NA Vila da Feira, além das tempestades nacionais, sempre com repercussão
mais ou menos acentuada, tem havido várias borrascas de restrita
latitude local, embora os seus ecos atinjam a maior longitude na
imprensa e até no parlamento e nas regiões governamentais.
Um simples cortejo carnavalesco, atravessando a rua única da vila no
Entrudo de 1849, teve repercussão na câmara dos pares pela voz indignada
do digno par Visconde de Laborim, José Joaquim Gerardo de Sampaio,
presidente do Supremo Tribunal de Justiça e um dos condenados à morte,
vinte anos antes, a 29 de Novembro de 1829, pela execranda alçada
miguelista. Tinha nascido no Porto a 24 de Setembro de 1781 e veio a
falecer, já conde de Laborim, a 4 de
Janeiro de 1864 em Lisboa.
Apesar de eu ter sido parlamentar e ter tomado assento na câmara dos
pares (quando esta servia cumulativamente aos deputados, em 1902)
reporto-me ao que narra o redactor do Diário das Sessões, o notável
jornalista e historiador BARBOSA COLEN, no seu livro Entre Duas
Revoluções, transcrevendo do "Jornal do Porto".
Espalhara-se entre o povo da vila da Feira que o Senhor
Ecce Homo
embrulhado no seu riquíssimo manto roxo de
damasco de seda guarnecido de florões de oiro fino, acompanharia a cavalo, na sua entrada na vila, a Nossa Senhora da Soledade
enfeitada com a sua mantilha de seda azul clara.
Todos acorreram a ver o imponente cortejo na terça-feira gorda e reconheceram no
Ecce Homo Bernardo José-Correia de Sá, o
Brasileiro, então presidente da câmara municipal e comandante do
batalhão de caçadores nacionais. A Nossa Senhora era nada menos do que o
amanuense da câmara Joaquim José Teixeira Guimarães, mais tarde
escrivão e secretário da câmara municipal e sogro do meu tio dr. Joaquim
Vaz de Oliveira.
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O administrador do concelho e o escrivão da administração acompanhavam o préstito, fazendo parte da guarda de
honra armada de chuços.
O Duque de Saldanha, que presidia ao governo, ouvida
a narrativa do Visconde de Laborim, mandou logo instaurar processo
criminal na comarca da Feira.
E não foi só isso. O Bispo do Porto Culminou uma excomunhão e a
autoridade militar suspendeu o comandante
de caçadores. Quem trouxe esta suspensão foi o José Correia Leite Barbosa, o Maneta das Airas, antigo administrador
e famigerado político, acompanhando-se com foguetório,
vivório e morrório.
O administrador acusado de escoltar o
Ecce Homo chamava-se José Soares
Barbosa da Cunha, era da Arrifana, exercia o cargo desde Março de 1847 e
nele se conservou
até Julho de 1852, voltando a exercê-lo logo em Novembro
desse ano até Agosto de 1853.
Da discussão travada entre o
Religioso sem fanatismo,
autor da primeira notícia no Jornal do Povo, e os arguidos
da mascarada no mesmo periódico, apura-se que o administrador estava na
sua casa da Arrifana e quem acompanhou a cavalhada carnavalesca foi o
filho dele, dr. António Soares Barbosa da Cunha, ao tempo administrador
substituto e em exercício.
O Religioso sem fanatismo
era o boticário do meio da
rua da vila, Bernardino José da Costa Rifa, vulto importante
da política local que por vezes sustentou polémicas renhidas
em correspondências e comunicados nos periódicos de Aveiro e do Porto.
O "Diário da Tarde" de 25 de Setembro de 1871 conta
que «Na Vila da Feira houve também um boticário (o Bernardino Rifa) que queimou os
Falsos Apóstolos... «Ao
farmacopola indigno e vil atirou o autor dos Falsos Apóstolos (o
inspirado poeta GUILHERME BRAGA) quatro quadras
como quatro flechas».
Também se demonstrou que o escrivão da administração,
Henrique Vicente da Costa Neves, o defensor intemerato do
palácio e das casas que existiram dentro do Castelo da Feira,
andava por Sanfins nesse memorável dia 20 de Fevereiro
de 1849. Quem figurou de ajudante do coronel de milícias
foi o Bernardo de Sá, filho do presidente da câmara.
