Frederico de Moura, Nosografia da Infanta Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 159-185.

ALGUNS SUBSÍDIOS PARA UMA

NOSOGRAFIA DA INFANTA SANTA JOANA

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O BIÓTIPO

«L'examen de la structure du corps doit devenir une partie exacte de la science médicale, car il est une des clés principales du problème de la constitution, et par conséquent de l'une des questions centrales de clinique médicale et psychiatrique»

E. KRETSCHMER

(La Structure du corps et le caractère)
Edição francesa

«Partant de la biologie clinique, les recherches viennent s'élargir jusqu'à se trouver en présence d'un problème d'ordre général, celui des rapports entre les formes corporelles et la manière d'être psychique»

R. GAUPP.


Difícil se torna determinar o biótipo da Infanta Santa Joana, porque a matéria de estudo para o determinar é rara, e a que existe em grande parte não dá garantias de segurança em que nos possamos fincar. O contributo iconográfico é magro e quase todo destituído de valor documental para a determinação de um tipo físico. Apenas a célebre tábua do Museu de Aveiro é de aceitar como traduzindo as feições da Beata, e essa mesma sujeita a objecções. O Senhor Doutor ALBERTO SOUTO sugeriu a hipótese de que uma figura feminina orante que se vê no políptico do Museu das Janelas Verdes, e que se julga ser a rainha D. Isabel, seja antes o retrato da Infanta. E a hipótese tem muito de verosímil, dadas as incontestáveis semelhanças de indumentária e alguns pontos de contacto fisionómicos. De resto, nada mais encontro de referido sobre o contributo iconográfico da Beata que possa merecer algum crédito para sobre ele se fazerem pesquisas biotipológicas. E muito interessaria que o contributo fosse maior, pois que do estudo das características somáticas, grandes e apreciáveis elementos se poderiam colher para o esclarecimento do temperamental e do caracteriológico, como é hoje aceite pelas modernas escolas de KRETSCHMER, VIOLA e PENDE, etc., sem falar na moderna medicina psicossomática, tendência hoje imperante num largo sector da medicina. Por outro lado, o que existe escrito sobre o tipo físico da Infanta é também bastante pouco, para se considerar uma base suficientemente sólida para se apreciarem condignamente as suas características biotipológicas. Não poderemos, pois,
/ 167 / suprir a ausência do indivíduo pelos elementos deixados acerca das suas características físicas, senão na medida em que a indigência de elementos existentes nos permite pôr cuidadosamente as nossas hipóteses.

De maneira que, descarnado o problema de contributos que podem e devem ser falsos, fica-nos apenas o exame da tábua do Museu de Aveiro e a descrição dada no Memorial por Soror MARGARIDA PINHEIRO (e ainda assim entre estas duas fontes há por vezes discordâncias), o que é realmente pouco para se fazer um juízo seguro sobre o biótipo da filha de D. Afonso V. E será com boa vontade, com o recurso destes dois pequenos filões, com os elementos que colhemos (e que atrás deixamos indicados) acerca das nuances biográficas da Santa, que tentaremos realizar o estudo das suas características psicossomáticas, isto é, esforçar-nos-emos por dar o seu tipo físico e as suas características temperamentais e caracteriológicas. Consegui-lo-emos? Sabemos que a tarefa é difícil e arrojada, mas sirvam-nos as dificuldades que topámos de justificação para a insuficiência do contributo que trazemos nesta hora festiva do quinto centenário.

Comecemos por ouvir a descrição que nos dá Soror MARGARIDA PINHEIRO, a boa freira que viu a Beata Joana com os olhos inundados de luz cor de rosa e de ternura admirativa:

«Era no Rastro e corpo muy aposta . a frõte muito graciosa . os olhos verdes mũi fremosos . ho naryz meaão e de boa ffeycã . a boca grossa e Revolta. Rostro Redondo . ho Caram alvo cõ algũa cantaquer coor bê posta . muito fremosa gargãta e maãos maes do que se podesse achar e veer a ninhũa outra molher . alta e grãde de Corpo dereyto . muy aposto e ayroso aa vista e Reprẽsentacã de grãde Senhora e estado» (pág. 89).

Este é o contributo do códice sobre o tipo físico da Infanta, e ainda que em poucas palavras, dá elementos preciosos para que, cotejados com a tábua quatrocentista que parece traduzir a vera efígie da Santa, nos fornecerem os únicos elementos de segurança para nos podermos pronunciar, ou melhor, para podermos pôr uma hipótese biotipológica.

Com efeito, do relato do Memorial colhe-se que a Infanta era alta e grande de corpo muito aposto e airoso; tinha muito formosa garganta e mãos mais do que se pudesse achar e ver em nenhuma outra mulher; quanto ao rosto diz-nos que era redondo, que os olhos eram verdes, e o nariz meão e a boca grossa e revolta e a fronte muito graciosa; diz-nos mais que a pele era branca com alguma côr / 168 / (quanta quer). E é tudo quanto se pode colher de útil no Memorial sobre características somáticas, o que agora nos cumpre aferir com os elementos que colhemos no único documento plástico que acerca da Infanta nos ficou: a tábua do Museu de Aveiro. Ora observada esta tábua, a primeira coisa que se constata é que o rosto não era realmente redondo como se diz no Memorial, mas alongado, comprido, aproximado da oval, disparidade que pode ter a sua origem na sobrecarga adiposa que reveste o departamento cefálico, e que poderia ter levado a freira a chamar-lhe redondo, facto a que pode não ter sido também estranha a indumentária de freira com que sempre deve ter sido vista por Soror MARGARIDA PINHEIRO(1). Isto é, o rosto da Infanta que no retrato não é de modo nenhum uma face lunar, pode realmente ter dado essa sugestão à autora do Memorial, por virtude do revestimento gorduroso que o adorna e por efeito do hábito de freira que, roubando certa porção à fronte e à face, pode ter concorrido para aproximar do círculo um rosto que na verdade era oval. Sem dúvida, estas duas circunstâncias devem ter concorrido para a disparidade constatada. E é verdade, também, que o revestimento adiposo, sobretudo das regiões genianas, comunica à fisionomia da Infanta um aspecto pastoso.

