LIGEIRAS NOTAS BIOGRÁFICAS
«As vivências psíquicas
determinam por um lado outras vivências psíquicas, e por outro lado
modificações corporais»
Prof. PAUL SCHIEDER
NÃO é de modo nenhum inútil num trabalho desta índole, que quem se
abalance a ele se debruce um pouco sobre a trajectória biográfica da
pessoa estudada, pois que, dos acidentes, dos relevos, das nuances da existência, muito se pode colher de útil para a compreensão e
interpretação de fenómenos nosológicos, e para o conhecimento das
ressonâncias que certos estados patológicos corporais têm na psique dos
padecentes, e mesmo para o estudo do mecanismo psicogéneo de certos
sintomas corporais, mormente hoje, em que a tendência psico-somática
invadiu um largo sector de médicos em todo o mundo. E quando o objecto
do estudo é, como no caso presente, uma
mística, muito maior importância é de atribuir a essas pesquisas, visto tratar-se de pessoas de vida espiritual intensa e
predominante, e por consequência mais susceptível de influenciar a
órbita do somático. Por todas estas razões ligeiramente apontadas,
achamos conveniente iniciar este contributo para uma nosografia da
Infanta Santa Joana por uma ligeira excursão sobre a sua vida, mormente
por aquela parte da sua vida que mais elementos nos pode trazer para a
compreensão da sua vivência religiosa, fenómeno capital (senão único
digno de nota) na filha do Africano.
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O rei de Portugal D. Afonso
V não tinha descendência,
e por isso sua mulher, a rainha D. Isabel, recolhia-se amiudadas vezes ao seu oratório, para implorar da protecção
divina a graça de ser mãe, e assim dar à Nação um herdeiro
do trono. E fazia-o «cõ muito fervor de devacã . offerecia
cõtinuadamẽte ao alto deus prezes E devotos sacrificios de oracões . pidindo lhe tevesse por bem lhe dar fructu de beẽcam
pera seu santo serviço . E soceder ho Regno.»(1) Os rogos
da rainha foram atendidos, e os desejos da Nação foram satisfeitos, porque passado algum tempo D. Isabel ficava grávida,
«E ẽ todos hos nove meses que andou prenhe sẽpre foy cõ
tanto prazer E sem ninhũa graveza nẽ pejo e door Como que
nõ trouvesse ẽ seu vẽtre carrega algũa que bẽ dava a demostrar qual avia de seer a que dele avia de nascer. Viindo o
tẽpo do parto E alomiãdo a deus paryo hũa filha a maes
fremosa e beela Criatura que neste mũdo podesse seer achada
e vista» como se diz na prosa saborosa e ingénua do memorial da Infanta(1).
Muito devota do Evangelista S. João, havia prometido
a rainha que a todos os filhos que tivesse daria o nome de
João, acrescentando que, ainda que cem tivesse, aos cem daria
o nome do Evangelista.
A 6 de Fevereiro do ano de 1452 nasceu em Lisboa aInfanta D. Joana, ainda no berço jurada princesa do Reino de Portugal,
não sei se pelos três Estados do Reino se não,
mas como tal ficou conhecida e ainda hoje o é. Se não foi
realmente jurada Princesa foi conhecida como tal, e assim
chamada, o que continua a suceder. O povo lhe chamou
Princesa sendo Infanta, o povo lhe chamou Santa sendo
Beata, isto é, o povo a jurou Princesa, o povo a canonizou.
Nasceu D. Joana, e três anos
depois nascia D. João, que
havia de vir a ser o grande rei que foi; a cem não deu a
rainha Isabel o nome de João, mas dando-o a dois estava
assegurada a continuidade dinástica, e pôde despedir-se do
mundo deixando nele dois notáveis filhos: um pela santidade, outro pelas grandes qualidades de chefe de estado de
que deu provas. Em 1456 despediu-se da vida D. Isabel,
deixando atrás de si crianças ainda (um com três anos, outro
com sete meses apenas), estes dois ilustres descendentes.
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[VoI. XVIII -
N.º 71 - 1952]
Morta a rainha, mandou D. Afonso
V que toda a sua casa (damas, donzelas
e outros oficiais) passassem para o serviço da Infanta, e assim se fez,
indo esta viver em palácio separado de seu pai e irmão.
