A. G. da Rocha Madahil, Considerações acerca duma estátua do museu de Aveiro, Vol. XVII, pp. 97-135

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

ACERCA DE UMA ESTÁTUA

DE TIPO ARCAICO EXISTENTE

NO MUSEU DE AVEIRO

DATAM de 1911 as primeiras e bem orientadas diligências para a instalação, no edifício do antigo Convento de Jesus, de Aveiro, do precioso Museu que tão legítimo título de ufania para a cidade e para o distrito constitui(1); e é desde então que num gracioso ângulo do seu delicado e feminil claustro, como local a essa data mais apropriado, discretamente ficou colocada uma gigantesca estátua de pedra, de 2,90 metros de altura, de rude factura quase toda ela, e de estranho simbolismo.

Apesar das sucessivas reformas sofridas pela instalação das colecções, como é natural, originadas quer no seu próprio desenvolvimento quer na evolução da técnica museológica, que muito tem progredido, a referida escultura ainda presentemente ali se conserva; a sua existência na cidade também facilmente se pode acompanhar, e com inteira segurança, desde o último quartel do século XVII.

O significado do impressionante monólito é que, todavia, constitui perturbante enigma, e não apenas para o visitante comum, pois nem mesmo entre os estudiosos se fixou ainda doutrina a seu respeito; certa identificação erudita, enunciada numa publicação de 1911, embora meramente ocasional e desacompanhada de justificação de qualquer espécie, merecia absolutamente que se lhe dedicasse atenção cuidadosa e estudo [Vol. XVII - N.º 66 - 1951] / 98 / exaustivo, o que não implica, de forma alguma, obrigatoriedade de concordância com a interpretação que ela envolve do simbolismo adoptado pelo escultor; a verdade, porém, é que já quarenta anos sobre esse escrito decorreram e não se tem procurado esclarecer o assunto.

Na mais recente publicação, com responsabilidades de opinião, que ao Museu se refere, e de que tenhamos conhecimento − Guia de Portugal, 3.º vol., 1944 − regista o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, ilustre Director da casa, e seu distinto reorganizador, aquela mesma atribuição de 1911, que não rejeita, sem, contudo, se pronunciar abertamente por ela, em aceitação declarada.

O delicado problema tem-se mantido, assim, inalterável.

Reunir, portanto, o que a propósito desse monumental exemplar de estatuária arcaica se tem aventado, e dedicar à interpretação do seu simbolismo algumas considerações, quis-nos parecer trabalho de alguma utilidade, que pode transcender, até, o mero interesse local, se considerarmos a integração da peça no reduzido conjunto de imaginária arcaica existente no País.

Com esse espírito, pois, se organizaram as breves páginas que vão seguir-se. Enquanto o estudo exaustivo que acima solicitamos para o importante problema não surge, baseado em mais amplo confronto do exemplar aveirense com colecções dos Museus e monumentos do velho mundo clássico, trabalho esse que dificilmente um arqueólogo nacional poderá realizar, sirvam ao menos de bem intencionado incentivo as nossas presentes considerações, que à futura apreciação de quem disponha de melhores conhecimentos − não apenas colhidos em bibliografia e nas reduzidas colecções portuguesas, como nós − desde já submetemos.

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A descrição, por assim dizer − integral, da estátua, no seu aspecto e características originais, é possível hoje ainda; por felicidade, ela não se encontra grandemente mutilada, nem foi desfigurada, tampouco, com retoques ulteriores, como tantas vezes acontece em casos análogos. Além duma ligeira mutilação na asa esquerda do nariz, e de outra no polegar da mão direita, falta-lhe apenas, ao que é licito presumir, um acessório que muito possivelmente terá sido volante, e apresenta, como é natural, aquele relativo desgaste que a acção do Tempo nela havia fatalmente de determinar, mas que, em todo o caso, a não corroeu demasiado.

Posto isto, vejamos então como se caracteriza, no essencial, a veneranda peça arqueológica, simultaneamente obra de Arte, pois duma qualidade e doutra ela participa. / 99 /

Fig. 1 − A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva frontal)

/ 100 / Integrado em tosca base grosseiramente pentagonal, de 0,22 metros acima do solo, ergue-se em 2,68 metros de altura, perfazendo, por conseguinte, o total de 2,9 metros, um corpo de gigante cuja nudez unicamente é atenuada por ligeiro calção − espécie de manaias − que lhe desce da cinta até à parte média da coxa. Veneranda cabeça a que não falta majestade, de fartos cabelos(2) e barba tratados muito ao gosto clássico, remata superiormente o corpo (todo ele em atitude de grande mas serena firmeza, sem arrogância alguma), e mede 0,50 metros  do topo dos cabelos à extremidade da barba, que o Artista ondeou e partiu a meio (fig. 1).

Nos olhos, o pormenor importante das pupilas gravadas. No pescoço, o osso hyoide em acentuada saliência.

O antebraço direito flecte sobre o braço, normalmente colocado, em posição de quem empunhasse bastão de comando, insígnia, ou utensílio que poderia ou não vir apoiar-se no solo, mas actualmente desaparecido e sem ter deixado vestígio de encaixe ou ligação de carácter permanente com o bloco lapidar.

A orientação da mão direita, contudo, não se afigura muito favorável à hipótese de nela se integrar qualquer acessório (necessariamente volante, demais a mais) que descesse até baixo. Parece muito mais provável tratar-se de emblema de vulto reduzido; há, no entanto, que considerar essas duas hipóteses para a interpretação do simbolismo do conjunto.

Adiante voltaremos a este ponto.

A mão esquerda, pendido o braço respectivo com inteira naturalidade ao longo do corpo, segura pela cabeça uma vigorosa serpente de 2,5 metros de comprido.

A modelação dos dedos e das unhas, consideradas as dimensões da peça e a época remota em que este trabalho terá sido executado, é um verdadeiro primor de expressão e de movimento, em tudo digno de nota.

O réptil, que descreve graciosa curva por detrás da figura, enlaça-lhe a perna direita, a meia altura, volta a passar por detrás da perna esquerda, e acaba por ondear em bem lançados movimentos até afilar em cauda ao lado do pé esquerdo, na mesma base em que o gigante se apoia.

O conjunto, duma só peça, talhado em magnífico bloco de calcário duro que, tendo permitido ao lapicida o difícil recorte dos braços na posição acima referida, tem resistido aos tombos que pelos séculos fora a estátua terá levado até / 101 / aportar ao remanso bonançoso do claustro dominicano de Jesus, em Aveiro(3), mede, de ombro a ombro, 0,60 metros de largura, o que torna a figura excessivamente esguia para a altura que tem; é na base do tórax que mais se acentua essa desproporção anatómica.

A serpente e a perna esquerda, bem como a parte inferior do calção, encostam, pelo lado de trás, a uma espécie de plinto rusticado, imitando amontoado de pedras, e igualmente integrado na base geral (figs. 2 e 3).

Nenhuma sigla, data, ou inscrição se descobre, que ajudem a identificar o trabalho; não é, porém, de excluir em absoluto a hipótese de qualquer indício aproveitável aparecer, um dia em que a estátua venha a ser afastada do conjunto arquitectónico do claustro a que se encosta, e se possa mais comodamente examinar por todos os lados.

Se do aspecto geral da figura passarmos agora ao exame mais pormenorizado da sua execução artística, um verdadeiro antagonismo nos surpreende logo e fica sem explicação imediata: por um lado, a inegável majestade e nobreza que daquela venerável cabeça irradiam, toda ela tratada ao gosto clássico; a contrastar, porém, com a cabeça, a anatomia rudimentar do corpo, esculpido à maneira arcaizante, quase um intencional xoanon, e acrescido, ainda, daquela estranha e reduzida indumentária que lhe reveste a parte média, de que em estatuária do território que é hoje Portugal não conhecemos outro exemplar.

