L. de Miranda Melo, Aguarela, Vol. XVIII, pp. 48-50.

AGUARELA

(ao findar de uma serena tarde de Outono,
em algures, na região de Vouga)

O CÉU, para as bandas do Poente, parece incendiado sobre as brumas azuladas dos montes distantes. Céu ignescente! E em meio dessas labaredas celestes a grande roda alaranjada do incêndio do Sol vai descendo para o Mar, lentamente, muito lentamente...

Os olhos do nosso Espírito ficam presos a esse quadro de maravilha, onde se ajoelha a nossa sensibilidade. E tudo o mais é nostalgia...

Ao redor, no santuário da Natureza, as coisas têm um colorido de tons suaves, todo doçura e mansidão, a abrandar irreflectidos impulsos.

Dos pinheirais das gândaras, e do restolho das ceifas, e das florzinhas anónimas dos montes andam no ar essências que rescendem, e ouve-se, ao largo, a toada feminina de lânguida cantiga de coração enamorado, que vem até nossos ouvidos entrecortada, soluçante:

Ó meu amor...
. . . . . . .

                    por causa de ti
                    choram os meus olhos...

A roda alaranjada do Sol continua a descer lentamente para o Mar... e daqui a pouco é crepúsculo.

Agora são aqueles segundos de agonia, emotivos e místicos, de reticências e interrogações, quando a Luz, muito suave e doce, tocada de magia e oiro, e púrpura, e pérola anda religiosamente a beijar a Terra no derradeiro momento do astro-rei mergulhar na distância quimérica dos longes.

Ocaso...

/ 49 / [Vol. XVIII - N.º 69 - 1952]

Minuto de emoção, e de recolhimento, e de sonho!... Por toda a Natureza parecem pontificar divindades mitológicas a dissertarem baixinho sobre as grandes lendas da Vida, muito mais interessantes que as sábias verdades do Cosmos. É então que se podem perscrutar as almas das coisas terrenas:

As árvores rezam, olhos postos nas alturas. As folhas e as simples ervas dos montes tremem, beijam-se, murmuram, acarinham-se. Pressentem-se contactos amorosos e adivinham-se mansas vozes de minúsculas e humildes vidas... cicios vindos de toda a parte. E as flores têm policrómicos e mágicos sorrisos de tanta suavidade que lembram poesia virgiliana.

Senhor! É Outono... O findar de uma serena tarde de Outono...

A luz é branda, e morna, e triste.

Durante esses segundos emotivos (doces mundos de bucolismo !), além, ao fundo da largueza daqueles vales, lobrigam-se velas brancas de barcos, e as águas dos rios, e dos lagos, e dos esteiros andam a luzir, tranquilas, à aproximação do crepúsculo, num reino de sonhos e de sombras azuis, por entre a folhagem verde-amarelecida dos salgueiros, e dos choupos, e dos lamigueiros.

Vimeiros e juncos marginam planícies ribeirinhas.

Senhor! É tudo tão calmo, e belo, e bucólico...

s homens sonham!

E nostálgico então é o voo das aves, e a melopeia das fontes, e o murmúrio das plantas, e o silêncio das tomadias, e o sorriso das flores, e o misticismo dos claustros... à aproximação das sombras, polvilhadas de melancolia e geradoras de quimeras, duendes da nossa imaginação, a crescerem e a alongarem-se, subtilmente, silenciosamente, parecendo ter vida alada e virem de um mundo irreal de nebulosas fantasias.

Tangem sinos. São avé-marias!

Os homens sonham, e descobrem-se... Misto de superstição, de fé, e de respeito.

As almas recolhem-se.

Os corações têm dúvidas...

Agora já não se vê a roda alaranjada do Sol. Nem o incêndio do Céu. Nem a bruma azulada dos montes. Penumbra. Serenidade. Poesia.

Mistérios vagos andam no ar. Ecos de saudades perdidas. Ritornelos dos longes. Reminiscências de vidas já vividas.

De mansinho, o manto cinzento do crepúsculo, leve como o arminho e suave como a sombra, surge de todos os lados para embrulhar a Terra, que as coisas mansas querem dormir. / 50 /

Os homens sonham!... Mas os melros, irreverentes, a estas horas emotivas e místicas deixam o sossego dos cômoros e das carvalheiras e lá se vão em voos rápidos, soltando risadas cascalhantes e sarcásticas, que furam o espaço, sobressaltam os homens, e fazem sorrir os deuses.

Nos álamos esguios já cantam rouxinóis!

Nas alturas acordam então as primeiras estrelas – vigilantes pirilampos do Céu...

LAUDELINO DE MIRANDA MELO

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