Frederico de Moura, Nosografia da Infanta Santa Joana, Vol. XVIII, pp. 159-185.

ALGUNS SUBSÍDIOS PARA

UMA NOSOGRAFIA DA

INFANTA SANTA JOANA

LIGEIRAS NOTAS BIOGRÁFICAS

«As vivências psíquicas determinam por um lado outras vivências psíquicas, e por outro lado modificações corporais»

Prof. PAUL SCHIEDER

NÃO é de modo nenhum inútil num trabalho desta índole, que quem se abalance a ele se debruce um pouco sobre a trajectória biográfica da pessoa estudada, pois que, dos acidentes, dos relevos, das nuances da existência, muito se pode colher de útil para a compreensão e interpretação de fenómenos nosológicos, e para o conhecimento das ressonâncias que certos estados patológicos corporais têm na psique dos padecentes, e mesmo para o estudo do mecanismo psicogéneo de certos sintomas corporais, mormente hoje, em que a tendência psico-somática invadiu um largo sector de médicos em todo o mundo. E quando o objecto do estudo é, como no caso presente, uma mística, muito maior importância é de atribuir a essas pesquisas, visto tratar-se de pessoas de vida espiritual intensa e predominante, e por consequência mais susceptível de influenciar a órbita do somático. Por todas estas razões ligeiramente apontadas, achamos conveniente iniciar este contributo para uma nosografia da Infanta Santa Joana por uma ligeira excursão sobre a sua vida, mormente por aquela parte da sua vida que mais elementos nos pode trazer para a compreensão da sua vivência religiosa, fenómeno capital (senão único digno de nota) na filha do Africano. / 160 /

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O rei de Portugal D. Afonso V não tinha descendência, e por isso sua mulher, a rainha D. Isabel, recolhia-se amiudadas vezes ao seu oratório, para implorar da protecção divina a graça de ser mãe, e assim dar à Nação um herdeiro do trono. E fazia-o «cõ muito fervor de devacã . offerecia cõtinuadamẽte ao alto deus prezes E devotos sacrificios de oracões . pidindo lhe tevesse por bem lhe dar fructu de beẽcam pera seu santo serviço . E soceder ho Regno.»(1) Os rogos da rainha foram atendidos, e os desejos da Nação foram satisfeitos, porque passado algum tempo D. Isabel ficava grávida, «E ẽ todos hos nove meses que andou prenhe sẽpre foy cõ tanto prazer E sem ninhũa graveza nẽ pejo e door Como que nõ trouvesse ẽ seu vẽtre carrega algũa que bẽ dava a demostrar qual avia de seer a que dele avia de nascer. Viindo o tẽpo do parto E alomiãdo a deus paryo hũa filha a maes fremosa e beela Criatura que neste mũdo podesse seer achada e vista» como se diz na prosa saborosa e ingénua do memorial da Infanta(1).

Muito devota do Evangelista S. João, havia prometido a rainha que a todos os filhos que tivesse daria o nome de João, acrescentando que, ainda que cem tivesse, aos cem daria o nome do Evangelista.

A 6 de Fevereiro do ano de 1452 nasceu em Lisboa aInfanta D. Joana, ainda no berço jurada princesa do Reino de Portugal, não sei se pelos três Estados do Reino se não, mas como tal ficou conhecida e ainda hoje o é. Se não foi realmente jurada Princesa foi conhecida como tal, e assim chamada, o que continua a suceder. O povo lhe chamou Princesa sendo Infanta, o povo lhe chamou Santa sendo Beata, isto é, o povo a jurou Princesa, o povo a canonizou.

Nasceu D. Joana, e três anos depois nascia D. João, que havia de vir a ser o grande rei que foi; a cem não deu a rainha Isabel o nome de João, mas dando-o a dois estava assegurada a continuidade dinástica, e pôde despedir-se do mundo deixando nele dois notáveis filhos: um pela santidade, outro pelas grandes qualidades de chefe de estado de que deu provas. Em 1456 despediu-se da vida D. Isabel, deixando atrás de si crianças ainda (um com três anos, outro com sete meses apenas), estes dois ilustres descendentes. / 161 / [VoI. XVIII - N.º 71 - 1952]

Morta a rainha, mandou D. Afonso V que toda a sua casa (damas, donzelas e outros oficiais) passassem para o serviço da Infanta, e assim se fez, indo esta viver em palácio separado de seu pai e irmão.