O calção, que à primeira vista faz aflorar a ideia dum saio lusitano, documentado já em certo número de estátuas dos nossos Museus, quando examinado detidamente, e em toda a volta, verifica-se que é constituído por duas perneiras, bem cingidas ao corpo, apertado na cinta por um cordão que passa dentro duma bainha e que vem atar à frente, ao centro, em laçada de duas voltas e outras tantas pontas.

De forma alguma se pode pois falar em saio lusitano a seu respeito.

Houve, até, a intenção de lhe marcar o franzido provocado pelo aperto do atilho, aliás com certa naturalidade, e ondear-lhe em baixo a fímbria, em volta das coxas, pormenores esses que num saio lusitano se não verificam, nem, pelo próprio corte e espessura de tal peça de vestuário, poderiam existir. É hipótese, portanto, que fica definitivamente afastada. / 102 /

Adiante daremos a nossa interpretação da curiosa peça de vestuário.

O corpo, propriamente dito, do gigante é sumariamente tratado: as costelas meramente riscadas, os membros demasiado hirtos (fig. 2), de grosseira anatomia, e fraco revestimento muscular por todo ele.

A coluna vertebral, também simplesmente marcada por um sulco. Umbigo, mamilos e clavículas, da mesma forma, sumariamente marcados.

Em quatro pontos apenas o lapicida parece ter procurado esmerar-se: na cabeça da escultura, no calção, na serpente, e na mão que a domina, como se aí desejasse consubstanciar todo o simbolismo da obra de Arte que à sua técnica foi confiada.

Nesses quatro pontos residirá, pois, a explicação do mistério que envolve a estranha figuração.

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Apresentado assim o problema, registemos agora as referências que pelos séculos fora se lhe deparam, tanto quanto o nosso conhecimento alcança, bem entendido, pois sabido é que em bibliografia jamais se consegue esgotar um assunto; alguma coisa escapa sempre, artigo de jornal ou de revista, às mais bem orientadas pesquisas, para arrelia eterna de quem tudo deseja conhecer e referir.

Fig. 2 − A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva lateral)

 

Dissemos acima que desde o último quartel do século XVII se pode acompanhar com segurança a existência desta escultura em Aveiro.

Assim é, de facto.

Falando do magnífico palácio do marquês de Arronches, escreve, em seguida, o licenciado CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO na sua Memória sobre Aveiro, de 27 de Janeiro de 1687(4): «Mas ainda melhores casas pelo sitio sobre a porta da Ribeira são as dos nobres Tavares, senhores da villa de Mira, e n'esta moradores, pois egualando com abobadas, muros, e ladeiras sobre a rua, á qual deram o seu appellido de Tavares, se entra em côche até á primeira sala: sobre outra abobada junto da porta da Ribeira, e por cima d'esta a olhar para o esteiro, e praça tem um jardim com flores, e plantas, onde está tambem uma grandiosa estatua de pedra de figura humana com uma serpente enroscada em uma das pernas, a qual é antiquissima e ha quem diga que é do tempo dos romanos, mas isto é tradicção que me parece sem fundamento.»

Fig. 3 − A estátua do Museu de Aveiro (perspectiva lateral)

Esta, a mais antiga referência à estátua que ao nosso conhecimento tenha vindo. Já então (em 1687) se perdera a memória da sua proveniência e data de execução, bem como do que significava tudo aquilo.

Era contudo tradição que provinha «do tempo dos romanos»; a PINHO QUEIMADO, isso parecia sem fundamento (porque lhe não compreendia o perdido simbolismo), mas a verdade é que nem declara que fosse obra de execução recente nem tampouco lhe acrescenta explicação de sua lavra, ou de inventiva popular, o que só depõe a favor da sua honestidade de historiógrafo.

É evidente que se o monumento tivesse a sua origem em época posterior à da edificação do palácio ou para ele tivesse sido expressamente feito, como adorno de jardim, PINHO QUEIMADO não desconheceria o facto e facilmente se informaria visto que registou a versão corrente a respeito da «grandiosa estatua de pedra de figura humana», como ele diz, e não aludiria nesse caso à sua grande antiguidade.

Além disso, o historiador era de Aveiro, e não estaria, evidentemente, na idade juvenil quando escreveu a sua descrição da vila.

Da vinda da família Tavares para Aveiro escreveu, não há muitos anos, um ilustre descendente seu(5), fixando datas:

«Foi aproximadamente pelo venturoso ano de 1500 que radicou em Aveiro a nobilíssima família dos Tavares.

Nesta formosa vila, sobre as portas da Ribeira, edificou Gonçalo de Tavares sua morada para o que lhe deu Ri Rei D. Manuel, em 24 de Março de 1503, uma torre da muralha que a circundava...

Junto a essa torre cresceu o edifício que em 1687 o beneficiado CRISTÓVÃO DE PINHO QUEIMADO descreve»...

Parece pois, como deixámos dito, que não se conseguirão levar além do último quartel do século XVII, com o memorialista PINHO QUEIMADO, as referências escritas ao gigante do jardim dos Tavares, embora devamos reportá-las muitos anos atrás, até onde, pelo menos, a memória dos homens de então alcançava. / 105 /

Vejamos agora as que se lhe seguem.

Aveiro, habitada então por gente de boa nobreza do Reino, e contando, dentro de seus muros, notáveis palácios e grandiosas residências, decai entretanto na sua fortuna. Os séculos XVII e XVIII são-lhe particularmente dolorosos, consequência do estado de ruína a que a barra chegara, paralisando não só o tráfego marítimo, como o próprio comércio interno. As condições sanitárias da vila, tornadas péssimas, completaram os motivos de deserção de grande número de famílias, que a outros pontos se transferiram, e o consequente abandono de palácios e vivendas de maior vulto.

No palácio dos Tavares não se falou mais, e os historiadores e corógrafos do século XVIII, como os P.e CARVALHO DA COSTA e LUÍS CARDOSO, limitam-se a reeditar PINHO QUEIMADO se têm necessidade de se lhe referir, ou omitem pormenores, que é o mais geral, como neste caso da estátua, sem interesse para os seus pontos de vista.

Surge entretanto, com a política do Marquês de Pombal, a criação do Bispado de Aveiro, solicitada a Clemente XIV, a 28 de Setembro de 1773, e dele obtida pelo breve: Militantis Ecclesiae Gubernacula, de 12 de Abril do ano imediato(6). O palácio dos Tavares, desabitado, ao que parece, pela extinção da linha primogénita da família, em consequência de haver «falecido Manuel de Sousa Tavares, filho de Bernardino de Sousa Tavares, senhor de Mira, comissário de Cavalaria no Alentejo durante a guerra da Independência, e governador de Mazagão, sem deixar fiança»... «passando em seguida todos os seus haveres para a coroa»(7), foi então designado para residência episcopal(8), tendo sido beneficiado com obras importantes pelos três prelados que na Diocese se sucederam: D. António Freire Gameiro de Sousa (1774-1779), D. António José Cordeiro (1802-1813) e D. Manuel Pacheco de Resende (1816-1837).

A estátua, porém, continuou no jardim, incompreendida num simbolismo que já nada dizia àquelas gerações; a sua época tinha passado havia muito, e ela volvera-se, de imagem falante que outrora fora, em muda esfinge cujo segredo já nem sequer interessava os eruditos locais.

A estabilidade do novo Bispado não era grande, e o século XIX trouxe à Sociedade política e administrativa as alterações profundas que a História regista. Com o falecimento do 3.º prelado aveirense, D. Manuel Pacheco de / 106 / Resende, em 1837 (27 de Março), e a decadência do Bispado, que se acentuou a partir de então, o palácio suscitou, logicamente, a cobiça dos novos serviços públicos, sempre mal instalados, e, em 1846, o Governo Civil e outras Repartições distritais ocuparam o que até então fora Paço episcopal.