Muito precocemente começou a dirigir a casa com tal ponderação e bom
senso, que causava a maior admiração
em todos, parecendo que a perda da mãe nenhuma falta lhe havia feito
para a sua formação e aprendizagem. Por outro lado, filha dum rei muito
ilustrado, a cultura da Infanta foi muito cuidada, facto a que talvez
também não tivesse sido
estranha a sua tendência natural. Muito novinha ainda
debruçava-se sobre as Vidas dos Santos, e muito particularmente sobre as
Vidas e Martírios das Virgens. Aos nove anos sabia já gramática,
aprendia letras e começava a entender latim. E assim, dentro das normas
de seu pai, o culto monarca D. Afonso V que dizia que «as ciências e a
sabedoria a nenhum outro bem se podem comparar», a educação e
a formação da Infanta foram modelares. Para estes primores de riqueza
cultural, alguma coisa deve também ter concorrido a colaboração de sua
tia D. Filipa de Lencastre, filha do Infante D. Pedro, virtuosa senhora
dotada de muito talento e bom gosto. Ao mesmo tempo que cuidava da sua
instrução, dirigia a Infanta à maravilha a sua casa onde passavam de
trinta todos os fidalgos, os quais «cõ nom menos sabedoria que sancta
Catherina Martyr Regiia e governava».
Manifestou também muito precocemente a
sua grande devoção, a ponto de
aos nove anos já demonstrar «hũ maravilhoso Resplandor de amor de deus.
E leixãdo outros desẽfadamẽtos que a dita Idade Requere . Comecou cõ
grãde atento aprẽder leteras e querer entẽder Latyn . E saber gramatyca».
Orava com tal fervor, que aos onze anos não parecia ter tão pouca idade,
mas antes vinte ou trinta, e não queria que ninguém a interrompesse
quando se encerrava no seu oratório. Aborrecia o mundo, e era na oração
que se libertava dele.
Mas a Infanta cresce, e cresce em anos e em formosura; o seu
desenvolvimento físico acompanha o seu progresso intelectual, e tendo
apenas quinze anos é uma mulher feita, parecendo ter vinte e cinco,
possuindo uma beleza tão adulta que leva a Corte a pensar no seu
casamento. Vários príncipes a pretendem e dentre eles o sereníssimo Luís XI, rei de França, primo de seu pai, e o Imperador da Alemanha, casado com
uma irmã de D. Afonso V. Retratos seus são enviados para as cortes da
Europa onde a sua formosura é apreciada
como merece, e do rei de França se diz que dobrou os joelhos perante
ela, espantado. Mas quanto mais lhe falavam em casamento, mais se dava a
devotas orações e disciplinas
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secretas, aprendendo a rezar o ofício divino segundo o
costume romano com o seu padre capelão «homẽ velho per Idade devoto e
muito amigo de deus . Leterado e bẽ entendido
e dilligẽte ẽ seu oficio». Tentava evitar toda a ociosidade,
todas as conversas e todos os prazeres, «veer e ouvir cousas
vãas e superfluas» como se diz na linguagem saborosa do
memorial. Ordenou, mesmo, que uma criada lhe comprasse
áspera estamenha e mandou fazer camisas, curtas das mangas
e estreitas do corpo, de maneira que as pudesse trazer debaixo dos
ricos vestidos que a sua condição lhe impunha, sem que
pudessem ser vistas nem presumidas; e além disso torturava a sua carne tenra e florida de adolescente (15 anos) com
cilícios
agressivos.
Nos seus paços nunca havia serões, e se vinham seu pai,
seu irmão, ou outros nobres, cobria então a sua figura gentil
de principescos vestidos e de pedrarias raras, que dissimulavam a agressiva camisa de lã e os torturantes cilícios que
lhe agrediam a carne jovem. E quando dançava com seu
pai, com seu irmão, ou com seu tio D. Fernando, mal presumiam eles que as suas pernas andavam apertadas com
ásperas tiras e faixas de «seedas de Rabos de boys e
bestas»; e quando já todos dormiam, a Infanta entrava no seu oratório a
fazer vigília, a orar fervorosamente e a fustigar o seu delicado corpo com disciplinas de corda, até que
vindo o sono invencível, a sua figurinha gentil desaparecia
da câmara principesca pelo alçapão que a conduzia à cama
dura e desconfortável, onde estendia a sua carne macerada de penitências
físicas.