Muito precocemente começou a dirigir a casa com tal ponderação e bom senso, que causava a maior admiração em todos, parecendo que a perda da mãe nenhuma falta lhe havia feito para a sua formação e aprendizagem. Por outro lado, filha dum rei muito ilustrado, a cultura da Infanta foi muito cuidada, facto a que talvez também não tivesse sido estranha a sua tendência natural. Muito novinha ainda debruçava-se sobre as Vidas dos Santos, e muito particularmente sobre as Vidas e Martírios das Virgens. Aos nove anos sabia já gramática, aprendia letras e começava a entender latim. E assim, dentro das normas de seu pai, o culto monarca D. Afonso V que dizia que «as ciências e a sabedoria a nenhum outro bem se podem comparar», a educação e a formação da Infanta foram modelares. Para estes primores de riqueza cultural, alguma coisa deve também ter concorrido a colaboração de sua tia D. Filipa de Lencastre, filha do Infante D. Pedro, virtuosa senhora dotada de muito talento e bom gosto. Ao mesmo tempo que cuidava da sua instrução, dirigia a Infanta à maravilha a sua casa onde passavam de trinta todos os fidalgos, os quais «cõ nom menos sabedoria que sancta Catherina Martyr Regiia e governava».

Manifestou também muito precocemente a sua grande devoção, a ponto de aos nove anos já demonstrar «hũ maravilhoso Resplandor de amor de deus. E leixãdo outros desẽfadamẽtos que a dita Idade Requere . Comecou cõ grãde atento aprẽder leteras e querer entẽder Latyn . E saber gramatyca».

Orava com tal fervor, que aos onze anos não parecia ter tão pouca idade, mas antes vinte ou trinta, e não queria que ninguém a interrompesse quando se encerrava no seu oratório. Aborrecia o mundo, e era na oração que se libertava dele.

Mas a Infanta cresce, e cresce em anos e em formosura; o seu desenvolvimento físico acompanha o seu progresso intelectual, e tendo apenas quinze anos é uma mulher feita, parecendo ter vinte e cinco, possuindo uma beleza tão adulta que leva a Corte a pensar no seu casamento. Vários príncipes a pretendem e dentre eles o sereníssimo Luís XI, rei de França, primo de seu pai, e o Imperador da Alemanha, casado com uma irmã de D. Afonso V. Retratos seus são enviados para as cortes da Europa onde a sua formosura é apreciada como merece, e do rei de França se diz que dobrou os joelhos perante ela, espantado. Mas quanto mais lhe falavam em casamento, mais se dava a devotas orações e disciplinas / 162 / secretas, aprendendo a rezar o ofício divino segundo o costume romano com o seu padre capelão «homẽ velho per Idade devoto e muito amigo de deus . Leterado e bẽ entendido e dilligẽte ẽ seu oficio». Tentava evitar toda a ociosidade, todas as conversas e todos os prazeres, «veer e ouvir cousas vãas e superfluas» como se diz na linguagem saborosa do memorial. Ordenou, mesmo, que uma criada lhe comprasse áspera estamenha e mandou fazer camisas, curtas das mangas e estreitas do corpo, de maneira que as pudesse trazer debaixo dos ricos vestidos que a sua condição lhe impunha, sem que pudessem ser vistas nem presumidas; e além disso torturava a sua carne tenra e florida de adolescente (15 anos) com cilícios agressivos.

Nos seus paços nunca havia serões, e se vinham seu pai, seu irmão, ou outros nobres, cobria então a sua figura gentil de principescos vestidos e de pedrarias raras, que dissimulavam a agressiva camisa de lã e os torturantes cilícios que lhe agrediam a carne jovem. E quando dançava com seu pai, com seu irmão, ou com seu tio D. Fernando, mal presumiam eles que as suas pernas andavam apertadas com ásperas tiras e faixas de «seedas de Rabos de boys e bestas»; e quando já todos dormiam, a Infanta entrava no seu oratório a fazer vigília, a orar fervorosamente e a fustigar o seu delicado corpo com disciplinas de corda, até que vindo o sono invencível, a sua figurinha gentil desaparecia da câmara principesca pelo alçapão que a conduzia à cama dura e desconfortável, onde estendia a sua carne macerada de penitências físicas.