As necessidades de expansão da cidade, e o pouco interesse pelas relíquias do seu passado histórico, levaram em 26 de Março de 1855 (9) ao início da lamentável demolição do lanço oriental das muralhas com que o Regente D. Pedro dotara a terra; desapareceu o arco que constituía a entrada pela Rua dos Tavares, e a muralha sobre a qual assentava o famoso jardim do palácio, onde, como sabemos, se encontrava o gigante de pedra com a serpente, objecto destes ligeiros apontamentos.

A estátua teve de ser retirada, e muito de admirar é que não sofresse logo sumária destruição; passou então para o quintal duma casa não muito distante, contígua ao Liceu, antiga moradia dos Marqueses de Arronches, onde habitava o escrivão de Fazenda Manuel Ferreira Correia de Sousa(10); aí a conhecemos nós depois de 1900, salva de maiores ultrajes pelos cuidados do Rev. Manuel Ferreira (Pinto de Sousa), pároco da Vera-Cruz e filho daquele funcionário de Finanças.

Foi deste local que em 1911 ela transitou para o incipiente Museu, donde não mais saiu.

Chamava-lhe o povo, certamente desde remoto tempo, o Menino-Jardim(11), e com a sua evocação temerosa facilmente costumavam as mães sofrear os ímpetos mais rebeldes das crianças irrequietas...

É de 1852, e encontra-se no semanário aveirense Campeão do Vouga, uma carta em verso em que justamente o Menino-Jardim fazia o comentário jocoso aos costumes académicos da época:

Eu, estatua colossal,
Menino Jardim chamado,
Na varanda collocado
D'este Paço episcopal,

/ 107 /

Ao ver-vos surgir assim,
Do que fui, ora não sou,
Negra serpe me deixou
E já sou senhor de mim
(12)
 . . . . . . . . . . . . . . . . . .


Já então assim era popularmente conhecida, e não é indiferente registá-lo, porque a própria designação documenta, bem como a poesia, a continuidade da sua permanência no local onde em 1687 fora assinalada por PINHO QUEIMADO.

De 1894 (15 de Junho) data RANGEL DE QUADROS o seu artigo sobre as Muralhas de Aveiro, que vimos extratando (13), e de quanto ao Menino-Jardim aí se encontra anotaremos ainda o seguinte, que importa ao melhor conhecimento do problema:

[A estátua] «É extremamente corpulenta. Tem uma corôa de louros (14) na cabeça e da cinta até aos joelhos é coberto de uma especie de tanga. O resto do corpo é completamente nú. Com a mão esquerda parece querer esmagar a cabeça de uma serpente, que se lhe enrosca nas pernas. A mão direita está erguida até quasi á altura da cabeça.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

«Sendo eu ainda muito creança, ouvi contar, esta lenda: Um antigo senhor da mesma casa tivera um creado ou escravo preto, que muito estimava. O Côjo (será corrupção de Fôjo?) era então um logar pantanoso, um verdadeiro charco. Apparecera ahi uma enorme serpente, que trazia atterrados os moradores de Aveiro e especialmente os que ficavam mais proximos d'aquelle local. Ninguem se atrevia a atacar animal tão formidavel. Uma bella manhã sahiu o fidalgo a passeio para aquelles lados, acompanhado do seu escravo, que era um valente, agigantado. A serpente apparece de subito e vae atacar o fidalgo. O seu dedicado serviçal tratou logo de prostrar o animal, que se lhe enrosca nas pernas. Trava-se lucta. O preto não desanimou e podendo conseguir apertar com uma das mãos o reptil, de modo que este não podesse respirar, assim acaba com elle. No entanto, o preto soflrera muito com / 108 / o enroscamento da serpente e ficou tão ferido que, dentro de poucos dias, perdeu a vida.

O fidalgo, para perpetuar a memoria do feito e por gratidão áquelle verdadeiro amigo, que assim por elle se sacrificara, mandou erigir essa estatua, figurando o seu servo em lucta com a serpente e mandou collocar a mesma estatua no terraço e de modo que por muita gente podesse ser visto.

O povo, querendo chamar, á estatua, Menino do Jardim, chamava-lhe por abreviatura = Menino Jardim = e servia-se d'esta expressão, quando queria dar uma resposta pouco delicada a qualquer dito inconveniente ou a qualquer proposta pouco aceitavel.

Uma outra versão ácerca do Menino jardim, affirmava, que o preto não morrera na lucta, mas d'esta saira incolume.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

«Diversas pessoas tem feito indagações ácerca d'esta estatua. Creio, porém, que nada tem conseguido e nada mais poderam saber, além do que ahi fica exposto.» (Op. cit., págs. 280-282).

Já do século presente − 9 de Novembro de 1908 − são as curiosas memórias de Aveiro, da autoria do conselheiro JOSÉ FERREIRA DA CUNHA E SOUSA, postumamente publicadas no Arquivo do Distrito de Aveiro (vol. VI, págs. 198 e segs.).

Uma breve referência à versão popular que tentava explicar a escultura, e que passamos igualmente a registar, mantém a continuidade de informações trazida desde o século XVII, o que é deveras importante.

Diz o conselheiro FERREIRA DA CUNHA:

«Sobre o jardim, no ângulo nordeste, havia uma estátua de pedra, tosca, representando um homem lutando com uma serpente, acha-se hoje no quintal do sr. Prior da Vera Cruz. Dizia-se então que fôra ali mandada colocar por um dos senhores antigos do palácio em memória de um criado, única pessoa que se atreveu a ir matar uma grande cobra existente no Ilhote, e que fazia o terror de toda a população, criado que uns diziam ter sido morto por ela, ou que, segundo outros, conseguiu matá-la, sendo mais provável esta segunda versão em vista do monumento que lhe foi consagrado».

Interpretação meramente popular, tal como a lenda anteriormente registada, forjada ad-hoc, e documentando não só que a primitiva proveniência do monumento se perdera por completo, mas que até a tradição da sua grande e insofismável antiguidade, latente ainda no tempo do memorialista PINHO QUEIMADO, se obliterara também. Ninguém mais pensara a sério no caso. / 109 /

Chegou-se deste modo a Outubro de 1910.

Implantação do regime republicano e confisco mais ou menos declarado dos bens das igrejas e congregações religiosas, adaptados, por vezes, às necessidades da nova organização social.

Para o Convento de Jesus, de Aveiro, de nobres e gloriosas tradições, visionou-se logo, e muito bem, visto que a sua função específica cessara, a instalação dum Museu regional.

O historiador aveirense MARQUES GOMES, que viria a ser o primeiro director da preconizada instituição e que foi o seu esforçado organizador, iniciou no semanário local "Campeão das Províncias", a partir de Novembro de 1910, uma série de 56 artigos visando o futuro Museu; com base neles, o Dr. JOAQUIM DE MELO FREITAS, homem de relevo na sociedade aveirense, republicano culto e conhecedor de muita coisa do passado da sua terra, dirige então ao Ministro da Justiça, Afonso Costa, com data de 6 de Fevereiro de 1911, uma exposição que imprimiu, com o título de Feixe de motivos por que na parte nobre do convento de Jesus d'Aveiro se deve installar um museu districtal ou municipal (15), consubstanciando assim o que em grande parte constituía a opinião pública local, dominante na época.

Relacionando aí o que ele entendia por «Objectos que desde já podiam integrar-se no Museu», cita, pela primeira vez, ao que parece, pois não encontro em data anterior semelhante designação em parte alguma, «o Esculápio do jardim dos Tavares» (pág. 19, op. cit.), que outra coisa não era senão designação nova, erudita, do velho Menino-Jardim do apelido popular, e da grandiosa estátua de pedra de figura humana, antiquíssima, do memorialista PINHO QUEIMADO, de 1687.

Em que fundava MELO FREITAS a sua classificação não o diz o escritor, nem creio que alguém lho perguntasse ou com tal se importasse. As preocupações do momento eram outras.