A boca é pequena, «grossa» como se diz no Memorial, de lábios espessos e carnudos, sobretudo o inferior, existindo uma certa elevação do superior que sugere vagamente um facies adenoideu. O nariz é comprido (e não meão como foi escrito) sem acidentes e com a raiz bem individualizada entre os dois supracílios que se dispõem numa simetria geométrica; as comissuras são caídas, o que comunica a toda a fisionomia um certo ar de desalento, e o olhar, dum verde muito discreto, é bastante inexpressivo e baço, dando a impressão de que as pálpebras superiores são ligeiramente ptosadas; o pescoço é longo e bem modelado, se bem que nele avulte um aumento de volume anterior, ligeiramente mais à custa do lado direito, aumento de volume a que não nos parece estranha a responsabilidade da glândula tiróide; em todo o caso, o pescoço e o peito comunicam à figura um / 169 / surpreendente ar de nobreza, mormente esta última região que um decote fundo deixa ver em grande parte, sem que ao observador seja possível presumir, sequer, o início do sulco inter-mamário; o exame da fronte está prejudicado pela presença duma touca recamada de pedrarias, que de todo a encobre, com excepção dumas nesgas que se divisam através do fenestrado daquela peça da indumentária; mas a verdade é que dos supracílios para cima, o exame do rosto está completamente comprometido; o cabelo é longo e estende-se ladeando a face e emoldurando os ombros em madeixas dum loiro arruivado, e loiro era realmente como se colhe dum trabalho do Dr. ALBERTO SOUTO, que se refere a uma madeixa que existe num relicário do Museu de Aveiro o que se diz ser da Infanta: observámos também esse anel de cabelo, bastante mais aberto de cor do que o representado no retrato, o que pode em grande parte ser atribuído à acção do tempo e da inumação, que porventura o terão descorado. A mão que se vê na tábua é uma longa mão gótica de dedos afilados e fusiformes, e duma espantosa nobreza de linhas, apenas prejudicada por um tudo nada de papudo na face dorsal que é visível; as espáduas são estreitas e os ombros descaídos, e pode-se com certeza dizer, pelo exame do retrato, que a distância bi-acromial era pequena; a pele era branca e ligeiramente rosada.

Estender pois esta descrição, prolongar o pouco que se colhe destas duas únicas fontes fidedignas de informação para um estudo desta natureza, parece-nos que só serviria para gastar palavras e tempo inutilmente. Para a caracterização do biótipo da Infanta, nada mais se colhe nestes dois elementos de estudo que tragam um contributo sério. Por isso nos ficamos por aqui na colheita de elementos, passando seguidamente a esboçar algumas considerações cuidadosas, baseadas sobre o muito pouco que nos serve de alicerce.

A Princesa era alta, delgada, de pescoço comprido e fino, de rosto alongado (se acreditarmos no retrato) mas sem ângulos nem acidentes vincados; a mão era longa e de dedos fusiformes, a distância bi-acromial era estreita, a pele era branca, elementos que a colocariam no tipo longilíneo (VIOLA) ou no tipo leptosómico (KRETSCHMER). Mas por outro lado, Soror MARGARIDA PINHEIRO diz-nos que a face era lunar (face redonda) e se bem que na tábua do Museu de Aveiro se não colha essa impressão, a verdade é que a espessa panícula adiposa que reveste o rosto, a falta de acidentes e de traços vincados, a fisionomia toda caracterizada por linhas suaves e por volumes macios, dão-lhe um ar pastoso e brando, que embora não permita fazer pensar com afoiteza no rosto duma pícnica nos complica o problema num sentido displástico. / 170 / Isto é, as dúvidas que porventura se possam ter no sector cefálico do corpo, obrigam-nos a ponderar uma solução, e a ir para uma conclusão (um pouco arbitrária talvez) de necessidade, mas que nos parece a única que legitimamente se pode tirar: a Infanta Santa Joana era uma leptosómica, com alguns desvios displásticos no sentido do pícnico segundo a leitura do Memorial, desvios um pouco neutralizados pela observação do retrato, quanto ao aspecto do rosto.

Ora o facto de não nos ser possível atribuir à Infanta um biótipo puro, mais nos complica o problema e mais difícil torna a determinação do seu tipo temperamental e caracteriológico. Felizmente que a questão se descomplica alguma coisa, pelos dados conhecidos (sobretudo pelo contributo do Memorial) acerca da sua personalidade e dos atributos da sua psique. Teremos agora de ir meter foice no ligeiro esboço biográfico que coligimos atrás, para aí colhermos elementos que, cotejados com o que nesta parte do estudo observámos, nos permitam estudar o temperamento e o carácter. E para obtermos mais uma ajuda neste ponto, teremos ainda de voltar à tábua para nela procurarmos, nos elementos fisionómicos, alguns subsídios que nos possam ser úteis. Olhando para aquele retrato verificamos que a boca faz contraste no conjunto harmonioso das linhas serenas do rosto: é grossa, carnuda, sobretudo à custa do lábio inferior, com o seu quê de sensual, que é de resto um pouco diluído pela expressão calma, pelo travo melancólico comunicado pelas comissuras descidas, e também pelo olhar vago e impreciso que domina todo o conjunto; há realmente nesse olhar um ar distante de pessoa introvertida, e a materialidade densa da boca não chega a contrastar com violência, porque todos os outros pormenores do conjunto se conjugam para lhe diluir a espessura. Em todo o caso, aquele traço representa, na harmonia daquelas linhas, um motivo de reparo para quem o observar com algum cuidado.

Referindo-se a este contraste, diz HENRIQUE LOPES DE MENDONÇA: «E se nos lábios grossos se vislumbra profanidade de anseios, essa vaga expressão é temperada – ou quiçá acentuada – pelo vinco amargo que lhe alonga a comissura».

A carnação é alva e rosa e os cabelos dum loiro magnífico emolduram uma face bochechuda sem relevos nem ângulos. O conjunto sugere qualquer coisa da serenidade duma deusa oriental, tal a macieza de expressão e o olhar dormente que o enche.

Dos poucos elementos somáticos colhidos que parece permitirem dizer tratar-se duma leptosómica, embora com alguns desvios displásticos, conjugados com a tradução fisionómica e com os dados psicológicos pesquisados no Memorial / 171 / e em mais alguns elementos bibliográficos, teremos nós agora de tirar conclusões acerca do tipo psíquico da Infanta. Leptosómica essencialmente como parece, será lícito pensar num temperamento esquizotímico, uma vez que em cem leptosómicos se encontram 70,7 de esquizotímicos segundo VAN DER HOST e KIBLER; e é sabido que KRETSCHMER relaciona a constituição esquizotímica com o tipo somático leptosómico. Por outro lado, os dados colhidos quanto à sua atitude psicológica, fazem-nos supor tratar-se de uma pessoa introvertida, dada a profundas e grandes meditações sobre assuntos místicos (Vida e Paixão de Cristo, Vidas de Santos, Martírios das Virgens) que vivia tão intensamente que lhe provocavam o pranto e lamentosos gemidos; era um espírito impressionável e emotivo e um temperamento de profundidade, alheio ao mundo e às realidades práticas da vida, isto é, pessoa para «conceber no tempo de forma formalista e subjectivante» usando a expressão do Prof. BARAHONA FERNANDES. Era hirta e intransigente em questões de ética, inabalável na defesa da sua fé, em suma, uma idealista pura vivendo essencialmente pelo espírito; amiga de se cultivar e de conhecer a fundura das coisas da religião, era duma devoção levada ao extremo da gama mais variada de métodos supliciantes, indo até ao ponto, quase bizarro, de consentir piolhos na sua roupa interior até os não poder sofrer de modo algum, o que revela fanatismo, característica esta muito saliente nos esquizotímicos, que são por vezes fanáticos, quer religiosos quer ateus.