E os trajos da mascarada
eram de moiros e não de santos e tinham sido emprestados pelo cómico de
Paços de Brandão,
José Duarte Guimarães, não pertencendo ao Senhor da Cana
Verde nem à Nossa Senhora da Soledade.
O bispo retirou a excomunhão, por sinal muito inabilmente.
O Bernardo de Sá, pai, reassumiu o comando do
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batalhão. A disputa na imprensa esgotou-se, publicando documentos
oficiais.
Verifica-se ter-se feito a mascarada sem desacato algum à religião, no processo criminal intentado em que intervieram o dr.
Joaquim Celestino Albano Pinto, juiz de direito da comarca, o dr.
Agostinho Joaquim de Oliveira Coelho, delegado do procurador régio, e o
meu avô, Joaquim Vaz de Oliveira Júnior, como escrivão.
Este motim limitou-se a uma espalhafatosa partida de carnaval.
Relembro outras tempestuosas ocorrências da Feira. Uma delas e das mais
célebres foi o movimento pacato e pacífico contra um juiz insuportável.
Para fundamentar a narrativa deste episódio possuo só três documentos: a
acta da sessão da câmara feirense, a representação ao governo nela
aprovada e um folheto de 115 páginas transcrevendo dos n.os 346 a 356 do
"Jornal da Feira" vária versalhada e pouca prosa, de mistura com franciu,
mau latim e pior português. Os colaboradores assinavam com iniciais ou
alcunhas judengas, bíblicas e jocosas. Não sei dizer a que
personalidades correspondiam, pelo que se tornaria enfadonho transcrever
a lista dos 31 pseudónimos.
Dos documentos e da tradição apurei quanto vou expor. Não vim à Feira
nessa época, porque cursava direito em Coimbra, passando quase todas as
férias em Lisboa.
A 5 de Maio de 1887 tomou posse como juiz da comarca
o dr. Francisco
Rodrigues de Macedo, transferido de Ovar. Pelos seus actos e pelas suas
maneiras, em breve tempo se incompatibilizou com advogados, funcionários
forenses e pessoas que frequentavam o tribunal. Levantou-se celeuma e
começava a fermentar a revolta contra o procedimento desse juiz muito
desleixado no serviço e demorando os processos, autoritário e pouco
atencioso com todos, incluindo os advogados, que interrompia no uso da
palavra, contestando-lhes os argumentos, rebatendo-lhes as asserções e
enxertando longas perlengas nos discursos proferidos em defesa das
partes.
Ouvi contar que o meu tio, dr. Joaquim Vaz de Oliveira, notável advogado
nesta comarca, quando, nos últimos tempos da sua vida, discursava no
tribunal, fora interrompido por esse magistrado uma vez, duas vezes, e à
terceira ficara estalando com a unha do polegar nos dentes de cima,
gesto muito habitual dele. Esperou uma pausa do juiz e quis prosseguir
o seu discurso; mas o Macedo insistiu em falar.
– Cale-se – bradou-lhe o meu tio.
– Estou no uso da
palavra e não lhe consinto que me torne a interromper.
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E continuou a sua exposição como patrono do seu constituinte. O Macedo
ouviu-o em silêncio; tinha muita verborreia, pouca educação e fraca
coragem.
As pessoas principais da vila reuniam-se, à noite, na
farmácia mais central, comentando os casos ocorridos. Era
a botica do Rifa, que tinha morrido a 1 de Fevereiro de 1887.
Os seus herdeiros – a viúva D. Maria José Rodrigues da
Graça, um filho Germano Rifa e três filhas – passaram em 1
de Outubro de 1887 a botica ao farmacêutico diplomado Joaquim Pinto de Araújo, natural de Barcos, concelho de Tabuaço,
na Beira Alta, nascido a 11 de Dezembro de 1857 e falecido
a 30 de Maio de 1948. Veio portanto o Araújo para a Feira quando
começava a haver a má disposição contra o juiz
Macedo.