O Museu constituiu-se, a estátua lá se arrumou discretamente no próprio ângulo do claustrinho onde ainda hoje se encontra, e nela se não falou nunca deliberadamente; apenas por incidente tem sido lembrada.

Em 1921 inicia MARQUES GOMES nova série de artigos no "Campeão das Províncias", com destino à História do Museu (16) e, tendo de referir-se ao Menino-Jardim, já escreve também, / 110 / embora não totalmente convencido, como se depreende da reserva adverbial que condiciona a frase: «No angulo N. L. encostada á colunata uma estatua de tamanho maior do que o natural, talvez um Esculapio. Fazia parte dos jardins do antigo palacio dos Tavares, que ocupavam toda a actual praça de Luiz Cypriano, e que o beneficiado Christovão de Pinho Queimada (sic) descreveu assim em 1687.»... etc. (págs. 52 e 53 da separata).

Na Notícia sumaríssima [do] Museu de Aveiro, de 1926, já do seu novo Director, não encontro qualquer notícia da estátua.

Mas em 1944, descrevendo as colecções do Museu no 3.º volume do Guia de Portugal, regista o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO a existência da notabilíssima peça arqueológica, a ela se referindo nestes precisos termos: «A um canto do claustro, onde ainda valem momentos de atenção os azulejos que o decoram e que remontam aos séculos XVI e XVII, vê-se uma estátua giganteia de bárbaro cinzelado: é o Menino-Jardim, na nomeada popular; talvez um Esculápio, como lhe chamava o Dr. MELO FREITAS, proveniente do jardim dos Tavares, senhores notáveis, cuja casa com seus resquícios dos séculos XVII e XVIII, é hoje pertença do liceu.» (17) (págs. 486-487)

*

Percorrido assim o sector bibliográfico do problema, embora uma ou outra referência mais possa ter escapado à nossa inquirição, oculta em coluna de velho jornal ou em memória que não tenhamos conseguido conhecer, é oportuno resumir, e discutir depois, as hipóteses de identificação / 111 / apresentadas, que se podem reduzir a duas, correspondendo respectivamente à explicação popular e à interpretação erudita da estátua:

Dum lado − a lenda do escravo negro que defende o patrão do ataque da cobra, com a variante apresentada, mais tarde, por FERREIRA DA CUNHA.

Do outro − a declaração expressa de PINHO QUEIMADO, do séc. XVII, de que a estátua é antiquíssima, considerada, naquela época, por alguns, como romana, a que pode somar-se a identificação de 1911, de MELO FREITAS, classificando-a de Esculápio (divindade greco-romana tutelar da Medicina, como é sabido).

a) A lenda popular, digamos assim, não resiste à mais ligeira análise.

É mais do que problemática uma exteriorização destas da gratidão patronal, em época, demais a mais, tão anterior ao século XVII que no tempo de PINHO QUEIMADO já nem sequer recordada seria, pois a não menciona, preocupando-se, aliás, com a origem da estátua. O significado desta não lhe foi, de maneira nenhuma, indiferente, como vimos, e é bem de crer que se tenha procurado informar junto da família proprietária, pois mostrou bem, em quanto escreveu, conhecer a terra, que era a sua, e a sociedade local.

E quando, mesmo, o absurdo de tal historieta se pretendesse admitir, que explicação aceitável se poderia apresentar para o flagrante decalque duma cabeça da estatuária grega praticado pelo escultor dum monumento destinado − na hipótese − a memorar a dedicação (ou o sacrifício, mesmo) do escravo duma família que se fixou em Aveiro por volta de 1500? Tudo o que se alegasse, seria, necessariamente, forçado, e não faz sentido.

Compatível com as condições duma figuração adaptável ao caso, haveria apenas, em todo o conjunto, se quiséssemos contemporizar com a simples aparência (desprezando o seu significado histórico), o pormenor das manaias, ou calção.

Compatível, mas não exclusivo, e à primeira vista apenas; pois tal indumentária, antiquíssima, coaduna-se igualmente, como veremos, com a época apropriada à hipótese de interpretação erudita que para o monumento nos parece preferível propor. / 112 /

Não é possível, de resto, inserir na lenda do escravo que matou a cobra no Cojo a atitude majestática, de divindade, que daquela veneranda cabeça manifestamente irradia, nem a posição, clássica e convencional, do braço direito, mais própria, sem dúvida alguma, a insígnia solene ou bastão simbólico, do que a varapau de criado.

O braço esquerdo e a mão que segura a serpente, pendem com inteira naturalidade, como se se tratasse dum animal familiar, e não em luta com o homem.

A fábula de que RANGEL DE QUADROS e FERREIRA DA CUNHA se fizeram eco é de invenção tardia, e inteiramente popular, sem consistência alguma, no género das etimologias populares toponímicas que por todo o país o século XIX (principalmente) espalhou, julgadas já hoje, definitivamente, pela Filologia consciente.

A própria região de Aveiro, delas foi, igualmente, vítima.

Será necessário recordar a lenda da terra de muitas aves, invocada para justificar o nome de Aveiro, ou a do caçador de aves da ria, assim apelidado também?

E a famosa ilha boa, proposta para étimo de Ílhavo, com a variante, ainda, da história do rapaz que dizia para a velha: − vamos à ilha, avó, e que, de tanto o dizer, deu nome à terra?

São fenómenos locais idênticos, em origem e processo.

b) Merecerão porém maior consideração as declarações de PINHO QUEIMADO, de 1687, de que a estátua era, já então, antiquíssima e que alguns a consideravam de origem romana?

Inteiramente o cremos, e desde já, sem rodeios nem reservas, aceitamos qualquer dos dois pontos que a narrativa do memorialista envolve:

1.º − antiquíssima − A menos que estejamos em presença duma também antiga falsificação, − e coisa alguma, por enquanto, nos autoriza a supô-lo − o arcaísmo da estátua é, por si, evidente, fugindo o seu módulo, inteiramente, à figuração da estatuária renascentista, da manuelina, da gótica, ou, sequer, da românica.

Como a princípio notámos já, a par duma venerável cabeça, toda tratada ao gosto clássico, irradiando majestade e nobreza ainda hoje reconhecíveis, e da primorosa execução do réptil, cheio de vida e de movimento, apesar das suas dimensões, o corpo do gigante é de modelação verdadeiramente bárbara, rudimentar, até, se considerarmos a expressão de determinados pormenores anatómicos.

Procurando na estatuária portuguesa, levada, mesmo, à época pré-românica, nada se nos depara que explique uma execução daquelas, nem, principalmente, tal concepção simbólica.

/ 113 / [Vol. XVII - N.º 66 - 1951]

Forçoso se torna subir à antiguidade clássica e procurar na galeria dos deuses e dos heróis do paganismo explicação aceitável para aquela cabeça e para a simbólica do conjunto, bem como justificação social − ambiente, digamos − para uma obra desta natureza.

Não esqueçamos, também, que toda a memória de PINHO QUEIMADO revela profundo conhecimento da terra, escrúpulo de informação, e absoluta integração do autor no meio social; não lhe teria sido difícil colher noticia mais pormenorizada acerca das origens da estátua, se os proprietários dela, ou alguém da vila, estivessem em condições de satisfazer a sua curiosidade e de responder à sua indagação.

O próprio facto do memorialista registar que «ha quem diga que é do tempo dos romanos, mas isto é tradicção que me parece sem fundamento», documenta que ele procurou informar-se e que ponderou as opiniões recolhidas.

Documenta mais que nos proprietários do palácio se obliterara já a lembrança da origem da estátua, tão antiga era na casa, ou então, que provinha deles, exactamente, a tradição de ser obra «do tempo dos romanos».