Parece-nos pois a nós, que em correspondência com o seu tipo físico (Leptosómico) a Infanta Santa Joana era uma esquizotímica. Estaremos dentro da razão? Não o afirmamos categoricamente, e antes deixamos este ponto de vista sujeito ao parecer dos competentes que queiram tratar do assunto, com maior latitude, e dar-nos a nós ensinamentos que porventura possam levar-nos a modificar a nossa opinião.

FICHA NOSOLÓGICA

«Um dos capitulas mais atraentes da patologia é o que indaga as relações das diversas organopatias com os vários estados de alma»

SOUSA MARTINS, Nosografia de Antero

Clinicar com o doente ausente, estabelecer diagnósticos sem a observação dos sintomas na pessoa, e sem ouvir da sua boca os sinais subjectivos, é quase concluir sem premissas, ou pelo menos com premissas inconsistentes. / 172 /

Os problemas nosográficos da Infanta Santa Joana estão envoltos em bruma, e ainda aqui não teremos outro testemunho digno de crédito que não seja o Memorial da Infanta, de Soror MARGARIDA PINHEIRO, hoje já desbravado sob o ponto de vista médico pelo Doutor FERNANDO DA SILVA CORREIA, em trabalho publicado no "Arquivo do Distrito de Aveiro"(2) e que encerra uma minuciosa história clínica. Neste último estudo, muito tem o pesquisador deste problema que aproveitar, sejam quais forem as discordâncias que se tenham com as conclusões a que chegou aquele ilustre historiador da medicina. Mas como ele próprio dá a palavra a outros conferentes, perdoe-se ao clínico rural a pobreza do contributo que pretende trazer para satisfação de uma honrosa incumbência. Empresa difícil é esta em que meti foice, pois que me não posso acercar do catre da enferma e nela pesquisar elementos que me possam conduzir a conclusões definitivas. Está à distância de 500 anos de nós, e acerca das suas doenças só nos resta o relato de Soror MARGARIDA PINHEIRO, profuso de resto, de palavras encomiásticas e de maneiras de dizer apologéticas que bastante mascaram e confundem os dados clínicos que nos dá. Catou-os penosamente o Doutor FERNANDO CORREIA e muito útil nos vai ser, na elaboração destes subsídios para a nosografia da Infanta, o trabalho beneditino que realizou, construindo uma história clínica magistral, embora nem sempre estejamos de acordo com as conclusões que dela tirou o seu autor.

Quanto a hereditariedade mórbida, pouco se conhece que possa trazer qualquer material útil para este estudo. Apenas se sabe que D. Afonso V era homem de boa estatura e bem proporcionado, e que faleceu em 28 de Agosto de 1481, aos 49 anos de idade, de «febres fortes», o que faz presumir que tenha sido vitimado por qualquer moléstia infecciosa aguda, portanto, facto destituído de interesse para ter repercussão no estudo que estamos tentando. D. Isabel, mãe da Infanta, morreu muito nova, sete meses depois de ter dado à luz D. João lI, e sucumbiu, ao que parece, de um estado hemorrágico (fluxo de sangue), tendo-se posto a hipótese de ter sido criminosamente intoxicada, causa de morte que era frequentemente atribuída às pessoas reais; mas carecendo esta causa de demonstração, fica apenas de pé como causa da morte «o fluxo de sangue», que faz pensar em primeiro lugar em meno ou metrorragias, embora à expressão usada bem pudesse dirigir-se a outras hemorragias, se não mesmo a perdas hemáticas de várias proveniências ao mesmo tempo, / 173 / por virtude dum estado discrásico sanguíneo (estado purpúrico? trombocitopenia essencial de GLANZMANN?); podia também a expressão referir-se a hemoptises ou mesmo a epistaxis, mas parece que o mais justo é supor que estivessem em causa hemorragias uterinas. Ainda aceitando que o fluxo de sangue tenha sido do foro ginecológico, não nos é possível saber qual tenha sido o seu factor etiológico. Existiria uma lesão neoplásica? Ter-se-ia tratado dum abortamento, ou de uma mola hidatiforme, ou doutra razão do domínio da obstetrícia? Perguntas destinadas a ficar sem resposta pelo que, sobre o genótipo da Infanta, sobre o dote hereditário que recebeu dos seus ascendentes, nada de positivo se sabe para supor que tenha tido repercussão sobre a sua história mórbida. Posto o problema na simplicidade esquálida da expressão «fluxo de sangue» nada nos autoriza a fixarmo-nos numa hipótese, o que tem de nos levar à única conclusão possível: sobre herança mórbida, sobre atributos do genótipo, as pesquisas que fizemos foram completamente vazias de interesse.

Quanto a antecedentes colaterais, sabe-se que D. João Il, único irmão da Infanta, era fanhoso (falava pelos narizes), o que faz pensar em fenómenos de obstrução das vias respiratórias superiores, quer por virtude de vegetações adenóides, quer por outro qualquer motivo impeditivo; sabe-se que era de pequena estatura, de temperamento impulsivo e excitável, sujeito à ira, voluntarioso, e dado, pelo menos até certa altura, aos prazeres da mesa, podendo mesmo dizer-se que foi um gastrónomo; quanto ao consumo de álcool parece que nunca foi exagerado, mas bebeu até certa altura da sua vida. Sabe-se, mais, que tinha a pele branca, e que encaneceu muito precocemente. Quanto à doença que o vitimou, está hoje muito bem estudada, se bem que também tenha sido aventada como causa da morte do Príncipe Perfeito o envenenamento criminoso (envenenamento agudo por administração de tóxico), hipótese esta posta em primeira mão por CAMILO CASTELO BRANCO e defendida mais tarde pela autoridade científica do grande clínico Professor Doutor MANUEL BENTO DE SOUSA e também por ANSELMO BRAANCAMP FREIRE que diz «quase poder afirmar que D. João Il morreu envenenado». Houve até quem atribuísse a ministração criminosa do veneno à Rainha D. Leonor, sua mulher. Mas posteriormente o Doutor D. ANTÓNIO DE LENCASTRE, ouvido sobre este assunto pelo CONDE DE SABUGOSA, eliminou tal hipótese e preencheu a certidão de óbito do rei com o diagnóstico de uremia por nefrite crónica, o que quer dizer que o Príncipe Perfeito morreu realmente intoxicado, mas por motivos endógenos. Finalmente, RICARDO JORGE liquidou a questão demonstrando a nefrite azotémica no seu notável estudo «o óbito de D. João Il». / 174 /

Quer dizer: D. João II era um nefrítico e morreu intoxicado pela ureia que os seus rins não eliminavam, por estarem comprometidos por graves lesões anátomo-patológicas que lhes comprometiam a função eliminadora.