Os seus olhos verdes só se gastavam sobre A PAIXÃO E
MORTE DE JESUS
CRISTO que sempre lhe provocava copioso
pranto, sobre as Vidas dos Santos e sobre as Vidas e Martírios das Virgens, e só destes assuntos falava sem querer ouvir outro género de conversas. Nunca mudava a camisa de lã, nem de dia nem de noite, nem de verão nem de inverno, até que já
«a nõ podia sofrer por a multidã dos
piolhos que criava cõ que era cõstrangida a tyrar e vestir
outra».
Mas nem só de orações, disciplinas e cilícios era feita
a sua devoção. Onde houvesse uma lágrima de que tivesse conhecimento, os seus dedos longos e brancos iam enxugá-la; onde
houvesse uma boca com fome, a sua ternura humana
ia apagá-la; onde houvesse um encarcerado, a sua bondade
ia dar-lhe um pouco de esperança; onde houvesse um enfermo, a sua
profunda caridade ia deixar cair um pingo de láudano.
Aos dezassete anos, quando a sua mão era insistentemente pedida pelo rei de França, a Infanta desabafava em
lágrimas e debruçava-se para seu consolo sobre os passos
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163 / da paixão de Cristo, que lhe arrancavam fundos suspiros e lamentosos
gemidos.
Durante toda a Semana Santa não falava, tinha permanentemente cilícios,
e em quinta e sexta-feira jejuava a pão e água, ouvindo todos os
ofícios. E em quinta-feira santa mandava que lhe trouxessem doze mulheres,
das mais pobres, das mais miseráveis, das mais andrajosas, e, de joelhos
em terra, as suas mãos belíssimas e delicadas lavavam-lhes os
pés, limpavam-lhos, a sua boca beijava-lhos até, sem que elas
soubessem quem tinha praticado aquele surpreendente acto de humildade,
com que a Infanta comemorava o episódio do lava-pés dos Apóstolos. E nos
alforges das miseráveis ia a
esmola generosa para a fome da boca, esmola que não tinha
comparação com a ternura humana dispendida em favor da angústia daquelas
vidas vazias e desconfortáveis.
Acerca da vocação para a vida monástica, as opiniões não são
concordantes e embora da leitura do códice quinhentista, que inclui
O Memorial da Infanta, de Soror MARGARIDA PINHEIRO(2), se tire a conclusão de que tudo nela foi, desde sempre, tendência
para a vida religiosa, os pareceres dos cronistas RUY DE PINA e DAMIÃO
DE GÓIS não corroboram completamente aquele conceito. Assim, o primeiro
opina que foi para o convento de Odivelas por imposição do pai, para
evitar escândalos e gastos exagerados, e o
segundo refere mesmo, no Nobiliário, a existência dum episódio amoroso com o fidalgo Duarte de Sousa, que D. Afonso
V mandara
degolar. Difícil se torna afirmar quem estará dentro
da razão, porque se por um lado RUI DE PINA e DAMIÃO DE GÓIS podem ter
exagerado as tintas, criando assim a suspeita dum romance de amor que
teria dado causa à entrada da Infanta em Odivelas, o relato de Soror
MARGARIDA PINHEIRO é de tal modo encomiástico e tendente a valorizar
sistematicamente as virtudes da Princesa, que pode na verdade a sua
admiração tê-la inibido de pesquisar e referir um filão, que ela
porventura nem teria sido capaz de presumir, na trajectória existencial
da sua biografada.