Seja como for, à história pessoal dos Tavares em Aveiro não andava a estátua ligada; os seus descendentes não podiam ter esquecido um facto acontecido com antepassados seus há muito menos de duzentos anos (visto que vieram para Aveiro por 1500 e em 1503 lhes doou D. Manuel a torre que serviria de base ao palácio) e a que se teria querido, na hipótese, dar tamanho relevo e representação material tão perdurável, única no género, até. O memorialista não seria também, positivamente, já acima o notámos, de idade juvenil quando escreveu a sua descrição da vila, e havia necessariamente de ter falado, desde novo, com gente de mais idade.

É, pois, sem dúvida alguma, antiquíssima a estátua, como diz a memória de 1687.

2.º − origem romana − A PINHO QUEIMADO repugnou a tradição, naturalmente porque a execução da estátua se afastava, por falta de indumentária solene, do tipo romano que ele tinha em mente, e porque se havia esquecido por completo já o significado do seu estranho simbolismo. No século XVII tudo aquilo nada significava em especial; era uma simples curiosidade de pedra, de tempos muito remotos, que dava realce e certo carácter de antiguidade, sempre estimados por gente de tratamento, ao jardim duns senhores faustosos e de bom gosto.

Cremos, porém, que já a dúvida não teria surgido ao escritor se, por exemplo, ampla túnica baixasse dos ombros do gigante, em cadenciadas pregas, como ostenta a maioria das estátuas do panteão greco-romano, ou as representações plásticas imperiais, mais conhecidas entre nós; ou, ainda, se / 114 / nudez integral, por igual venerável, sugerisse a PINHO QUEIMADO a presença dalgum respeitável Deus baixado do Olimpo distante, em rude efígie, a remoto santuário da Lusitânia...

Foram, sem dúvida, as manaias (aquele plebeíssimo calção) que desorientaram o bom do memorialista e o encheram de escrúpulos para aceitar a tradição da origem romana endossada à «grandiosa estatua de pedra de figura humana», que ele, não obstante, classifica de antiquíssima.

Ora as manaias constituem, afinal, o mais seguro elemento para documentarmos a antiguidade e a origem romana do monumento.

Em 1.º lugar, aquela invulgar indumentária não se apresentaria, nunca, ligada a tão solene peça escultórica por mero acaso e se não tivesse significado próprio; é absolutamente incompreensível e indefensável a hipótese de um simples capricho, ou fantasia, do Artista.

Depois, é possível apresentar, não em Portugal mas em Espanha, pelo menos uma escultura da época romana não só de relativas afinidades simbólicas com a estátua do Museu de Aveiro, mas vestida de indumentária equivalente (o que não quer dizer, de forma alguma, que o significado das duas estátuas seja o mesmo, diga-se desde já, e frise-se devidamente). É o Cronos leontocéfalo do Museu de Mérida, achado nesta cidade em 1902, e de significação definida.

Tronco inteiramente nu, e simples calção cingido à cinta por cordão idêntico (apenas mais volumoso) ao das manaias do Menino-Jardim. Notável, até, a semelhança do enrugamento desta peça de vestuário numa e noutra estátua. Uma serpente, também, se integra no conjunto, envolvendo por completo o corpo do deus, infelizmente bem mais mutilado do que o do Museu de Aveiro, ao passo que, no exemplar que estamos estudando, o réptil enlaça unicamente a sua perna direita.

Identificada, pelo menos, desde 1912 pelos arqueólogos GOMES-MORENO e J. PIJOAN no cuaderno primero dos Materiales de Arqueología Española (18), como representación / 115 / principal del culto mitriaco, esse cuerpo de varón bragado, envuelto par una serpiente, ... «puede atribuirse al siglo II después de Cristo.» (fig. 4).

As bragas (o tal calção, espécie de manaias, do Menino-Jardim), como o barrete frígio, eram indumentária característica dos soldados persas, que trouxeram consigo, para Roma, o culto de Mitra, espalhado, depois, pelo Império com as expedições militares romanas.

O cerro de San Albin, junto a Mérida, parece ter sido, justamente, um santuário importante da religião mitraica, e o Museu daquela cidade espanhola conserva outros exemplares escultóricos documentadores daquele culto, em dois dos quais podemos ver as bragas, embora não constituam, como no Cronos leontocéfalo e no Menino-Jardim, a indumentária única da estátua.

À parte da Lusitânia, integrada, hoje, em Portugal, também o culto de Mitra chegou, localizando-se, mesmo, um Mithraeum em Tróia, junto a Setúbal, à beira-mar, onde se encontrou um baixo-relevo notabilíssimo, alusivo ao culto de Mitra, e no qual figuram personagens bragadas e uma serpente, peças / 116 / importantes do simbolismo daquela religião (19). Em Olissipo igualmente se documenta a existência do referido culto.

O Rev. EUGÉNIO JALHAY dedica ao baixo-relevo de Tróia sábias considerações no fasc. 5: do voI. XLVI da revista Brotéria (1948), terminando o seu relato com as seguintes interrogações:

«Finalmente, notemos também a circunstância de o Mithraeum de Tróia estar situado numa feitoria ou entreposto de embarques, que outra coisa não parece ter sido essa antiga povoação. No grande porto de Óstia, que então e ainda hoje é o porto marítimo de que se serve Roma, havia nada menos que cinco (20). Seria o deus Mitra um protector especial dos viajantes? Teria vindo de Óstia, através do Mediterrâneo e do Atlântico, o baixo-relevo de Tróia (21)

VERGÍLIO CORREIA (O domínio romano) reproduzira também o referido baixo-relevo no 1.º vol. da História de Portugal, de Barcelos, fazendo dele um breve relato (págs. 251 e 257). GARCIA Y BELLIDO (op. cit.) reproduz igualmente, e descreve, a figuração mitraica de Tróia.

Adiante voltaremos ao assunto, frisando apenas, por agora, que o pormenor das manaias do Menino-Jardim, longe de afastar a hipótese de a estátua datar da época luso-romana, parece, antes, contribuir poderosamente para dar razão àqueles contemporâneos de PINHO QUEIMADO que assim a consideravam «ha quem diga que é do tempo dos romanos»)...

Ao característico vestuário consagra o conhecido Dictionnaire des Antiquités grecques et romaines d'après les textes et les monuments, de DAREMBERG et SAGLIO, a seguinte nota:

«Bracae ou BraccaeLes braies ou pantalons ont été, presque jusqu'à la fin des temps anciens, considérés par les Grecs et les Romains comme un vêtement caractéristique des Barbares1. Tandis que tous les peuples qu'ils qualifiaient ainsi (au moins en Europe et en Asie) se défendaient contre les intempéries de climats très inégaux, en s'enveloppant les jambes et les cuisses de pantalons tantôt larges et flottants, et comparables à des sacs, que les Grecs appelaient pour ce motif Θúλαχοι 2, tantôt étroitement ajustés, aucune pièce du costume ne leur / 117 / paraissait à eux-mêmes plus étrangère et n'était plus en dehors de leurs habitudes. Elle est très fréquemment représentée dans les oeuvres d'art, où elle sert toujours à faire reconnaître des personnages ou des divinités barbares [BARBARI]. 3

Cependant il vint un temps où des Romains qui habitaient ou faisaient la guerre dans les pays des Barbares, obéirent à leur tour à la nécessité qui avait forcé ceux-ci à se couvrir les jambes.

Dans les bas-reliefs de la colonne de Trajan, où sont représentées les campagnes de cet empereur dans les contrées voisines du Danube au commencement du II.e siècle, on voit un très grand nombre de Romains, soldats et officiers, portant des chausses étroites qui descendent un peu plus bas que le genou. La figure 873, détachée d'un de ces bas-reliefs,4 permet d'examiner cette partie du costume, en quelque sorte séparément; car le soldat qui la porte a le reste du corps nu. On voit que la culotte était serrée autour de la taille, probablement à l'aide d'une ceinture (πεpίξωμα)5 pareille à cette des braies gauloises. Dans les figures voisines, et dans celles qu'on peut observer sur d'autres monuments, la cuirasse ou la cotte couvrant les hanches ne permet pas de saisir ce détail.