Seria dilatar inutilmente esta parte do trabalho dizer mais alguma coisa, onde nada mais de útil há a dizer, e não há dúvida de que só palavras poderiam resultar do pretender extrair mais dos factos atrás indicados na ascendência e na colateralidade da Beata Joana.

 

A Infanta Dona Joana de Portugal nasceu a termo em Lisboa, a seis de Fevereiro de mil quatrocentos e cinquenta e dois, sendo filha primogénita dos Reis de Portugal D. Afonso V e Dona Isabel, e poucos anos depois perdeu a mãe, que faleceu em mil quatrocentos e cinquenta e seis, deixando a filha na primeira infância (com pouco mais de três anos) e o filho D. João II com sete meses apenas.

O facto de ter perdido a mãe quando ainda muito precisa lhe era a sua ternura maternal, não é inútil de registar neste trabalho, não só pela falta que esse afastamento definitivo devia ter feito à sua evolução física, mas também ao seu desenvolvimento psíquico (espiritual e instintivo) pois não parece que seja indiferente ao desenvolvimento do indivíduo a privação do amparo afectivo que só no carinho maternal se encontra, sem falar no traumatismo subconsciente que esse facto possa acarretar. E é até bem possível que na precocidade de desenvolvimento psíquico que se nota na vida da Infanta, algumas responsabilidades tenha a orfandade prematura, que pode muito bem ter influído, quando não como causa determinante pelo menos como causa adjuvante, nessa exuberância evolutiva, embora o principal motivo tivesse sido de ordem constitucional. É certo que, sincronicamente com o desenvolvimento psíquico, foi também precoce o desenvolvimento somático, e é lícito presumir que isso tenha surgido, em grande parte pelo menos, em consequência duma hipercrinia das glândulas de secreção interna, com aumento das somato-estimulinas, isto é, em termos mais descarnados, é possível que se tenha dado na Infanta uma puberdade prematura. E esta fase da vida corresponde à cessação da infância, não apenas no departamento restrito que vulgarmente se atribui à adolescência, mas também e sobretudo, sob o ponto de vista do desenvolvimento geral.

(Abre-se um parêntese para fazer referência a uma nota do romance histórico de MARQUES ROSA, «Princesa Joana», que entre várias alusões às doenças da Infanta absolutamente infundamentadas, afirma «que só muito tarde entrou na puberdade, o que explica o fraco desenvolvimento do seu / 175 / organismo quase sempre infantil», afirmação esta em desacordo com tudo o que lemos sobre o assunto, e que, ao contrário, é sempre de molde a fazer-nos concluir quer sob o ponto de vista físico, quer sob o ponto de vista psíquico, que o desenvolvimento da Infanta não só foi normal mas, mais do que isso, foi supra-normal, a ponto de aos quinze anos parecer ter vinte e cinco).

Fechado este quase inútil parêntese, continuemos, dizendo que uma tentativa nosográfica de uma pessoa célebre não interessa apenas (nem essencialmente) para lhe pesquisar e exibir à curiosidade do público as mazelas patológicas, mas antes, para do estudo desse ficha mórbida carrear, para a ânsia dos interessados e dos estudiosos, as ressonâncias intelectuais, espirituais e afectivas que essas mazelas determinaram ou que com elas possam ter relações, e interpretar as atitudes e estados de alma que elas porventura condicionem ou modifiquem; e também para avaliar do grau de reacção (quer de revolta, quer de conformismo ou de resignação) que as personalidades em estudo possam ter em frente do sofrimento patológico. Ora a existência duma puberdade precoce, e mais do que isso, a possível existência de um hipercrinismo endócrino, podiam trazer um contributo para explicar o ar senhoril, o equilíbrio adulto, a austeridade, a gravidade de maneiras e o desenvolvimento físico constatados prematuramente na filha de D. Afonso V.

Já vimos que a observação da tábua do Museu de Aveiro nos mostra uma fisionomia baça, parada, de olhar mortiço, e vagamente gelatinosa (mas não mixedematoide) mas é preciso não esquecer que a retratada é representada em idade de pouco mais de dezoito anos, que não podemos afirmar que ela reproduza absolutamente a vera efígie da Infanta, e que, no caso de representar, não sabemos em que medida são as suas qualidades de realismo objectivo e não exista antes uma transfiguração realizada através do crivo subjectivo do autor. Mas, mesmo admitindo o ar gelatinoso e os olhos mortiços que se lêem no quadro, como traduzindo a realidade do modelo, existe no mesmo retrato um sinal que pela sua objectividade, pela sua localização, pelo seu volume, e até pelos limites desse volume, nos sugere que na Infanta pudesse ter existido um bócio. Com efeito, quer-nos parecer, que na região anterior do pescoço existe um aumento de volume (sobretudo à custa do lado direito) que pela sua forma, e pela sua posição nos dá a sugestão de que não pode deixar de ser à custa da glândula tiróide, e sobretudo à custa do lobo direito, o que é vulgar na doença de GRAVES (WOLF, – Endocrinologia na prática moderna). Objectar-se-á que por outro lado se não encontram, na tábua quatrocentista, o olhar vivo, esgazeado e a ex oftalmia dos Basedowianos, e que / 176 / pelo contrário o olhar é dormente e as pálpebras são pesadas; mas a isso replicar-se-á, que a ex oftalmia «falta em uma terça parte dos casos» segundo o Prof. BRUGSCH, e além disso que «nos doentes muito jovens e nos que têm mais de quarenta anos, ao iniciar-se a doença raramente se observa ex oftalmia pronunciada» (WOLF); e o caso presente refere-se a uma pessoa muito jovem. Reconhecemos que contra a nossa hipótese joga uma escala de razões que nos não deixa terreno seguro, de entre as quais avultam as de ser impossível saber da existência de uma taquicardia que se não encontra referida, de tremores das mãos e da língua de que não podemos afirmar a existência... e sobretudo de naquele tempo se não medir o metabolismo basal. Mas..., se existem contra a nossa hipótese estas razões sérias, de não ser possível demonstrar estes sintomas, existe um certo número de indícios do âmbito gastrointestinal, que podem ser incluídos no síndromo de hipertiroidismo, como por exemplo os vómitos e sobretudo a tendência para a diarreia que domina as diversas poussées da enfermidade que finalmente vitimou a Infanta. E mesmo, sem grande esforço, a tendência para a sudação e para a hipertermia, constatada sobretudo na última crise, pode ser incluída naquele síndromo, não falando já nos abafamentos (dispneia ?), na respiração breve e frequente (polipneia?) e nas palpitações que parece terem existido.