Os seus olhos verdes só se gastavam sobre A PAIXÃO E MORTE DE JESUS CRISTO que sempre lhe provocava copioso pranto, sobre as Vidas dos Santos e sobre as Vidas e Martírios das Virgens, e só destes assuntos falava sem querer ouvir outro género de conversas. Nunca mudava a camisa de lã, nem de dia nem de noite, nem de verão nem de inverno, até que já «a nõ podia sofrer por a multidã dos piolhos que criava cõ que era cõstrangida a tyrar e vestir outra».

Mas nem só de orações, disciplinas e cilícios era feita a sua devoção. Onde houvesse uma lágrima de que tivesse conhecimento, os seus dedos longos e brancos iam enxugá-la; onde houvesse uma boca com fome, a sua ternura humana ia apagá-la; onde houvesse um encarcerado, a sua bondade ia dar-lhe um pouco de esperança; onde houvesse um enfermo, a sua profunda caridade ia deixar cair um pingo de láudano.

Aos dezassete anos, quando a sua mão era insistentemente pedida pelo rei de França, a Infanta desabafava em lágrimas e debruçava-se para seu consolo sobre os passos / 163 / da paixão de Cristo, que lhe arrancavam fundos suspiros e lamentosos gemidos.

Durante toda a Semana Santa não falava, tinha permanentemente cilícios, e em quinta e sexta-feira jejuava a pão e água, ouvindo todos os ofícios. E em quinta-feira santa mandava que lhe trouxessem doze mulheres, das mais pobres, das mais miseráveis, das mais andrajosas, e, de joelhos em terra, as suas mãos belíssimas e delicadas lavavam-lhes os pés, limpavam-lhos, a sua boca beijava-lhos até, sem que elas soubessem quem tinha praticado aquele surpreendente acto de humildade, com que a Infanta comemorava o episódio do lava-pés dos Apóstolos. E nos alforges das miseráveis ia a esmola generosa para a fome da boca, esmola que não tinha comparação com a ternura humana dispendida em favor da angústia daquelas vidas vazias e desconfortáveis.

 

Acerca da vocação para a vida monástica, as opiniões não são concordantes e embora da leitura do códice quinhentista, que inclui O Memorial da Infanta, de Soror MARGARIDA PINHEIRO(2), se tire a conclusão de que tudo nela foi, desde sempre, tendência para a vida religiosa, os pareceres dos cronistas RUY DE PINA e DAMIÃO DE GÓIS não corroboram completamente aquele conceito. Assim, o primeiro opina que foi para o convento de Odivelas por imposição do pai, para evitar escândalos e gastos exagerados, e o segundo refere mesmo, no Nobiliário, a existência dum episódio amoroso com o fidalgo Duarte de Sousa, que D. Afonso V mandara degolar. Difícil se torna afirmar quem estará dentro da razão, porque se por um lado RUI DE PINA e DAMIÃO DE GÓIS podem ter exagerado as tintas, criando assim a suspeita dum romance de amor que teria dado causa à entrada da Infanta em Odivelas, o relato de Soror MARGARIDA PINHEIRO é de tal modo encomiástico e tendente a valorizar sistematicamente as virtudes da Princesa, que pode na verdade a sua admiração tê-la inibido de pesquisar e referir um filão, que ela porventura nem teria sido capaz de presumir, na trajectória existencial da sua biografada.

Seja porém como for, tenham razão RUI DE PINA e DAMIÃO DE GÓIS ou esteja antes a razão do lado da boa freira, as excelsas virtudes da filha do Africano não ficam denegridas, e para a tentativa da nosografia que iniciaremos adiante interessaria esclarecer este problema, na medida apenas em que ele poderia trazer elementos para o estudo psico-somático da Beata Joana. De resto, do que não há dúvidas, é de que, quer a sua entrada em ambiente monástico tenha sido voluntária, / 164 / quer tenha sido imposta, a sua conduta foi sempre de profunda religiosidade, de muita virtude, de muita bondade, e de que a sua nobreza real se refugiou numa simples coroa de espinhos que adoptou como divisa; de que as suas leituras eram exclusivamente leituras místicas (os Evangelhos, Vidas de Santos, etc.); de que tratava seu corpo com penitências físicas as mais agressivas, de que a meditação da Paixão de Cristo lhe arrancava lamentosos gemidos; de que cuidou muito precocemente da sua cultura, mormente da cultura religiosa, e que este facto, embora estimulado pelo seu culto Pai e por sua talentosa tia, se não pode justificar sem que na Infanta tivesse existido tendência para essa cultura. Mas, sabe-se mais ainda, que deitava o seu corpo em cama dura, para o que saía secretamente do seu leito principesco, que usava camisa de estamenha e que a não mudava nem de dia nem de noite, nem de verão nem de inverno, até a não poder suportar pela infestação dos parasitas; e sabe-se também que fugia o possível a festas mundanas, e que, quando vestia os seus vestidos de gala, cobria com eles variados processos de tortura para a sua carne e que ao regressar aos seus aposentos se flagelava com disciplinas de corda e sangue.