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1 HEROD. V, 49; VII, 61; EURIP. Cycl. 182; CIC.. Ad fam. IX, 15, 2: «braccatae nationes»; cf.  ln Pison. 23; VIRG, Aen. Xl, 777: «barbara tegmina crurum»; TAC. Hist. lI, 20: «braccae barbarorum tegmina»; OVID. Trist. V, 7, 49: «laxis arcent male frigora braccis»; cf. IV, 6, 47; V, 10, 34; et JUV. VIII, 254; HYGIN. Poet. astr. I, 8.
2 ARISTOPH. Vesp. 1087; Schol. EURIP. Cycl. 482; Hesych.
3 Voy. les exemptes reproduits aux articles BARBARI, AMAZONES, AUXILIA, SCYTHAE, PARIS, MITHRAS, etc.
4 FROEHNER, Col. Trajane, pI. LXIX et XX.
5 VARR. ap. J. Lyd. De magistr. lI, 13, Cette ceinture est visible dans les bas-reliefs de l'arc d'Orange, (Caristie, Monum. d'Orange, pl. XVI), où des braies sont figurées parmi les dépouilles des Gaulois; Comp. les braies trouvées dans les tourbières du Jutland (ENGELHARDT, Thorsbjerg Mosefund). Voy. aussi de Longpérier, BulI. de l'Athenaeum français, 1856, p. 42.»

Só dentro da figuração habitual ao culto de Mitra ou então nas representações iconográficas de barbari, que os romanos empregavam em seus monumentos, aquela peça de vestuário tem / 118 / explicação e se encontra. Ora a religião mitraica espalhou-se no mundo latino por virtude, principalmente, das expedições militares dos romanos. E passado o período da dominação romana, uma estátua destas não fazia sentido nem a civilização cristã a admitia ou justificava.

Temos, pois, como verdadeira a tradição de que PINHO QUEIMADO duvidava.

Assim, a estátua pertence (quanto a nós, bem entendido) à época luso-romana, quer represente uma figura do panteão de Mitra, quer um bárbaro da estatuária decorativa romana.

Na fig. 6 reproduzimos o baixo-relevo do monumento de Adamclissi, na Dobrogea, que representa justamente um / 119 / bárbaro prisioneiro dos romanos, vestido com as características bragas, como a estátua do Museu de Aveiro; e comunica-me o Prof. ALEXANDRE PHILADELPHEUS, antigo director do Museu nacional de Atenas, que outros prisioneiros bárbaros, idênticos, se encontram esculpidos num arco triunfal em Saint-Rémy (França); e na Grécia, em Corinto, a porta triunfal da Agora apresenta, ligadas a quatro colunas da ordem coríntia, outras tantas colossais estátuas de cativos bárbaros, no género da figura em causa.

Na Bulgária e na Roménia, outras se conhecem também, segundo aquele eminente arqueólogo, meu distinto amigo.

Desejaríamos extratar as obras de LABORDE e ESPÉRANDIEU a propósito de prisioneiros gauleses do império romano, e bem assim as de BEMIDORF e NIEMANN, mas a bibliografia de que em Portugal se dispõe é muito limitada e com isso nos temos de conformar.

Declarámos acima que às palavras de PINHO QUEIMADO associávamos, para a constituição global da interpretação erudita da estátua, a atribuição de MELO FREITAS, embora por ele indocumentada.

Estamos, segundo o escritor aveirense, em presença dum Esculápio. Sem reticências ou reservas de espécie alguma ele o afirma; não lança sequer a ideia a título de hipótese; escreve = o Esculápio do Jardim dos Tavares = (loc. cit.), como se se tratasse de identificação há muito assente e incontestável, não obstante debalde a termos nós procurado por toda a bibliografia aveirense.

Vimos ainda a simpatia condicionada – talvez um Esculápio – com que MARQUES GOMES e, por último, o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO, acolheram essa identificação (22).

Analisada, tanto quanto nos foi possível, a composição escultórica, e fixados alguns pontos que se nos afiguram suficientemente comprovados, é oportuno, agora, perguntar se / 120 / aquela estranha composição poderá, de facto, ser uma estátua de Esculápio, e se, na realidade, o será.

Esculápio, o Asclépios da mitologia grega, deixou suficiente registo nos mais consagrados escritores do velho Mundo; referem-lhe os divinos predicados HOMERO, HESÍODO, PÍNDARO, PAUSÂNIAS, GALIENO, ESTRABÃO, e outros mais. Às suas substanciais narrativas tem ido historiadores e biógrafos de todos os tempos buscar a base de quanto, a seu respeito, povoa as mitologias, as enciclopédias, e os dicionários da Fábula.

A descoberta, já no século presente, de magnífico material arqueológico exumado de variadíssimos santuários(23), e a atenção que a esse remoto período da história da Medicina tem sido prestada por eminentes Professores da especialidade, como os italianos ADALBERTO PAZZINI e PIETRO CAPPARONI, e, em França, JULES GUIART e LOUIS LENOURY, permite-nos trazer ao perturbante problema o confronto, sempre vantajoso, de elementos muito para ponderar e que se afiguram fundamentais.

Não só a título informativo, como, ainda, para fixarmos ideias necessárias, caracterizaremos Esculápio utilizando para isso as páginas a ele consagradas pelo grande historiador da Medicina, na Universidade de Lyon, Prof. JULES GUIART, seguramente um dos mais recentes e cuidadosos estudos que o assunto tem merecido:

«ESCULAPE. – ASKLÉPlOS ou ESCCLAPE parait avoir vécu au XIll.e s. avo J. C. HOMÈRE n'en fait nullement un dieu, mais il parle de lui comme du plus grand médecin de l'époque. Il était prince de Tricca et d' Ithome, villes de Thessalie situées au pied de la chaîne de Pinde. II passe pour avoir inventé un remède souverain contre les hémorroïdes, une sonde pour explorer les plaies, l'art de panser celles-ci avec des bandelettes et des ligatures, l'art enfin de réduire les fractures et les luxations. Quant à ses remèdes, ils consistaient principalement en racines et en infusions de plantes, dont CHlRON lui avait enseigné les vertus. Il mêlait aussi les charmes et les enchantements à la pratique médicale et croyait, comme ORPHÉE et CHlRON, aux effets salutaires / 121 / et à l'action calmante de la musique. Si l'on en croit GALIEN, on lui doit aussi d'avoir jeté les premiers fondements de l'hygiène: pour vivre vieux et bien portant il conseillait en effet la sobriété, jointe aux exercices du corps, teIs que la gymnastique, les courses à pied et l'équitation. Avec le temps son caractère humain disparut et la reconnaissance des hommes l'ayant divinisé, il prit pIace dans l'Olympe grec, comme fils d' APOLLON et comme dieu de la médecine.

Voici maintenant sa légende telle que la racontent les poètes. Plusieurs fables courent sur sa naissance, toutefois, d'après la plus répandue, il serait le fils de la nymphe CORONIS et d' APOLLON. La nymphe, déjà enceinte des oeuvres du dieu, l'aurait trompé avec un simple mortel. ARTÉMIS, pour venger son frère, tua l'infidèle d'une de ses flèches. Mais APOLLON, voulant sauver l'enfant, ouvrit le ventre de la mère aussitôt après sa mort et c'est ainsi qu' ESCULAPE naquit par opération césarienne. C'était la seconde, la première ayant été pratiquée par MERCURE sur SÉMÉLÉ, pour donner le jour à Dionysos.