Temos de nos limitar a aproveitar o pouco que há, valorizá-lo cuidadosamente e tirar daí conclusões quase sempre interrogativas. Adiante voltaremos novamente a este assunto, quando tivermos de dar a nossa modesta opinião sobre a diarreia que caracterizou o último estado mórbido da Beata.

Sob o ponto de vista do sistema nervoso, escreveu coisas que julgamos absolutamente absurdas o escritor MARQUES ROSA, falando em histeria, em histero-epilepsia... e até em dores num ovário e em vaginismo, diagnósticos decretados com um à-vontade baseado em coisa nenhuma, que causa pasmo. Chegou mesmo a afirmar que a interdição do uso de camisas de lã, junto à pele, por parte dos físicos da época, foi motivada por mastodinia de que sofria a Infanta.

Enfim, as coisas mais fantasiosas que se possam imaginar trouxe aquele escritor como contributo nosológico no seu já citado romance histórico Princesa Joana... contributo de todo inútil para os modestos subsídios que estamos elaborando.

Certa é sem dúvida a precocidade da Beata, como é certa a precocidade da sua inclinação para a vida religiosa, e consequentemente a sua vocação para as leituras místicas e para a vida de sacrifício. Só é pena que a bruma da distância e / 177 / [Vol. XVIII - N.º 71 - 1952] a falta de provas decisivas nos não possam deixar saber se sim ou não é certo que tenha existido na trajectória biográfica da nossa estudada um gosto exagerado pelo luxo, como quer RUI DE PINA, e também um episódio amoroso por volta dos seus dezoito anos. E é pena não nos ser possível sabê-lo ao certo, não pelo espírito de sondar pormenores ácidos, mas porque esses factos, a terem existido, alguma luz poderiam trazer sobre o conteúdo humano da Princesa. A coisa, porém, fica-se por umas ligeiras referências, por um sapato de fidalgo encontrado perdido nos Paços, e pela degolação do dono desse sapato, às ordens do Africano. De pé, até aqui, fica apenas o notável desenvolvimento corporal e psíquico da Princesa, o que permite pôr a hipótese cuidadosa de perturbações no sentido da hiperfunção dos seus órgãos endócrinos, pois aos quinze anos parecia ter vinte e cinco pelo seu porte (hiperfunção da órbita hipofisária?), e aos nove era de uma devoção em desacordo com a sua idade infantil, e aprendia as letras com muito gosto, inclusivamente o latim.

A história clínica, elaborada pelo Doutor FERNANDO CORREIA, que a catou beneditinamente, sobretudo no relato feito acerca das doenças da Beata, por Soror MARGARIDA PINHEIRO, é um precioso trabalho que muita utilidade nos traz para a elaboração destes subsídios, embora nós não estejamos sempre de acordo com as opiniões daquele douto escritor, facto vulgar, de resto, mesmo quando existe o doente real na frente de dois médicos, e muito mais, é claro, quando o enfermo não existe, e temos de fazer clínica no espaço, apenas com o socorro da transmissão de sintomas por interposta pessoa, mormente se essa pessoa é leiga como era o caso da irmã MARGARIDA PINHEIRO. E não só leiga, mas duma retórica, que embora seja muito saborosa, é enevoada de pormenores inúteis e complicantes para o problema puramente clínico.

FERNANDO CORREIA, estudando as causas da morte da Infanta, e de acordo com os ensinamentos do Memorial, marca, e muito bem, na ficha mórbida três episódios: um em 1475, outro em 1481, e finalmente o terceiro em 1489. Quer dizer: do primeiro ao segundo decorre um período de seis anos; do segundo ao terceiro medeia um lapso de oito. Desta sistematização nos socorreremos adiante, quando chegarmos à altura de pormos as nossas dúvidas e os nossos problemas. E feita aqui esta referência a um trabalho que nos serve de bordão, continuemos o nosso estudo.

A Infanta foi tratada com mimos e cuidados de ordem vária na infância, e muito nova ainda foi solicitada insistentemente para o matrimónio, solicitações a que sempre resistiu; é assente que usava e abusava de jejuns e penitências de ordem vária sobre o seu físico, como disciplinas de corda / 178 / e sangue, cilícios agressivos, camisas de estamenha junto à pele, e até atentados contra a higiene mais comezinha, não mudando a camisa de lã até a não poder já sofrer por virtude da pediculose; além disso dormia em cama incómoda, e apertava as suas pernas com fitas tecidas de pelos de rabo de boi; era um temperamento fortemente emotivo, vivendo com intensidade a sua fé e as suas leituras místicas, que a faziam chorar copiosamente e soltar fundos gemidos, sobretudo quando meditava sobre a paixão de Cristo; era uma introvertida, completamente virada para o seu ideal religioso, e de uma austeridade rígida e por vezes inexorável em questões de moral; era branca de pele (a cor dos santos, como diz KRETSCHMER) com alguma cor, os olhos tinham as íris verdes e os cabelos eram loiros; tinha a boca carnuda e o lábio superior ligeiramente levantado, o que sugere um facies adenoideu; parece ter sido um temperamento esquizotímico.

Em 1471 solicita licença do pai para entrar num convento, e em 1472 transpôs as portas do Mosteiro de Jesus da Vila de Aveiro, tomando em 1475 hábito de dominicana. Era delgada e franzina, e pouco depois da sua entrada em ambiente monástico adoece de «graves e fortes doenças:», e os físicos que a observaram nessa altura concluíram que «tinha o fígado e os rins muito danados e quase podres, e sobretudo o sangue tão danado e corrupto que se mais aturasse lã a carã e a cama e assim o jejum e comer pescado, que fosse certa que de todo por força se danaria e seria gafa. O que parecia ser verdade por o grande desconserto do seu sangue e muitos e maus inchaços, postemas e acidentes que tinha.»