A farmácia está hoje transformada, tendo sido reconstruída toda a frente
do prédio. Mas o resto da casa conserva-se como era no tempo do Rifa, permanecendo na mesma
situação as dependências a que os espanhóis dão o nome
característico de rebotica. Era lá dentro, ao fundo da farmácia, nessa dependência hoje guarnecida com os antigos
corpos de armação e tendo enfileirados os boiões de loiça
amarelada, que se reuniam os conjurados da revolta latente
contra o juiz Macedo.
Não sei quem, infectado de judaísmo, começou a chamar
Sinagoga à rebotica feirense e ao Araújo o Grão Rabino.
O dr. Bandeira, um dos advogados de então, mais tarde conselheiro,
tratava sempre o Araújo por esse título honroso, mas de que este não
gostava muito.
Na rebotica era grão mestre o Judas, um dos colaboradores principais do folheto referido, e lá apareciam todos os
outros e ainda um Tigela que não assina nenhuma das composições literárias. Assim, pois, o Araújo ficou logo nos primeiros anos
da sua estada na Feira consagrado como
Grão Rabino da Esnoga de Eifar, nome arreigado da rebotica durante esses dois anos de luta clandestina, mas acerba e pertinaz.
Outro dos influentes da Sinagoga identifica-se no
professor primário e maestro da banda de amadores, António
Martins Soares Leite, autor do Hino da Feira, cujo primitivo nome foi
Hino da Esnoga de Eifar.
A efervescência contra o juiz arrastava-se, até que rebentou a revolta
com o escândalo do oficial de diligências, António Alves Correia,
natural da freguesia da Arrifana, saltar da
janela do escritório do irritante magistrado, gritando em altos
brados:
– Aqui deI rei, que o senhor juiz quer-me bater.
Dizem as más línguas que se dera precisamente o
contrário.
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A casa do juiz era a da praça, à esquina da estrada da Lavandeira.
Pertenceu esse prédio ao dr. José de Moura
Coutinho de Almeida de Eça, à sua viúva D. Maria Máxima
de Paiva e Lima e depois ao Conde das Devesas, Francisco Pereira Pinto
de Lemos. Lá moraram os meus avós, nasceu a minha Mãe em 1839 e faleceu
o dr. Gaspar Moreira a 19 de Setembro de 1938. Fica essa casa defronte
dos paços do concelho, onde até 1877 funcionava o tribunal.
O certo é que a sineta, ainda então pendente no centro do segundo andar
do edifício, começou tangendo a rebate. O povo acorreu e a vereação
reuniu.
Dos advogados da comarca, frequentadores da farmácia Araújo nas noites
de cavaqueira, três faziam parte dessa vereação: – 1.º o dr. Roberto
Alves de Sousa Ferreira que a presidia, eleito deputado por este círculo
nas legislaturas seguintes de 1890 e 1890-92 e mais tarde lente da
Academia Politécnica do Porto; – 2.º o dr. Manuel Augusto Correia
Bandeira, que fora vice-presidente da câmara de 1868-69 e
presidira à vereação de 1876-77 e – 3.º o dr. Vitorino Joaquim Correia
de Sá, administrador do concelho em 1885-86, 1890, 1892-97 e 1900-04,
vice-presidente da comissão administrativa em 1912, presidente da
comissão executiva municipal em 1914-17, 1918, 1919-22, 1923-25 e 1926
e presidente da comissão administrativa de 1919.
A Câmara Municipal, reunida na sua sessão ordinária, começada por
coincidência em seguida ao rebate, deliberou como se vê da:
«Acta da sessão da Câmara Municipal da Feira de 24 de Abril de 1889
conforme a minuta.