Se não entrou para o convento voluntariamente, a imposição da sua entrada encontrou nela um estado de receptividade, uma vocação tão grande, que nada mais a arrancou de lá, nem as razões de Estado, nem razões de afectividade familiar, nem casamentos vantajosos, nem a voz fanhosa e autoritária de D. João lI, seu irmão, nem a dialéctica dum bispo a quem respondeu altivamente: – «sem dúvida venerável Prelado que a paixão vos faz esquecer quem sois. Tanto obedeceis aos interesses da terra que não reparais em ser infiel a um Deus só para lisongiar um príncipe»(3).

Não parece, pois, que para o caso que tenho entre mãos seja essencial descortinar com clareza as causas porque transpôs a portaria de um convento pela primeira vez, desde que parece não haver dúvidas de que lá dentro encontrou / 165 / o ambiente que passou a viver voluntariamente e para cuja manutenção teve até de lutar.

Se houve romance de amor, se sim ou não um sapato de D. Duarte de Sousa foi encontrado nos paços da Infanta, não é indiferente para um melhor conhecimento psico-somático da estudada neste trabalho, e nós aceitamo-lo como certo, por não nos dizer respeito a nós, que não temos competência para a investigação histórica, vir agora aqui discuti-lo, e porque ele não toca nem diminui nada a admiração que temos pela virtuosa filha do Africano.

Repare o leitor que se interrompe aqui o ligeiro esboço biográfico, feito apenas na medida em que dele se podem tirar algumas achegas para o conhecimento psicológico da Infanta, porque a verdade é que, daqui para diante, e sobretudo depois da sua entrada no convento de Jesus de Aveiro, a sua vida foi a vida duma freira não professa, que seguia rigorosamente todas as determinações da Regra, que refinou na sua devoção e na sua virtude, e cuja vocação resistiu mesmo quando seu irmão, D. João II, entrou irado pela porta do convento, falou asperamente à Prioresa animado da ideia de arrancar a irmã à clausura, e cuja voz fanhosa e ríspida, servindo o seu autoritarismo soberano, veio a vacilar, a ceder e a diluir-se em frente das razões de consciência, da bondade e da mansidão da excelsa Princesa, que logrou convencê-lo de que o seu lugar era ali, ao serviço do seu Deus e da sua fé.

Retomaremos o auxílio de Soror MARGARIDA PINHEIRO mais adiante, quando verdadeiramente precisarmos dos dados nosológicos, de que a história clínica que fez da doença da Infanta é o mais útil repositório. Para uma boa história clínica, no conceito das novas tendências da medicina, é indispensável o conhecimento da história humana, dos conflitos emocionais, das inquietações, das angústias, numa palavra, da vida anímica que exerce uma poderosa influência sobre a patologia dos órgãos e dos aparelhos, e mais ainda sobre .a patologia chamada funcional.

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FREDERICO DE MOURA

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(1) Crónica da fundação do Mosteiro de Jesus, de Aveiro, e memorial da Infanta Santa Joana filha del Rei Dom Afonso V (códice quinhentista). Leitura, revisão e prefácio de ANTÓNIO GOMES DA ROCHA MADAHIL, Aveiro, 1939, pág. 76.

(2)Ob. cit. 

(3) − Quando já se encontrava na tipografia o presente trabalho, foi-nos facultado pelo nosso prezado amigo Dr. António Cristo, um trabalho do Sr. A. J. DIAS DENlS, inserto na Colectânea de Estudos, n.º 2, da série lI, correspondente a Maio do ano corrente, onde se publica um documento em que D. Afonso V responde a uma reclamação contra a entrada da Santa Joana na vida religiosa, o qual muita luz vem derramar sobre o assunto, e parece demonstrar que o monarca não teve quaisquer responsabilidades na entrada de sua filha para Odivelas. Lê-se ali, por exemplo. a seguinte frase que parece explícita: «E he verdade que de algũs dias aca a teençam do iffante minha filha foy entrar em Rellegian, e nollo rrequereo per muytas vezes com grande jnstançia. E nos lho contradissemos quanto com rrazam devyamos.»

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