Confesso, aqui à puridade, que para a minha formação de médico do século XX, este diagnóstico e este prognóstico formulados pelos meus colegas do século XV, me deixam de tal maneira confuso, como se tais opiniões não tivessem sido proferidas por oficiais do meu ofício. Confesso mais, que me não julgo com forças para me meter dentro dos conceitos médicos da época, para assim os poder traduzir para a linguagem médica actual, e nem ao menos para valorizar semelhantes maneiras de referir sintomas, para concluir, fincado neles, por um diagnóstico e sobretudo por um prognóstico. É verdade que os físicos da Infanta eram «bons e certos», e é certo também que eu sou um pobre João Semana da duna, que não tem mais do que aceitar aqui do poder de observação dos seus longínquos colegas, que a Infanta sofria do fígado e dos rins e tinha edemas e pústulas. Mas de que elementos disponho eu para etiquetar as entidades nosológicas hepáticas e renais em discussão? Hepatite? E de que natureza? Nefrite? Tuberculose renal primitiva como aventou o Doutor FERNANDO CORREIA? Não há elementos que nos fixem num rumo, e do mesmo modo são-nos / 179 / desconhecidas as causas dos edemas, que se não sabe se teriam sido edemas maleolares por nefrite ou por hiposistolia, ou se se trataria de ascite por transsudato, ou de exudato por qualquer causa inflamatória peritonial; ou ainda se se teria mesmo, tratado de uma anasarca. Quanto às pústulas, também nada se pode dizer, por nada ter ficado escrito sobre a situação anatómica que ocupavam, nem sob o seu aspecto anátomo-patológico.

Não nos parece de aceitar, sem muita prudência, a tese da tuberculose renal primitiva, por aquela localização ser quase sempre secundária a uma forma pulmonar, e ainda pela longa sobrevivência da Infanta a seguir ao parecer dos tísicos «bons e certos»; que tenha existido uma ascite por compressão em consequência dum processo cirrótico do fígado, também não é natural, não só pela sobriedade alimentar da Princesa, mas também porque, a ter-se dado, é natural que os físicos e a Irmã MARGARIDA PINHEIRO não tivessem deixado sem referência o facto da existência daquela manifestação hidrópica.

Do que não há dúvida, é de que o parecer médico em referência evitou que a Infanta professasse.


Não escapou a Infanta à fama de ter sido envenenada criminosamente, tendo sido aventado como móbil do crime a vingança duma mulher de vida imoral a quem ameaçara com a justiça de El Rei. Diz a este respeito o Memorial: «Por a qual Cousa e zeelo de virtude e salvacã das almas e evytar muitos erros e pecados ẽ spicial Clerygos e molheres de mao viver lhe foy ordenada e dada a morte segũdo Juizo e afirmacã de algũas pessoas que o virã e pratycarã e depois do falecimẽto da dita Senhora affyrmavã seer certo que de cassa de hũa pessoa que manyfestamente vivia mal e stava ẽ pecado mortal a qual sẽedo per muitas vezes amoestada e mãdada da parte da dita Senhora se ẽmendasse e tirasse de seus erros e muy maao viver e exẽplo»; e mais adiante: «Das quaes foy ẽtendido por manyfesto Indicio lhe trautarẽ a morte e darẽ peconha» (pág. 139). E o Memorial continua dizendo que, certo dia de calor, pela hora da sesta, quando a Infanta sequiosa regressava ao Convento de Jesus da Vila de Aveiro, de onde estivera afastada por motivo de uma epidemia de peste, lhe foi dado um púcaro de água para matar a sede em virtude da ingestão da qual se sentiu muito perturbada («de dẽtro muito revolta»); toda a noite passou em «grandes e maaos acidentes de arrevesar e camaras syntindo revolvimento de todos hos umores do corpo e assy hos lancãdo». A partir daquela altura a Infanta ficou enferma, a sentir-se «muito mal cõtinuadamte do coraçõ» (taquicardia? Palpitações?) e tristeza
/ 180 / grande e abafamentos (dispneia de origem cardíaca?) e pouco a pouco inchando do estômago e ventre (Meteorismo? Ascite?). Emagreceu muito e foi tomada duma grande melancolia e a face tornou-se macilenta. Passou-se isto em 1481, oito anos antes da doença que finalmente a veio a vitimar, se é que este episódio mórbido não foi apenas uma poussée aguda duma enfermidade crónica de que sofria.

Objecta, e muito bem, contra a hipótese de envenenamento criminoso o Senhor Doutor FERNANDO CORREIA, no estudo a que já várias vezes fizemos referência, argumentando que a água acusada de veicular o tóxico foi ministrada muito longe de Aveiro, e por consequência da pessoa ou pessoas que porventura tivessem interesse na morte da Infanta; além disso, não é natural que tal líquido tivesse sido usado para dissolver o veneno. Também nós nos não inclinamos para esta causa da crise de 1481 e perfilhamos absolutamente, neste particular, os pontos de vista do ilustre colega que os formulou.

 

Só oito anos depois desta crise se iniciou a doença que veio a vitimar a Beata Joana. Com efeito, foi à meia noite do dia nove do mês de Dezembro de 1489 que teve início o síndromo que se apresentou com as seguintes características; «sua doẽca foy grãde ffebre e descõcerto de todos os umores ẽ maneyra que assy foe a dita Senhora toda trespassada e revolta deles que todos se lhe soltavã em cameras e vomytos». Trabalharam afincadamente os físicos para lhe darem alívio, e aproveitaram o mais que puderam as mezinhas da farmacopeia da época, estranha, primitiva e grosseira. Mas alguma utilidade foram capazes de extrair da terapêutica posta em prática porque «passados assy algũus dias e esta desenterya de umores e sangue abrandarõ e cessarõ», porém, «a muy grãde febre nam».

Por todos os meses de Janeiro e Fevereiro os seus sofrimentos recrudesceram «ẽ que mais se demostrou seus grãdes padecimẽtos de febre e foy visto lhe ynchar ẽ grande maneyra ho ventre e stamago»; além disso padecia de gande sede e fastio. Entretanto a medicina claudicava à volta do catre da ilustre enferma (de diversos físicos diversas sentenças se davam e diversos remédios davam e faziam os quais em nenhuma coisa acertavam a verdade nem conheciam) enquanto esta resignadamente cumpria todas as prescrições, ingeria todas as beberagens e em coisa nenhuma desobedecia às ordens dos doutores que cuidavam do seu físico. Estoicamente aguentava a sede abrasadora que a queimava, porque os médicos lhe davam água em muito estreita quantidade de que veio se lhe fazer toda a boca em chagas com o que recebia tanta dor que esse pouco comer que tomava era,
/ 181 / regado com lágrimas. Além disto, e além do abaulamento do estômago e ventre, inchava agora por todo o corpo, «inchava toda cõ grãdes padecymentos.» (nefrite aguda post-infecciosa? Insuficiência cardíaca?)

Alarmados com as más notícias chegadas do Convento de Jesus, D. João II e D. Filipa mandaram cada um o seu físico «que bem experymẽtados e grandes eram ẽ sciencia e curas»; mas, comenta desalentada a boa MARGARIDA PINHEIRO: «Nõ ha hy mezinha remedio nẽ vida onde Deus nõ quer nẽ poõe a sua.» Não há realmente terapêutica que modifique o curso da travessia no sentido de a amenizar, e durante os meses de Março e Abril cresceu tanto a sua doença que todos os que a viram julgavam falecer. D. João II, que estava em Évora, pretende vir a Aveiro ver a irmã, mas o Doutor Mestre Rodrigo engana o rei escrevendo-lhe a dizer que a Senhora Infanta estava melhor, para assim evitar ao soberano o desgosto de a vir topar morta, ou pelo menos moribunda, tal era a impressão que nesta altura dominava o espírito do sábio físico da corte do Príncipe Perfeito.