L'éducation d'ESCULAPE fut alors confiée à CHlRON, qui lui apprit le traitement des blessures et les vertus des simples, ce qui constituait toute la chirurgie et toute la médecine de l'époque. Plus tard il prit part, en qualité de médecin, à la fameuse expédition des Argonautes, où il se rencontra avec HERCULE et ORPHÉE. Les princes grecs, qui l'accompagnaient, furent tous atteints de maladies diverses, dont il les guérit, aussi revint-il en Grèce avec une renommée considérable. Dès lors il accomplit des guérisons tellement merveilleuses que PLUTON s'en émut, et, craignant de voir les Enfers se dépeupler, le fit foudroyer par JUPlTER. Dès qu'il fut mort on lui rendit les honneurs divins.

ESCULAPE est généralement représenté sous les traits d'un homme mûr, barbu, portant une chevelure assez longue que ceint parfois un bandeau; son visage doux et grave rapelle celui de JUPlTER. Il est généralement drapé dans un manteau ramené sur le bras gauche, de manière à envelopper les jambes, mais en laissant le bras droit et la poitrine à decouvert; les pieds sont chaussés de sandales. Il s'appuie toujours sur un bâton autour duquel s'enroule un serpent. On raconte que se trouvant un jour dans la maison d'un de ses malades ESCULAPE vit venir à lui un serpent, la gueule menaçante,' instinctivement il tendit son bâton et la bête s'y enroula. Telle serait l'origine du fameux «bâton serpentaire», dont on a fait l'attribut de la médecine, mais que l'on confond presque toujours avec le caducée de MERCURE, symbole des messagers et des marchands n'ayant rien à voir avec la médecine. Aux Pieds du dieu on voit parfois l'omphalos de Delphes, la Pierre sacrée d'APOLLON. Cest qu'en effet le culte d'ESCULAPE est né de celui d'APOLLON, le père ayant simplement délégué ses pouvoirs à son fils pour écouter / 122 / les prières des malades et les guérir. Nous verrons du reste qu'à Epidaure, si ESCULAPE est à la peine, APOLLON du moins partage avec lui les honneurs.

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Les serpents jouaient un grand rôle dans le culte d'ESCULAPE; c'étaient en somme les animaux qui lui étaient consacrés. Le Serpent, divinité chthonienne est en effet le symbole de l'inspiration prophétique, comme il est aussi l'emblème de la santé, car il se rajeunit sans cesse en quittant sa vieille peau. Les prêtres égyptiens les entouraient déjà d'un véritable culte, mais, en Grèce, le redoutable Cobra se transforme en une inoffensive couleuvre, que les prêtres d'ESCULAPE dresseront, comme nous le verrons plus tard, à différentes supercheries médicales». (La Médecine Crecque aux temps heroïques de Minos à Homere; 1925, págs. 32-35).

Os clássicos DAREMBERG et SAGLIO, por sua vez, caracterizam Esculápio nestes precisos termos (op. cit.):

Presque toujours Esculape est figuré vêtu d'un manteau qui, laissant le bras droit et une partie du buste découverts, est ramené sur le bras gauche et enveloppe les jambes à peu près entièrement. Il tient ordinairement le bâton du voyageur, autour duquel s'enroule un serpent, symbole de divination chez les Crecs et qui est l'acolyte de toutes les divinités médicales. Ses autres attributs les plus ordinaires sont une coupe, un rouleau ou une tablette pour écrire, l'omphalos de Delphes, le globe du monde . . . . . . . . . . . .

Outre le serpent, qui manque rarement à côté de l'image d'Esculape, le chien lui était consacré, en mémoire de celui qui l'avait découvert sur le mont Titthéion, et la chèvre en souvenir de celle qui l'avait nourri; mais, à cause de ce souvenir même, on s'abstenait en beaucoup de lieux de la sacrifier. On offrait au dieu communément un coq.

As descrições da figuração escultórica de Esculápio assemelham-se na generalidade dos arqueólogos, razão pela qual não acumularemos muitos mais depoimentos; transcreveremos unicamente MAXIME COLLIGNON, e CAGNAT et CHAPOT; diz o primeiro destes autores:

L'art archaïque le représente jeune et imberbe. Dans la statue chryséléphantine exécutée pour Sicyone, Kalamis avait encore suivi cette tradition, et représenté le dieu imberbe, appuyé sur un sceptre, tenant en main une pomme de pin. À quelle date s'introduit dans l'art le type plus âgé qui finit par prévaloir, et que reproduisent la plupart des statues conservées? Otfried Müller attribue cette innovation à un artiste de l'école pergaménienne, Phyromakhos, auteur d'une statue d'Asclépios consacrée dans le Niképhorion de Pergame. Mais avant cette date, l'art industriel du IV.e siècle connaissait déjà te type classique du dieu-médecin: les ex-voto trouvés sur l'emplacement / 123 / de l' Asclépiéion d'Athènes ne permettent pas d'en douter. L'école de Phidias, en créant l'idéal de Zeus, a sans doute aussi mis en faveur ce nouveau type d'Asclépios, qui offre avec celui de Zeus les plus grandes analogies.

«Dans l'art, le dieu de la médecine est une sorte de Zeus, aux traits adoucis; l'expression du visage, quelques fois imberbe, est clémente et sereine; sa large poitrine est à découvert, et l'himation jeté sur l'épaute drape le bas du corps. Il s'appuie sur un sceptre, ou sur un bâton noueux; un serpent s'enroule à ses pieds. C est le type que reproduisent les monnaies de Pergame, dans le groupe où il est associé à Hygie et à Télesphoros, et ta statue de Florence qui est peut-être inspirée par l'oeuvre de Phyromakhos»; (op. cit., pág. 314) – fig. 7.

Esculape(24), (Aesculapius), resumem os consa-grados CAGNAT e CHAPOT no clássico Manuel d'Archéologie romaine (T. l, 1917, pág. 421), romain n'est autre chose que l'Asklépios des grecs. C'est d'ailleurs d'Épidaure que, pendant la terrible peste de 290 avant J. – C., on avait fait venir un des serpents familiers du dieu de la médecine, qui, à l'arrivée devant Rome, avait quitté son navire et gagné l'île du Tibre. Les rites du culte restèrent en ltalie ce qu'iIs étaient, de même que l'image du dieu. C'est celle d'un homme mur, à longue barbe, les cheveux parfois ceints d'un bandeau; il porte presque / 124 / toujours un manteau qui laisse découverts le bras droit et une partie du buste, et ramené sur le bras gauche, mais qui enveloppe à peu près compIètement les jambes. Son atribut spécifique est le bâton du médecin en tournée, bâton noueux, fait sans doute d'un bois à lui consacré et autour duquel le serpent s'enrouIe. Généralement Esculape est debout; tantôt íl a le bâton appuyé au creux de l'aisselle droite, la main gauche dissimulée dans les replis du manteau; à ses pieds l'omphalos, pour une raison qui nous échappe(25); tantôt il manie un bâton plus court, n'atteignant qu'à mi-corps (26), et il place la main líbre sur la hanche; ou il présente une patère(27), ou íl tient un volumen(28), voire un bouquet de pavots(29). Plusieurs animaux lui sont consacrés: le chien, en souvenir de celui qui l'avait découvert enfant, exposé sur une montagne; la chèvre, en mémoire de celle qui l'avait nourri; le coq, qu'on avait coutume de lui sacrifier.

Esculape n'apparait guère couché ou assis que dans les bas-reliefs(30) et alors accosté d'habitude de sa fille Hygie déesse de la santé, dont les Romains ont conservé le nom, traduit à l'occasion par Salus ou Valetudo. Le type de celle-ci est moins fixe que celui d'Esculape.

Através das transcrições que acima ficam, já o leitor a quem o assunto interesse pode fixar ideias acerca do tipo escultórico usual representativo de Esculápio (fig. 8); propositadamente sacrificámos a brevidade da exposição, transcrevendo por extenso aqueles descritivos, porque por experiência própria conhecemos como será difícil compulsar a bibliografia da especialidade, mormente a quem viva longe das grandes bibliotecas; espécies houve, que desejaríamos consultar, e que, não obstante toda a diligência empregada, não lográmos encontrar não só em Coimbra como nas bibliotecas de Lisboa; e as que citamos não são, também, vulgares.

