Soares da Graça, Auto da Infanta Dona Joana, Vol. XVIII, pp. 107-158.

AUTO DA INFANTA DONA JOANA, FILHA DO REI «AFRICANO»

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ACTO II

QUADRO IV

   

       A cena representa a Sala do Labor, no Mosteiro de Jesus – onde morreu a Princesa. O leito fica arrumado a um lado, mas com espaço bastante para ficarem à volta dele algumas freiras, enquanto outras, de joelhos, – no maior número – se vêem espalhadas por todo o aposento. A INFANTA está meio sentada, amparada por uma freira, enquanto outra, da parte de trás, segura uma almofada grande, a que Ela se apoia, tudo de conformidade com a tela que soe vê ainda hoje na cela da Infanta, no velho Convento. Retábulo com a cópia do quadro do Museu de Aveiro representando a Virgem a amamentar o Menino, que a Infanta teve perante si, num altar que mandou armar no quarto. Luz mortiça, de candeia.

INFANTA

        (Primeiro, só, com Margarida Pinheiro. Em voz muito débil, para Margarida Pinheiro, que está junto dela, e apontando-lhe a custo, com a mão, para o cofre que se vê junto de outros objectos, sobre uma arca, a um canto da sala)

Trazei.. e lêde-me vós... agora, o testamento
Que ontem naquele cofre me haveis guardado:
Estou a sentir-me hoje com mais algum alento...
Pois não me lembro se nele hei bem declarado
As jóias para Dom Jorge... que criei com tanto amor!...
De vós, Irmãs... e deste meu sobrinho amado,
A saudade é agudo espinho, que aviva a minha dor!...

MARGARIDA PINHEIRO

        (Pega na candeia e vai buscar o pergaminho. Desenrola-o e lê muito devagar:)

«Esta he minha derradeyra võotade, Faço herdeyra minha alma de tudo o que me pertẽece e pode pertẽecer ẽ esta maneyra que deixo tudo ao moesteyro de Jhesu. Item as doações que cõ este se acharã scryptas per my / 155 / cõpram sse. E assy as divydas que for certo que devo item aos que tenho dados alvaraes de Casamẽtos dem lhos Item aos que foram tomados per my des que estou ẽ aaveyro.

E mais des este tẽpo a Johã lopez ho doutor, minha ama brityz alvarez, Jorge da Silva que ham moradias deI rrey meu Senhor, a todos assy aos que tomey como estes, paguẽ sse por cada anno ho que mõta no terço de suas moradias. item Escravos e escravas, seus filhos e filhas e descẽdentes, hos cristaãos e cristãas, ey os por forros. Item ho Roby grãde do anel, / 156 / ao principe meu Senhor. Item a meu sobrinho ho pendẽte das tres pedras e ho pendẽte da esmeralda. Item aa Senhora minha tya ho vulto»...

        (Desperta um pouco ao ouvir ler a disposição das jóias)

Está bem... está bem... enrolai-o agora novamente...
pizei isto mesmo a nossa Madre... quando ela voltar.
É para se cumprir assim... firme, inteiramente;
Do meu corpo... se fará depois o que ela ordenar...

        (Por indicação da Princesa, sai uma das freiras a chamar os frades, que logo aparecem; abeiram-se do leito da Infanta. Ela, que os pressente, fala-lhes logo. Voz sufocada, mal se lhe per'cebendo as palavras, que vão diminuindo gradualmente de intensidade, até que Ela descai para o lado.)

Padres... boas Irmãs... Não me deixeis agora...
De todos... mui em breve. .. bem eu hei de precisar...
Sinto que se aproxima mui velozmente a minha hora...

       (Num esforço, a custo)

Roguem por... mim, a Deus... Não parem de rezar!...

        (Um dos frades segura-lhe a mão com o círio bento, enquanto o outro recita, pelo livro, a Ladainha de todos os Santos, dois ou três nomes antes da invocação dos Santos Inocentes.)

FREI JOÃO DIAS

        Fecha o livro, por momentos. Para as freiras, em voz baixa, curvando-se para elas:

O seu passamento... agora... muito se avizinha!...
Já mal se lhe distingue o débil bater do coração...
Continuemos... como Ela pediu... a Ladainha...
Bem acertou... quando quis a Extrema-Unção!...

(Vai lendo:) Omnes Sancti Apostoli et Evangelistae.
(Todos): Orate pro nobis. Omnes Sancti Inocentes.

        Debruça-se sobre o leito, para logo se afastar um pouco. Fecha o livro, que coloca ali mesmo, no leito. Serenamente, voltado para os circunstantes:

Acabou mesmo agora... rezando... em brando ciciar...
Estanquemos nossa dor; reprimi – Irmãs – o vosso choro:
Já está junto de Deus... as suas Glórias a cantar,
E aos anjos se juntou, para com eles formar coro...  
/ 157 /

        (Afasta-se um pouco, para, de braços abertos, declamar, em voz alta, com viva emoção, ao mesmo tempo que o sino do Convento dobra, compassadamente, a finados, pois, mal fora anunciada a morte da INFANTA, uma das freiras sai para ser dado o sinal. No meio das Freiras, com a mais sentida expressão.)

Da maior abnegação vós destes larga prova;
Essas vossas lágrimas... já não tem lugar:
Pois... se vai abrir-se aí, mais uma negra cova,
Vai erguer-se também um doirado altar!...

        (Após uma leve pausa, caminhando até à varanda, evocando, em dolorido acento)

E aquele sino, que pr'á oração tão cedo a despertava,
Agora... em dolorida toada, por estes recantos ecoa!...
E alvoroçou já a terra... a que tanta vez chamava
Mui graciosamente: «a sua pequena Lisboa»!...
(1)
Não voltará mais... daqui... deste airoso mirante,
A olhar a sua Vila, beijada pelo sol do amanhecer....
Nem a escutar o marulhar das ondas... no mar distante
À hora a que os barcos voltam à Ribeira... a recolher...

        (Voltando-se para todos os presentes, falando para dentro, sentidamente.)

Cantemos todos... nesta suave abalada,
Os hinos mais sentidos de Glória ao Senhor!
A alma da INFANTA... foi já purificada!...
Acabou – para sempre! – o seu Calvário e dor!...

        (O sino continua a dobrar a sinais. Ouvem-se, sumidamente, os coros próprios de responsos. As freiras descem os véus a tapar-lhes o rosto. Frei João Dias aproxima-se novamente da varanda, e, meio voltado para fora, de braços abertos, empolgante, numa vibrante e alta expressão dramática, declama na direcção, ora da igreja de Santa Maria da Misericórdia, ora da igreja de S. Miguel, já existentes ao tempo.)


Ó sinos d'Aveiro!... Dobrai todos... bem alto!... a sinais!...
Que toda a gente saiba que a Princesa já morreu...
Chega e o vosso eco... a todos aqueles afastados casais,
Onde moram esses pobres, que Ela sempre protegeu!... 
/ 158 /

Túmulo de mármore que encerra o corpo da Infanta - Museu Regional de Aveiro

        (Numa súplica, de emocionante acento.)

E logo... ao cair da tarde... quando a forem enterrar,
Que ninguém falte aí!... Vinde todos ao Mosteiro:
Para a sepultura humilde de lágrimas lhe orvalhar.
E para dizer-lhe – de joelhos! – ... o adeus derradeiro!...

FIM

SOARES DA GRAÇA

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(1)Memorial, pág. 177. A Princesa faleceu no dia 12 de Maio de 1490 e foi sepultada no chão do coro de baixo.

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