A doente piorava sempre, e a medicina da época resignava-se ao fracasso e confessava-se impotente para dominar o mal. Tudo se agravava, e complicações surgiam de todos os sectores: inchava fortemente, e começou a se soltar toda de humores mui peçonhentos e por vómitos de arrevezar com grande trabalho e força. Não dormia nem comia nada por o grande fastio. Veio a seguir fazer uma grande chaga em cima do osso do quadril, do que tudo era tão atormentada que a cada hora a tinham finada». Nem a repulsiva escara de decúbito faltou na rua da amargura desta última doença da Princesa. Entretanto começa o mês de Maio, a enferma aproxima-se do fim e surgem «fortes acidentes». No dia cinco deste mês, de manhã, veio àquelas horas um tão súpito, forte e desacostumado acidente à dita Senhora, que de todo foi fora de si e dos sentidos corporais, que nenhum sinal de vida ficou em ela, nem quentura natural, nem côr de rosto em ela nao ficou. Tal era o seu estado de depauperamento e de falta de forças que só com muito trabalho seu e força lhe davam algum pouco sumo de carne e água. Despede-se dos físicos e agradece-lhes tudo o que por ela fizeram, porque já não curava de mésinha corporal aqueles dias que bem sabia serem os postumeiros. Era verdade e confessava, desejara muito e trabalhara por remédios para viver. As horas finais aproximam-se e pede que lhe levantem mais a cabeça; começaram fortes dores no ventre, e a Infanta, olhando a Madre Prioresa, comentou: «ẽ ysto me comecou e nysto me quer acabar.»

O rosto começou a fazer-se-lhe mais formoso, a respiração tornou-se curta, rápida e entre cortada. No dia doze de Maio, às duas horas da madrugada, pediu baixinho que / 182 / dissessem a ladainha. Os seus olhos estavam abertos e dirigidos para o Alto, os seus lábios já não articulavam, e apenas um sopro balbuciado se esvaía deles, até que nesta madrugada tépida o último sopro de vida se lhe escoou do peito, e subitamente morreu como lamparina que se apaga por falta de combustível. O seu depauperamento devia ser profundo, e a desidratação devia ser notável, porque a somar às grandes perdas hídricas (por diarreia, vómitos e sudação) juntava-se ainda a circunstância de os médicos que a cuidavam, – naturalmente por imperativo da ciência da época – lhe negarem a água de que o seu organismo tanto precisava para, dentro do possível, compensar as perdas que permanentemente sofria. Além disto tudo, colhe-se do Memorial que a Infanta abusava das suas já exíguas possibilidades, para cumprir as suas devoções, levantando-se quase sem poder para assistir a missas, para comungar, etc. E estes factos devem ter concorrido para agravar os seus muitos padecimentos e para tornar mais sombrio o prognóstico.

O que se não encontra em todo o longo e profuso relato dado por Soror MARGARIDA PINHEIRO, é nada que faça pensar numa tuberculose pulmonar: nem tosse, nem expectoração, nem hemoptises se vêem referidas, pelo que do lado respiratório (salvo a dispneia com polipneia que deve ser considerada como em relação com a doença do tubo digestivo, por complicação posterior e quase final) nada se topa digno de ser valorizado como expressivo de qualquer entidade patológica pleuro-pulmonar ou tráqueo-brônquica. Tudo se passou à custa da cavidade abdominal, e sobretudo à custa do tubo digestivo, e os sintomas que ultrapassaram este âmbito parece terem surgido como complicações e não como antecedentes.

O diagnóstico da causa da morte da Infanta Santa Joana foi feito pelo Doutor FERNANDO DA SILVA CORREIA, que atribui essa responsabilidade a uma enterite tuberculosa. É defensável a hipótese, mas não há dúvida de que também tem flanco para sofrer algumas objecções. Assim, parece estarmos todos de acordo em que a localização tuberculosa entérica é quase sempre (senão sempre) secundária à localização pulmonar, e na maior parte dos casos até sucede apenas numa fase final da bacilose. Neste ponto reina o acordo entre os tratadistas, e assim já DIEULAFOY dizia que «raramente há ocasião de estudar a enterite tuberculosa a título de manifestação isolada, porque ela é quase sempre ligada à tísica pulmonar». E estas palavras do sábio clínico francês são ainda de uma actualidade que se encontra nos livros mais recentes de Patologia Médica. Ora, no decorrer das pesquisas bibliográficas que fizemos para a elaboração deste trabalho, nada nos permite provar (nem alegar) que demonstre / 183 / uma localização bacilar no aparelho respiratório de Santa Joana. Não quer isto dizer que não tenha existido uma forma latente, ou, pelo menos sem grandes manifestações clínicas, que conseguisse passar desapercebida aos débeis meios de diagnóstico da época. Mas o que é certo, é que a premissa da tuberculose pulmonar pré-existente falta para nos dar encosto ao diagnóstico de tuberculose intestinal. É certo que o mesmo Senhor Doutor FERNANDO CORREIA põe a hipótese da Infanta ter sido atacada de granúlia aos vinte e três anos de idade, mas esta hipótese não me parece muito de aceitar em virtude de que «quase cem por cento de los casos (de granúlia) acaban en la muerte» segundo o Prof. Doutor MANUEL TÁPIA. De modo que sem negarmos o diagnóstico com que aquele nosso ilustre colega e bom Amigo preencheu a certidão de óbito da filha do Africano, pomos estas objecções apenas como conferente mais humilde.

Entre as duas crises da doença decorrem pelo menos oito anos, o que não permite afirmar se elas traduzem duas poussées agudas de um estado crónico, ou se teriam antes constituído dois síndromos agudos ou sub-crónicos independentes. Porque a verdade é que, se tomarmos como duas agudizações de um mesmo estado crónico as crises de 1481 e de 1489, não podemos deixar de estranhar o longo silêncio em que se manteve uma enterite tuberculosa (oito anos), o que nos não parece muito verosímil. Mas há ainda outras razões, que nos parecem de ponderar: é que tanto a crise de 1481 como a de 1489 aparecem subitamente: a primeira a seguir à ingestão dum púcaro de água por um dia muito quente (facto que pode realmente ter uma acção desencadeante na eclosão duma enterite tuberculosa, embora não seja o comum), e a segunda, conforme o Memorial, iniciou-se à meia noite do dia 9 de Dezembro de 1489. E a freira até marca para início não apenas dia, mas até hora, o que faz pensar que nem pródromos foram constatados.