Seja porém como for, tenham razão
RUI DE PINA e DAMIÃO DE GÓIS ou esteja antes a razão do lado da boa freira, as excelsas virtudes da filha do Africano não ficam denegridas, e para a
tentativa da nosografia que iniciaremos adiante interessaria esclarecer
este problema, na medida apenas em que ele poderia trazer elementos para
o estudo psico-somático da Beata Joana. De resto, do que não há dúvidas,
é de que, quer a sua entrada em ambiente monástico tenha sido
voluntária,
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quer tenha sido imposta, a sua conduta foi sempre de profunda
religiosidade, de muita virtude, de muita bondade, e de que a sua
nobreza real se refugiou numa simples coroa de espinhos que adoptou como
divisa; de que as suas leituras eram exclusivamente leituras místicas
(os Evangelhos, Vidas
de Santos, etc.); de que tratava seu corpo com penitências físicas as
mais agressivas, de que a meditação da Paixão de Cristo lhe arrancava
lamentosos gemidos; de que cuidou muito precocemente da sua cultura,
mormente da cultura religiosa, e que este facto, embora estimulado pelo
seu culto Pai e por sua talentosa tia, se não pode justificar sem que na
Infanta tivesse existido tendência para essa cultura. Mas, sabe-se
mais ainda, que deitava o seu corpo em cama dura,
para o que saía secretamente do seu leito principesco, que usava camisa
de estamenha e que a não mudava nem de dia nem de noite, nem de verão
nem de inverno, até a não poder suportar pela infestação dos parasitas;
e sabe-se também que fugia o possível a festas mundanas, e que, quando
vestia os seus vestidos de gala, cobria com eles variados processos de
tortura para a sua carne e que ao regressar
aos seus aposentos se flagelava com disciplinas de corda e sangue.
Se não entrou para o convento voluntariamente, a imposição da sua
entrada encontrou nela um estado de receptividade, uma vocação tão
grande, que nada mais a arrancou
de lá, nem as razões de Estado, nem razões de afectividade familiar, nem
casamentos vantajosos, nem a voz fanhosa e autoritária de D. João lI,
seu irmão, nem a dialéctica dum
bispo a quem respondeu altivamente: – «sem dúvida venerável Prelado que
a paixão vos faz esquecer quem sois. Tanto obedeceis aos interesses
da
terra que não reparais em
ser infiel a um Deus só para lisongiar um príncipe»(3).
Não parece, pois, que para o caso que tenho entre mãos seja essencial
descortinar com clareza as causas porque transpôs a portaria de um
convento pela primeira vez, desde que parece não haver dúvidas de que lá
dentro encontrou
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165 / o ambiente que passou a viver voluntariamente e para cuja manutenção
teve até de lutar.
Se houve romance de amor, se
sim ou não um sapato de D. Duarte de Sousa foi encontrado nos paços da
Infanta, não é indiferente para um melhor conhecimento psico-somático da
estudada neste trabalho, e nós aceitamo-lo como certo, por não nos dizer respeito a nós, que não temos
competência para a investigação histórica, vir agora aqui discuti-lo, e
porque ele não toca nem diminui nada a admiração que temos pela virtuosa
filha do Africano.
Repare o leitor que se interrompe aqui o ligeiro esboço biográfico,
feito apenas na medida em que dele se podem tirar algumas achegas para o
conhecimento psicológico da Infanta, porque a verdade é que, daqui para
diante, e sobretudo depois da sua entrada no convento de Jesus de
Aveiro, a sua vida foi a vida duma freira não professa, que seguia
rigorosamente todas as determinações da Regra, que refinou na sua
devoção e na sua virtude, e cuja vocação resistiu mesmo quando seu
irmão, D. João II, entrou irado pela porta do convento, falou
asperamente à Prioresa animado da ideia de arrancar a irmã à clausura, e
cuja voz fanhosa e ríspida, servindo o seu autoritarismo soberano, veio
a vacilar, a ceder e a diluir-se em frente das razões de consciência,
da bondade e da mansidão da excelsa Princesa, que logrou convencê-lo de
que o seu lugar era ali, ao serviço do seu Deus e da sua fé.
Retomaremos o auxílio de Soror MARGARIDA PINHEIRO mais adiante, quando
verdadeiramente precisarmos dos dados nosológicos, de que a história
clínica que fez da doença da Infanta é o mais útil repositório. Para uma
boa história clínica, no conceito das novas tendências da medicina, é
indispensável o conhecimento da história humana, dos conflitos
emocionais, das inquietações, das angústias, numa palavra, da vida
anímica que exerce uma poderosa influência sobre a patologia dos órgãos
e dos aparelhos, e mais ainda sobre .a patologia chamada funcional.
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FREDERICO DE MOURA |