prudens lhe indicaria a
proveniência e origem da sua formosíssima IOANNA PORTVGALLIÆ PRINCEPS,
e assim avançaria até 1621, pelo menos, data do famoso Anacephalaeoses
id est, summa capita actorum regum Lusitaniae, do Padre ANTÓNIO DE
VASCONCELOS, S. J., onde em primeiro estado o formosíssimo buril
aparece, em toda a sua pureza inicial, desprovido, ainda, dos retoques,
aliás de finíssima execução, que lhe impôs, dezoito anos depois, a
decência convencional – fig. 4 –.
Para além de 1621 é que lhe não teria sido fácil progredir, socorrido
apenas por bibliografia estreme; mas até lá, podia, com segurança, ter
avançado, e uma genealogia artística e histórica de mais de dois séculos e meio alguma
consideração lhe deveria ter merecido. Preferiu, contudo, sentenciar
categoricamente que não havia retrato algum da Princesa, e que eram
apócrifos alguns outros de personagens da mesma época, não nos dizendo
quais nem as razões porque o eram.
É certo que dois escritores aveirenses, cronistas das comemorações
centenárias, nenhuma alusão fizeram a retratos de Santa Joana, apesar de
se encontrarem em condições excepcionais, pela sociedade em que viviam,
de aprofundar quanto à iconografia da Infanta dissesse respeito; de
facto, JOAQUIM DE MELO FREITAS, na "Revista Ilustrada", de 31 de Maio de
1890, escrevendo sobre Festas em Aveiro – Quarto centenário da morte da
Princeza Santa Joana (pág. 46 do 1.º vol.), não se refere a quaisquer retratos da festejada, nem
a revista, por sua vez, apresenta qualquer figuração de Santa Joana,
ilustrando, aliás, por meio de valiosas gravuras em madeira com aspectos
do Convento e da procissão, o artigo
do seu correspondente. É dessa mesma ocasião o opúsculo in-folio do já então historiador aveirense JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES,
intitulado O Convento de Jesus - Memoria
/
190 / historica commemorativa
do 4.º centenario da Princeza Santa Joanna, e
debalde nele se procura qualquer referência a retratos da Infanta, lembrando-se ali, não obstante, as pinturas
em tela e os painéis de azulejo que na igreja de Jesus apresentam «passagens da vida da Santa Princeza».
/ 191 /
No esboço biográfico «D.
Joanna de Portugal (A Princeza
Santa», de 1879, do mesmo historiador, nenhuma alusão,
de qualquer espécie, se encontra também à iconografia de
Santa Joana, Princesa.
E muito de notar é ainda que em 1882, na memorável exposição distrital
com que Aveiro consagrou o primeiro centenário do Marquês de Pombal, e
cuja organização se ficou devendo ao benemérito e bem orientado Grémio
Moderno, se encontrasse apenas uma «Pintura a oleo sobre cobre. imagem de Santa Joanna Princeza em trajos de corte», pertencente
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192 /
a Joaquim Rodrigues da Graça, de Águeda (n.º 491 do respectivo catálogo impresso)
(2)
– fig. 5 –.
Retrato propriamente dito da Infanta, parece, pois, que, de facto, se
não conhecia por então em Aveiro, nem no Convento, que forneceu
bastantes peças para a exposição, nem
no próprio Distrito.
A «exposição retrospectiva de arte ornamental portugueza
e hespanhola, celebrada em Lisboa em 1882 sob a protecção de
Sua Magestade EI-Rei o Senhor D. Luiz I e a presidencia de
Sua Magestade EI-Rei o Senhor D. Fernando II»
(3), que
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193 /
[VoI. XVIII -
N.º 71 - 1952]
pretendeu ser a réplica nacional à exposição de Londres, do South
Kensington Museum, do ano transacto(4), e que, na verdade, assinalou
uma época e uma geração na História da Arte em Portugal, nenhum retrato
da Infanta apresentou também, apesar da comissão organizadora ter
percorrido o País e ter estado em Aveiro.
Anos volvidos, em 1895, já então o Convento de Jesus, de
Aveiro, onde a
Infanta falecera, se transformara em «Colegio de Santa Joanna Princeza», nova exposição de arte
religiosa se organizou, adentro dos seus muros, desta vez «em beneficio dos
pobres de Aveiro».
Percorra-se porém o utilíssimo catálogo, organizado igualmente por
MARQUES GOMES
(5): encontrar-se-á menção de um relicário
– fig. 6 – com
peças de vestuário da Infanta (N.º 22),
/ 194 /
outro – fig 7 – com a madeixa dos seus cabelos loiros (N.º 23), uma moldura
de madeira entalhada contendo uma gravura
que representava «Santa Joana Princesa em trajos de corte» (N.º
139,
pertença de MARQUES GOMES), encontra-se ainda (N.º 178) a «imagem de
Santa
Joana vestida com o hábito da Ordem domínica, de setim preto e
branco bordado profusamente a oiro», – fig. 8 – um «Grupo em barro
vermelho
pintado e dourado, representando a morte de Santa
Joana Princesa»
(N.º 212), pertença da «Extinta Mitra de Aveiro»
(6), e um quadro de
estranhas dimensões
(N.º 273) assim descrito a pág. 39:
«Santa Joanna Princesa.