«Foi presente uma proposta dos
Ex.mos Snrs. Presidente
e vereador Dr. Vitorino de Sá concebida nos termos seguintes: Atendendo
a que às Câmaras Municipais compete promover os melhoramentos dos povos
da circunscrição que administram; Atendendo a que é sobremodo
lamentável o estado deste concelho desde há dois anos a esta parte, em
que a presidência do Tribunal da primeira instância da comarca está a
cargo dum magistrado, o Doutor Francisco Rodrigues de Macedo, que não tem
podido desempenhar os deveres do seu ofício com a prontidão de
expediente requerida na administração da justiça, lhaneza no trato com
as pessoas que concorrem ao foro, e serenidade de ânimo na direcção dos
trabalhos do tribunal; Atendendo a que são públicos e notórios os
prejuízos provenientes da demora no expediente judiciário, e que os
prejudicados com ela hesitam em usar da faculdade que as leis de
processo lhes concedem,
queixando-se aos tribunais superiores, pois receiam ressentimentos
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os prejudiquem; Propomos que a Câmara delibere representar ao Governo de
Sua Majestade sobre a instante necessidade de prover de remédio tal
estado de coisas neste concelho.
«Depois de breve discussão foi unanimemente aprovada.
«Suspensa em seguida a sessão, por algum tempo, para
ser redigida a representação, reabriu-se a sessão em que foi lida e
aprovada por unanimidade e assinada a representação que a Câmara
incumbiu a presidência fizesse subir a Sua Majestade pelo Governador
Civil do distrito.
Assinam:
Roberto Alves (presidente)
Santos (João Tomás Pereira dos Santos)
Vitorino de Sá
Correia Marques (José)
Leite de Sousa (João)
Bandeira
O Secretário: Benjamim Augusto Correia de Pinho.
Na representação fala-se no atraso do expediente judicial, causando o
mais profundo descontentamento e prejudicando os mais graves e legítimos
interesses, porque excedia todos os limites razoáveis, nos processos
orfanológicos, em centenas de processos para julgamento correccional,
entre estes trezentos por infracções da lei do recrutamento. Ainda a
câmara entendia dever abster-se de referir outros factos agravados pela
excessiva acrimonia com que eram tratados os réus e pela irritabilidade
que levava o juiz a, em público, proferir frases e praticar actos menos
corteses e até ofensivos de jurados, testemunhas, vogais de conselho de
família e outras pessoas chamadas ao tribunal, e finalmente pelas
extraordinárias e injustificadas delongas do mais simples acto judicial,
obrigando as partes a enormes despesas e todos a graves incómodos.
O juiz Macedo foi mandado responder, o que fez em
14 de Maio.
Estava ainda no poder o primeiro ministério progressista presidido pelo
conselheiro José Luciano de Castro, que durava desde 20 de Fevereiro de
1886 e sofrera a 23 de Fevereiro de 1889 a sua penúltima recomposição,
mas a mais importante de todas pela saída dos conselheiros Mariano
Cirilo de Carvalho e Emídio Júlio Navarro. Para a pasta das obras
públicas entrou o juiz dr. Eduardo José Coelho
e na da fazenda ficou interinamente o ministro da marinha, Henrique de
Barros Gomes, que deixou a pasta dos estrangeiros a Francisco Ressano
Garcia. Era ministro da justiça o conselheiro Francisco da Veiga Beirão.
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Depois da sua resposta, o juiz Macedo, ouvido o Conselho de Estado, foi
colocado no quadro, afastando-se assim
da comarca da Feira.
Triunfou a revolta pacata tramada na rebotica do Araújo.
O opúsculo que a celebra reedita versos e prosa do Jornal da Feira, merecendo transcrição, para dar a nota do seu
conteúdo, a descrição do juiz e uma estrofe completa de outra
poesia.
Um jarreta... vamos lá,
Usa pêra e bigode,
Seu cheiro de Massamá,
E faz ainda o que pode.
Risca traz apartada
Da cabeça p'lo meio
Bota fina engraxada,
E traja com asseio.
Baixo d'ombros refeitos,
É incrível maçador.
Nos outros só vê defeitos,
Nele só vê um primor.
Fecho com a estrofe alusiva ao Castelo da Feira:
Legaram-nos outras eras
Essas muralhas fendidas,
Que os anos cobriram d'heras.
Nas linhas
nobres, severas
Desse castelo vetusto
Estampa-se em lema augusto
– A honra das velhas eras.
Assim ficou assinalado esse motim da Feira em 1889.
Feira, Março de 1952.
VAZ FERREIRA |