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Pátio interior, no Mosteiro de Jesus, de acesso às
dependências do Convento. Luz suave, entardecer. A Irmã
sacristã varre a quadra, até que, no limiar da porta que dá
para dentro, assoma a figura do Físico-Mor de Aveiro,
acompanhado de duas freiras, que se despedem, em cena muda, com
recíprocas vénias. Aspecto denunciador de
tristeza.
IRMÃ SACRISTÃ
(Monja idosa; encosta a vassoura à parede logo que
fecha a portaria e suspende a retirada das Irmãs que,
até meio do pátio, tinham acompanhado o Físico. Com
ansioso interesse)
O que disse agora... Irmãs... o Senhor Físico-Mor?...
IRMÃ VIOLANTE
(Com acento desolado, tristemente)
Não deu grandes esperanças... mal nos quis falar...
Até parecia indiferente à nossa grande dor!...
IRMÃ CATARINA
(Que acode logo, corroborando o que disse a companheira)
Bom prognóstico... pelo que vi... não é de augurar...
Que... como
sabeis... nestes dois últimos dias,
Descansou um pouco... o que nos levou a crer
Que melhoraria. Rezou o terço e as Ave-Marias...
Prouvera a Deus que ao mal... viesse o bem a suceder...
IRMÃ SACRISTÃ
(Manifestando-se incrédula, ar profético)
A doença...entrou logo com sanha mui malina...
Aquele sofrimento... com febre tão medonha...
Com cuja causa, nem físicos... nem ninguém atina...
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(Chegando -se mais às companheiras, ar de confidência)
Há já quem afirme... que foi obra de peçonha
(1)
(Meneando a cabeça, na previsão de mal eminente)
Um mal assim... com mostras de tal sorte...
Já não tem remédio!... Que mo perdoe Deus!...
São alívios enganosos... são melhoras da morte...
(Em àparte, juntando as mãos, olhando para o alto)
Mais depressa Ela entra... no reino dos Céus!...
(Limpa as lágrimas à ponta do escapulário)
IRMÃ CATARINA
(Com mostras de quem concorda no que foi dito)
Quem sabe?!... Pode ser bem essa, a causa verdadeira...
A mulher de mau viver que a Senhora Infante amoestou
E que arrastava a vida em tão vil e tão mortal cegueira,
Nunca... Nunca mais... o seu bom conselho perdoou!...
IRMÃ VIOLANTE
(Levando as mãos à cara e tapando-a, num gesto aflitivo, e depois segredando)
Meu Deus!... Meu Deus!... Não lhe tremer a mão!...
Ao dar aquela água – assim pestilenta – a beber!
Olhe, minha Irmã... guardemos nós esta nossa opinião...
Também desde o
princípio... foi esse o meu parecer...
Desfaz-se logo o grupo. A Irmã Sacristã continua
a varrer, enquanto as outras se afastam, a passo ligeiro. Passados
poucos momentos, aparece Margarida Pinheiro,
que se dirige ao nicho de S. Domingos, acendendo a candeia que junto dele se vê suspensa da parede. Ouve-se o
ruído da chegada da liteira episcopal e o imediato toque
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da sineta da portaria. A Irmã Sacristã acode logo, surgindo, sem demora, à entrada, o Prelado de Coimbra
(2),
que abençoa para dentro, depois de a sacristã ajoelhar e
lhe beijar o anel. Margarida Pinheiro vai logo ao seu encontro,
beijando-lhe também o anel. Momento de aparatosa e reverente solenidade.
MARGARIDA PINHEIRO
(Solícita, denotando discreta satisfação, sem esperar
qualquer pergunta da parte de Sua Reverendíssima)
Sempre viesteis, Senhor!?... Já por Vós há perguntado...
BISPO-CONDE
(Fala muito pausadamente, dando tempo de percorrer
a cena de extremo a extremo, com afabilidade, mista de imponência)
Quis partir ainda ontem... mas a hora, já tardia,
A que me foi entregue, em Coimbra, o vosso recado,
Embargou o meu intento... pois já não permitia
Que antes de noite mui
alta eu fosse aqui chegado...
(Parando, pergunta com vivo interesse)
Mas... dizei-me, boa Irmã: haverá alguma esperança
Deste grave acidente... com o divino auxílio, Ela vencer?!...
MARGARIDA PINHEIRO
(Juntando as mãos, num amplexo de confiante convicção)
Ontem, como doce, e consoladora bonança,
Era o dia adiantado... rente ao anoitecer,
Aqueceu-nos a alma uma inesperada alegria!
