◄◄◄
/ 154 /
A cena representa a Sala do Labor, no Mosteiro de Jesus – onde morreu a Princesa. O leito fica arrumado
a um lado, mas com espaço bastante para ficarem à volta
dele algumas freiras, enquanto outras, de joelhos, – no
maior número – se vêem espalhadas por todo o aposento. A INFANTA está
meio sentada, amparada por uma freira,
enquanto outra, da parte de trás, segura uma almofada
grande, a que Ela se apoia, tudo de conformidade com a
tela que soe vê ainda hoje na cela da Infanta, no velho
Convento. Retábulo com a cópia do quadro do Museu de Aveiro
representando a Virgem a amamentar o Menino,
que a Infanta teve perante si, num altar que mandou
armar no quarto. Luz mortiça, de candeia.
INFANTA
(Primeiro, só, com Margarida Pinheiro.
Em voz muito débil, para Margarida Pinheiro, que
está junto dela, e apontando-lhe a custo, com a mão, para
o cofre que se vê junto de outros objectos, sobre uma
arca, a um canto da sala)
Trazei.. e lêde-me vós... agora, o testamento
Que ontem naquele cofre me haveis guardado:
Estou a sentir-me hoje com mais algum alento...
Pois não me lembro se nele hei bem declarado
As jóias para Dom Jorge... que criei com tanto amor!...
De vós, Irmãs... e deste meu sobrinho amado,
A saudade é agudo espinho, que aviva a minha dor!...
MARGARIDA PINHEIRO
(Pega na candeia e vai buscar o pergaminho. Desenrola-o e lê muito
devagar:)
«Esta he minha derradeyra võotade, Faço herdeyra minha alma de tudo o
que me pertẽece e pode pertẽecer ẽ esta maneyra que deixo tudo ao
moesteyro de Jhesu. Item as doações que cõ este se acharã scryptas per
my
/
155 /
cõpram sse. E assy as divydas que for certo que devo item aos que tenho dados alvaraes de Casamẽtos dem lhos
Item aos que
foram tomados per my des que estou ẽ aaveyro.
E mais des este tẽpo a Johã lopez ho doutor, minha ama brityz alvarez, Jorge da Silva que ham
moradias deI rrey meu Senhor, a todos assy aos que
tomey como estes, paguẽ sse por cada anno ho que mõta no terço de suas
moradias. item Escravos e escravas, seus filhos e filhas e descẽdentes,
hos cristaãos e cristãas, ey os por forros. Item ho Roby grãde do anel,
/
156 /
ao principe meu Senhor. Item a meu sobrinho ho pendẽte das tres pedras e
ho pendẽte da esmeralda. Item aa Senhora minha tya ho vulto»...
(Desperta um pouco ao ouvir ler a disposição das jóias)
Está bem... está bem... enrolai-o agora novamente...
pizei isto mesmo a nossa Madre... quando ela voltar.
É para se cumprir assim... firme, inteiramente;
Do meu corpo... se fará
depois o que ela ordenar...
(Por indicação da Princesa, sai uma das freiras a chamar os frades, que
logo aparecem; abeiram-se do leito da Infanta. Ela, que os pressente, fala-lhes
logo. Voz sufocada, mal se
lhe per'cebendo as palavras, que vão diminuindo gradualmente de
intensidade, até que Ela descai para o lado.)
Padres... boas Irmãs... Não me deixeis agora...
De todos... mui em breve. .. bem eu hei de precisar...
Sinto que se
aproxima mui velozmente a minha hora...
(Num esforço, a custo)
Roguem por... mim, a Deus... Não parem de rezar!...
(Um dos frades segura-lhe a mão com o círio bento,
enquanto o outro recita, pelo livro, a Ladainha de todos os Santos, dois
ou três nomes antes da invocação dos Santos Inocentes.)
FREI JOÃO DIAS
Fecha o livro, por momentos. Para as freiras, em voz baixa, curvando-se
para elas:
O seu passamento... agora... muito se avizinha!...
Já mal se lhe distingue o débil bater do coração...
Continuemos... como Ela pediu... a Ladainha...
Bem acertou... quando quis a Extrema-Unção!...
(Vai lendo:) Omnes Sancti Apostoli et Evangelistae.
(Todos): Orate pro nobis. Omnes Sancti Inocentes.
Debruça-se sobre o leito, para logo se afastar um
pouco. Fecha o livro, que coloca ali mesmo, no leito. Serenamente,
voltado para os circunstantes:
Acabou mesmo agora... rezando... em brando ciciar...
Estanquemos
nossa dor; reprimi – Irmãs – o vosso choro:
Já está junto de Deus... as
suas Glórias a cantar,
E aos anjos se juntou, para com eles formar coro...
/
157 /
(Afasta-se um pouco, para, de braços abertos, declamar, em voz alta, com
viva emoção, ao mesmo tempo que
o sino do Convento dobra, compassadamente, a finados,
pois, mal fora anunciada a morte da INFANTA, uma das freiras sai para ser
dado o sinal. No meio das Freiras, com
a mais sentida expressão.)
Da maior abnegação vós destes larga prova;
Essas vossas lágrimas... já não tem lugar:
Pois... se vai abrir-se aí, mais uma negra cova,
Vai erguer-se também um doirado altar!...
(Após uma leve pausa, caminhando até à varanda, evocando, em dolorido
acento)
E aquele sino, que pr'á oração tão cedo a despertava,
Agora... em
dolorida toada, por estes recantos ecoa!...
E alvoroçou já a terra... a que tanta vez chamava
Mui graciosamente: «a sua pequena Lisboa»!...
(1)
Não voltará mais... daqui... deste airoso mirante,
A olhar a sua Vila, beijada pelo sol do amanhecer....
Nem a escutar o marulhar das ondas... no mar distante
À hora a que os barcos voltam à Ribeira... a recolher...
(Voltando-se para todos os presentes, falando para dentro, sentidamente.)
Cantemos todos... nesta suave abalada,
Os hinos mais sentidos de Glória ao Senhor!
A alma da INFANTA... foi já purificada!...
Acabou – para sempre! – o seu Calvário e dor!...
(O sino continua a dobrar a sinais. Ouvem-se, sumidamente, os coros
próprios de responsos. As freiras descem os véus a tapar-lhes o rosto.
Frei João Dias aproxima-se novamente da varanda, e, meio voltado
para fora, de braços abertos, empolgante, numa vibrante e alta
expressão dramática, declama na direcção, ora da igreja de Santa Maria
da Misericórdia, ora da igreja de S. Miguel, já existentes ao tempo.)
Ó sinos d'Aveiro!... Dobrai todos... bem alto!... a sinais!...
Que toda a gente saiba que a Princesa já morreu...
Chega e o vosso eco... a todos aqueles afastados casais,
Onde moram esses pobres, que Ela sempre protegeu!...
/ 158 /
|
Túmulo de mármore que encerra o corpo da Infanta -
Museu Regional de Aveiro |
(Numa súplica, de emocionante acento.)
E logo... ao cair da tarde... quando a forem enterrar,
Que ninguém falte aí!... Vinde todos ao Mosteiro:
Para a sepultura humilde de lágrimas lhe orvalhar.
E para dizer-lhe – de joelhos! – ... o adeus derradeiro!...
FIM
SOARES DA GRAÇA |