Ao centro, a santa com os habitos de religiosa dominica. Em baixo no primeiro Plano as armas de
Portugal e as de França. Seculo XVII. Moldura coeva. Altura 0m,19 –
largura 1,1 4.
Collegio de Santa Joanna Princeza.»
Nenhuma outra figuração da
Infanta aparece, todavia, registada nas páginas do catálogo.
Positivamente, não era conhecida.
Aliás, os próprios inventários oficiais do convento, de 1859 (10 de Maio) e 1874 (4 de Março), que no Arquivo Histórico do
Ministério das Finanças recentemente tivemos ensejo de estudar, nenhum
retrato da Infanta registam, embora grande número de quadros e de imagens, de variada
invocação, aí se tenham arrolado.
Dos autos de 1859 a verba
n.º 43 é constituída por «uma imagem de Santa
Joana Princesa, que está no altar, no valor de 4$800 reis» – fig. 9
–;
e o n.º 44 regista «uma dita de roca da mesma Santa no valor de 9$600»
– fig. 8 –.
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195 /
Em 1874 repete-se o arrolamento e os mesmos laudos:
«N.º 43 – Uma Imagem de Santa Joana Princesa, que está
no altar, avaliada em quatro mil e oitocentos reis.»
«N.º 44 – Dita de roca,
avaliada em nove mil e seiscentos reis».
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196 /
O n.º 97 do Inventário adicional arrola «uma urna de vidro com
guarnições de prata, contendo as reliquias de Santa Joana, com o peso de
2.550 gramas, avaliada em setenta e um mil e quatrocentos reis»; e o n.º 98 «Um relicário de vidro com
guarnição de prata, contendo o cabelo de Santa Joana, de peso 650 gramas, avaliado em dezoito mil
e duzentos reis» – figs. 6 e 7 –.
E nada mais, da Infanta, por lá se nos deparou.
A exposição aveirense de 1895, se não apresentou assinalado progresso
sobre a de 1882 –nem isso era fácil – despertou, contudo, novo interesse
ao historiador e crítico de Arte que nessa época dominava inteiramente
os estudos da especialidade entre nós, o eminente JOAQUIM DE VASCONCELOS, que, aliás, como
acima frisámos, colaborara naquele primeiro certame
regional, de 1882, e deixara preciosas e abundantes notas, ainda hoje
fundamentais, no álbum
ilustrado então aparecido.
Exteriorizou-se aquele interesse em dois artigos por ele publicados no
"Comércio do Porto" (n.os 224 e 225 de 20 e de 21 de Setembro do referido
ano), reimpressos em apêndice ao próprio catálogo da exposição(7); e é
então
que surge a novidade que hoje classificaríamos de sensacional,
/
197 / mas que, não obstante, parece não ter alterado a orgânica de
princípio destinada à exposição, nem ter encontrado eco nos estudos
históricos locais da época; escreve JOAQUIM DE VASCONCELOS:
«Sobre o claustro cingido de formosas capellas, onde os mais deliciosos
azulejos luzem discretamente n'uma fresca e perfumada penumbra paira
ainda o espirito gentil que dentro d'aquelles muros se enterrou
voluntariamente, renunciando aos esplendores do throno n'um seculo em
que a mão de uma infanta portugueza pesava a valer na balança do
equilibrio europeu.
Olha o visitante para o seu formoso rosto melancolico
– n'uma preciosa
pintura coeva, suspensa no côro alto e por detraz surge a tragedia de Setubal
e o cadafalso de Evora, um proximo parente apunhalado pelo irmão (D.
João II), e outro parente, o duque de Bragança, cuja cabeça viu talvez em
sonhos, rolando no pó do Alemtejo, com uma pennada do mesmo irmão.
Como viveu até 1490, viu tudo isso e o mais que encheu o reino de pavor
e de admiração no curto, mas glorioso e fecundo reinado do Principe
Perfeito
(14 annos).
Essa unica obra, o retrato da princeza, vestida com todo o esplendor da
corte, mas triumphante sobretudo pela
sua ideal belleza, vale uma viagem a Aveiro. É um encanto! Foi gravado
no principio do seculo XVlI, em Flandres, por Boutats habilmente, mas
com pouca fidelidade, e parece não ter sido reconhecido ate hoje na sua
importancia capital como pintura coeva, intacta, facto que terá de ser comprovado com razões intrinsecas e technicas. Deixamos essa tarefa
para outro lugar, pondo aqui em evidencia sómente a figura historica,
que creou o singular e raro muzeu d'onde sahiu o melhor quinhão para a
exposição de arte religiosa de Aveiro.»
E mais adiante, após referência cuidadosa às pinturas do
século XVI expostas, volta a referir-se ao retrato do coro alto
escrevendo:
«Vimos tambem algumas joias novas de valor e relíquias de summo
interesse da Santa Princeza nos competentes engastes de prata e ouro,
filagrana (sic), etc. Commove-nos o relicario circular de crystal e
prata (n.º 23) com uma madeixa dos formosissimos cabellos loiros da
Santa Princeza; é um reflexo das ondas de ouro que inundam o esbelto
busto no retrato do côro.»
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A. G. DA ROCHA MADAHIL |