Sorriu-se para nós: todas as Irmãs quis ver!...
Que ficássemos à sua roda, – pois melhor nos via.
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(Mudando de tom, ar de narrativa, evocadoramente)
Sua voz tornou-se clara de mais fácil entender...
Com palavras de bom conselho, começou a falar.
A todas agradeceu; o amor, todos esses cuidados
Que no Mosteiro houveram por mui bem a tratar...
Que seus dias... não seriam, já, muito prolongados...
De noite, sossegou mais... e pela manhã chamei-a,
Por assim mo ordenar; seu rosto era contente!...
Vieram outras Irmãs,
e, por breve tempo, deixei-a,
Dizendo-lhe que voltaria logo...
imediatamente...
Vim aqui num momento, para acender esta candeia;
Nisso estava... e Vossa Reverendíssima foi presente...
(Termina a fala, fazendo reverente vénia)
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BISPO-CONDE
(Olhando para o alto, a mão direita erguida, tomado
de sentida emoção, fala muito devagar)
Como o poder de Deus é grande!... Sem medida... infinito!...
O seu coração está, sempre, de bondade a trasbordar...
Pois, minha Irmã... à vista do que me heis escrito,
Não contava já... de ainda com vida a encontrar...
MARGARIDA PINHEIRO
(Muito sentidamente, com esperançosa confiança)
Mas o Salvador, sempre benigno, ouviu os nossos rogos:
Por toda a parte, em todos os Mosteiros se fizeram orações...
Houve preces... acenderam-se luzes nos mais humildes fogos;
E Deus sossegou os nossos ansiosos e turbados corações!...
(Continuando a narrativa, mudando de tom)
Que amargura... que tristes horas vivemos aqui, Senhor!...
Parecia mesmo que era então chegado já o fim!...
De todas nós se despediu com entranhado amor;
Desde o começo da doença... nunca a tinha visto assim!...
Mandou que lhe lêssemos o Passo do Senhor no Horto;
E, lavada em lágrimas... não parava de soluçar...
Escrevi a Vossa Reverendíssima... ao Senhor Bispo do Porto...
Todas nós entendemos... que nada mais havia a esperar...
BISPO-CONDE
(Já perto da saída; abençoando a freira, ao mesmo
tempo que fala)
Deus vos pagará, com a sua Graça, esse piedoso cuidado!...
Bem dedicada vós fostes, sempre, à Senhora INFANTA;
E com inexcedível desvelo, heis agora acompanhado,
O sofrimento desta serva do Senhor – que já é santa!...
MARGARIDA PINHEIRO
(Num rasgo de incontida alegria)
Mas se Ela agora... por alta mercê de Deus sarasse,
E pudesse... outra vez... connosco ainda, acompanhar...
Ir ao coro às orações quando o sino a chamasse...
Que alegria – meu Senhor –... Nem quero acreditar!...
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BISPO-CONDE
(Sentencioso, grave. Fala muito pausadamente, erguendo a mão direita para o alto)
Nada... Nada é impossível à Divina Providência!...
Sempre foram insondáveis os seus altos juízos...
A Misericórdia do Senhor... a sua Clemência...
São sempre dispensadas... nos momentos precisos...
(Com acento de ternura, a modos de confidência)
Mas... quem da virtude deixa tão luminoso rastro...
Não pertence já ao
mundo das coisas terrenais:
É um facho de áurea luz: é um resplendente astro...
Para brilhar acima
de nós... nos páramos imortais!...
(Como a explanar a mesma ideia)
Fogueira de amor divino... em chama viva, bem acesa;
Que a nossa Fé tão
alto ergue... e fortalece!...
E cuja labareda, inda que em parte à terra presa,
Já tocou o céu... como o halo santo duma prece!...
(Com marcada nota sentimental)
É um vidro cristalino... bem claro... transparente...
Como a água que
brota duma encosta verdejante,
E entre vergeis ridentes, floridos, desliza, mansamente,
Até que vai findar num lago sereno, e mui distante,
Onde se aquieta e fica... tranquila... e dormente...
Reflectindo
estrelas d'oiro... pela noite adiante...
E quanto mais cerrada é a noite... mais o oiro é reluzente!...
(Mudando a inflexão de voz, paternalmente, andando a passo lento)
Mas... vamos lá então... até junto da Senhora Infante:
Ireis dizer-lhe
que vim, para mais uma vez a ver:
Que não quero molestá-la... e apenas um instante,
No meu propósito está... junto dela permanecer!...
(Desaparecem com as últimas palavras do Prelado)
O pano corre lentamente
INTERVALO
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