Fazem-se estas ligeiras reservas, não porque nós tenhamos material com que formular um diagnóstico etiológico, mas apenas porque nos parece melhor não resolver o problema duma assentada, do que forçar a nota num sentido afirmativo. E como o Senhor Doutor FERNANDO CORREIA deu a palavra a outros conferentes, julguei de meu dever deixar aqui estas dúvidas, que não pretendem de modo nenhum invalidar as conclusões dum Colega muito ilustre, mas apenas contribuir para o esclarecimento do problema.

Por nós, inclinamo-nos a ver nas duas crises mórbidas, antes duas entidades independentes, isto é, dois estados agudos ou sub-crónicos, embora enxertados em organismo que tinha o seu calcanhar de Aquiles no tubo digestivo, particularmente nos intestinos. Definir etiologicamente os dois / 184 / estados mórbidos em causa, isso não nos é possível fazer, por não dispormos de elementos que nos permitam ter tal arrojo. E antes queremos que se acuse este estudo de dubitativo, do que afirmar qualquer coisa que nos seja impossível demonstrar. Não negamos a enterite tuberculosa, mas não nos é possível estar convencido dela pelas razões que vagamente esboçámos, e por isso não temos o direito de pôr diagnósticos atingidos à nascença dos mesmos pontos vulneráveis.

Mas... falámos numa zona de menor resistência localizada no tubo digestivo, que nos parece justificada pelo predomínio que sempre têm os sintomas com localização neste departamento da economia, nos diversos episódios mórbidos da Infanta. Com efeito, os vómitos e a diarreia dominam completamente os quadros da primeira e da segunda crises, e estes factos cotejados com o aumento do volume do pescoço a que atrás fizemos referência, e que nos parece ser à custa da glândula tiróide, dão-nos uma certa coragem para pormos timidamente a hipótese de um hipertiroidismo. Na verdade, é conhecida a tendência destes doentes para as diarreias, que às vezes toma aspectos bastante graves. Por outro lado, são também atreitos à hiperidrose e à hipertermia constatados pelo menos na última crise. Aceite-se agora a enxertia duma enterite não específica neste terreno, condicionado por um possível hipertiroidismo, e poderia estar também neste caminho uma explicação para a causa da morte da Infanta. Não se julgue, nem por sombras, que esta hipótese pretende invalidar a justificação dada pelo ilustre Colega que formulou o diagnóstico da enterite tuberculosa, porque eu desejo apenas (como conferente mais humilde) pôr à meditação dos estudiosos um problema. De resto, lealmente quero declarar que ouvi sobre a hipótese dum bócio na filha do Africano opiniões de mestres, e que essas nem sempre foram favoráveis àquilo que a mim me pareceu ver. Assim, por um lado, o sábio Professor EGAS MONIZ, prémio Nobel da Medicina, em resposta ao que lhe pedi, diz: «pela fotografia da Tábua da Princesa julgo que se vê uma tumefacção na parte média e inferior do pescoço que pode ser um bócio. Não julgo todavia que, só por isso, se deva fazer o diagnóstico de bócio por hipertrofia da tiróide. Mas é um indício»; o Professor REINALDO DOS SANTOS diz-me: «parece-me arriscado diagnosticar um bócio no pescoço de Santa Joana, tanto mais que a modelação do retrato é bastante sumária para tomar como intencional e representando uma tiroideia aumentada, o que é apenas, e essencialmente representação do volume pelo desenho e não pelo claro escuro». Ora quanto a mim, e salvo o devido respeito pela opinião do ilustre patologista e notável crítico de arte, o sumarismo do retrato mais me faz admirar que o pintor / 185 / tenha dado volume e relevância a um pormenor desta natureza, quer tenha sido pelo desenho, quer tivesse sido pelo claro escuro. Mas também é certo que, como muito bem diz o ilustre Professor, «nós médicos, temos por vezes tendência a procurar doenças nos retratos pintados», e deste pecado dou eu a mão à palmatória, confessando o meu fraco de às vezes não ser capaz de me libertar do olho profissional, o que é mais uma desgraça deste ofício pesquisador de anormalidades, ou pelo menos, de desvios da normalidade.

O Prof. ROCHA BRITO, ilustre Catedrático de Clínica Médica da Universidade de Coimbra, por sua vez diz que se existem na história da Princesa elementos para fazer um diagnóstico de hipertiroidismo, pode responder em face do retrato que «O aspecto da Princesa, principalmente quanto ao volume do pescoço contribui para reforçar um tal diagnóstico, embora discretamente».

Eu, por mim, já me dou por satisfeito com o facto de sobre o assunto ter trazido o depoimento de três ilustres Professores, e se outro interesse não teve a hipótese que muito cuidadosamente formulei, alegro-me ao menos com a circunstância de ter conseguido reunir em conferência médica, à volta do retrato da Infanta, três físicos «bons e certos», nesta hora da comemoração do V centenário do nascimento da virtuosa filha do Africano. Só é pena que quem ouviu a opinião dos Mestres, não possa medir o metabolismo basal da doente... e não lhe possa pesquisar tremores, o que o seu afastamento físico não permite.

Como o leitor terá notado, não há conclusões definitivas neste trabalho. Humildemente se reconhece que o tom em que está escrito é dubitativo, mas também é verdade que desse tom não é possível sair com os elementos de que dispomos. De resto, tive apenas a intenção de trazer subsídios para uma nosografia, e desses elementos colher alguma coisa que contribuísse para um melhor conhecimento de Santa Joana. Não foi ideia minha preencher-lhe a certidão de óbito e suponho que não haverá médico que preencha tal papel por gosto, a não ser quando a distância dos anos e notabilidade do morto possam conferir algum interesse ao documento. Que venham depor mais conferentes, é o desejo com que encerro este trabalho, e que os que vierem tragam ensinamentos e contributos que conduzam à descoberta de verdades que derramem alguma luz sobre o conhecimento do conteúdo humano da virtuosa Princesa.

Vagos, Abril de 1952.

FREDERICO DE MOURA

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(1)Não podemos avaliar em que medida as repinturas sofridas pelo quadro possam ter modificado o aspecto do rosto. Apenas nos foi possível observar um positivo de um estudo radiográfico da tábua, inserto num trabalho do ilustre crítico de arte LUÍS REIS SANTOS, e que nos foi amavelmente cedido pelo nosso amigo Senhor Dr. Ferreira Neves, positivo, de resto, que nos não autoriza a afirmar que o rosto tenha sido alongado por virtude de obras de restauro; por outro lado, parece que houve modificação do rosto no sentido transversal, por adição, como observa, e muito bem, aquele ilustre crítico de arte quando diz que «o inchaço da face do lado direito, é posterior e de menor densidade».

(2)Vol. VII, pág. 283 de 1941, e em separata. 

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