Fixou-se, como dizemos, o tipo clássico de Esculápio.

Mas as variantes, de pormenor, nos acessórios próprios, são numerosas. Se DAREMBERG et SAGLIO registam, por exemplo, que «un certain nombre de statues qui ont été conservées, concordant avec les médailles, nous montrent Esculape sous les traits d'un homme mûr, barbu, portant / 125 / une chevelure abondante que ceint un bandeau», LOUIS LENOURY, por sua vez, que dedicou magnífica dissertação à história do caduceu (31), não há muitos anos, frisa bem expressamente que «dans les statues d'Esculape, le serpent n'est pas toujours enroulé autour du bâton. Il est tantôt libre, tantôt enroulé autour du bras ou autour du corps»...

Dans le sanctuaire d'Épidaure, Esculape avait une statue d'or et d'ivoire, oeuvre du sculpteur Trasymides, de Paros. II était représenté assis sur un trône, la main gauche appuyé sur le bâton traditionnel, mais le serpent se tenait libre à la droite du dieu qu'en effleurait la tête du bout des doigts. Cette statue nous est connue par les monaiies d'Épidaure et par la description donnée par Pausanias.» (pág. 41).

No Esculápio de Ampúrias, por exemplo, existente no Museu de Arte e Arqueologia de Barcelona, e reproduzido por GERHART RODENWALDT no volume consagrado a Arte Clásico (Grecia y Roma) (32) e também em /

126 / ANTONIO GARCÍA Y BELLIDO, Hispania Graeca, III, láminas LVII a LX, e descrito no voI. II, págs. 130 e segs., que discute a proveniência daquela obra de arte, a serpente não se enrolava no bastão: «le faltan los anteblazos y el baston rústico característico; pero se conserva, como pieza aparte, la serpiente enroscada».

Exemplos de bastões volantes, por vezes de bronze, não escasseiam também, conquanto a interpretação outorgada por LENOURY a esta peça seja a de que se não trata dum bastão mas dum autêntico tronco de árvore, alusão, justamente, à Arvore da Vida.

A história e interpretação moderna desses dois símbolos – bastão e serpente – reunidos tanto no caduceu de Mercúrio como na figuração de Esculápio, são curiosíssimas e encontram-se traçadas com superior erudição na obra de LENOURY e em MARCEL BAUDOUIN, Préhistoire du Caducée; não as reeditaremos aqui porque nos afastariam do objectivo limitado das nossas considerações, conquanto intimamente com ele se relacionem, fácil nos sendo, por consequência, a articulação respectiva se necessário fosse ou se pretendêssemos alongar-nos.

Não nos embrenharemos, também, na discussão do mito de Esculápio e sua relacionação com o culto solar, nem tampouco na explanação da tese da ofiolatria(33), pois, embora tudo aqui pudesse encontrar cabimento, considerado o nosso especial ponto de partida, a verdade é que não só não temos interesse de qualquer natureza em alongar estas breves notas, como inteiramente reconhecemos nada poder acrescentar de novo, neste momento, para o debate dessas conhecidas teses, interessantíssimas, aliás.

Diremos apenas que a Lusitânia conheceu e praticou o culto de Esculápio. LEITE DE VASCONCELOS (Rel. da Lusit., IlI, 263) regista inscrições dedicadas ao deus em S. Tiago de Cacém, em Lisboa, em Vizela e em Braga.

HUBNER (Notícias arqueológicas de Portugal) cita e transcreve duas provenientes das termas da Rua dos Retroseiros, de Lisboa, e nos Elementos para a História do Município de Lisboa, vols. I, III e VIII, o templo consagrado a Esculápio é igualmente referido, bem como na Revista Archeologica (pág. 33 do voI. III) em artigo de BORGES DE FIGUEIREDO.

Acrescentaremos, por nossa vez, que no Museu de Beja se encontra uma estátua daquela divindade, revestida de himation, à qual falta já a cabeça. / 127 /

Da fixidez dos tipos escultóricos clássicos dão-nos conta PERROT et CHIPIEZ, notando que, ao contrário do que no fetichismo acontece, pois lhe é indiferente a forma.

...«ll en est tout autrement des dieux du polytheïsme. L'artiste est appelé à les distinguer par le choix et par la combinaison des formes dont il se sert pour créer des types dont chacun doit être la traduction sensible d'une idée générale.

. . . . . . Tel est le principe que la statuaire grecque s'est efforcéé d'appliquer, et un plein succès a couronné son effort. Devant un fragment de torse viril, I'archéologue saura dire si c'est celui d'un Zeus, d'un Hermes, d'un Apollon ou d'un Bacchus.

Suivant que le sculpteur se sera proposé de représenter tel ou tel de ces dieux, il aura donné plus ou moins de largeur aux épaules, et plus ou moins de fermeté aux chairs de son marbre. Là ce seront des muscles puissants, signes d'une force adulte qui bat son plein; ici on sentira la vigueur sèche et nerveuse de l'éphèbe rompu aux exercices de la palestre; ailleurs le contour sera plus souple: il ira même parfois jusqu'à rappeler les rondeurs du corps de la femme et à rendre le sexe presque douteux. Que si l'on vient ensuite à retrouver la tête qui complète la statue, tout y sera en rapport avec le caractère du buste, tout, jusqu'au moindre détail de la face, la fraîcheur d'une peau lisse et tendue ou les rides qui sillonnent le front, la chevelure assemblée en grandes masses qui donnent à l'ensemble un air de majesté, ou courte et dure comme un fin gazon, ou bien encore relevée en chignon sur le sommet du crâne et répandue sur le cou en boucles maltes et tombantes, Ia barbe enfin, qui est ample et fournie chez un Zeus, un Poseidon ou un Esculape, tandis qu'il n'y en a pas trace sur le menton de ceux des immortels, Apollon et Bacchus, que l'imagination a voulu parer des grâces d'une jeunesse éternelle.» (Histoire de l'Art dans l'Antiquité, pág. 21 do vol VII).

Observaremos contudo que nos períodos mais adiantados já da estatuária greco-romana e, principalmente, fora dos países de origem, onde as oficinas dispunham de modelos de inteira pureza e a tradição se mantinha ainda viva, a confusão é, por vezes, possível, e o arqueólogo encontra-se, não raro, em dificuldades, quando o emblema diferenciador desapareceu por mutilação ou porque constituísse acessório volante, que se juntava à estátua.

Exemplo curioso da dificuldade que a falta dum atributo decisivo faz, encontra-se em PIERRE PARIS, Le Musée archéologique National de Madrid (1936); descrevendo bronzes hispânicos, reproduz (PI. XLII) uma figura barbada, tronco nu, descalça, himation envolvendo o corpo da cinta para baixo e traçado sobre o braço esquerdo, mão direita não se percebe bem como, e escreve: «un Esculape (?) ou simplement / 128 / un orateur dont une heureuse patine noire fait valoir par un habile jeu de lumière et d'ombre la noble tête phidiesque, le vigoureux torse nu et la draperie largement plissée qui enveloppe la taille et les jambes. C'est, dans la série nombreuse et trop souvent banale des images du dieu debout, présentant sa coupe à remèdes, une des plus vivantes et du style le plus dégagé.

É fundamental, portanto, a peça característica de cada tipo de divindade, e o seu desaparecimento pode induzir o arqueólogo em erro, ou levá-lo, prudentemente, a reservar uma classificação definitiva da peça em discussão.

Será este último o caso da estátua do Museu de Aveiro, pelo desconhecimento irreparável que há do emblema por ela exibido, outrora, na mão direita.

Percorrendo a colecção que a antiguidade nos legou, de figuras de deuses e de heróis, várias cabeças encontramos absolutamente idênticas à da estátua aveirense, representando, por exemplo, Júpiter, Neptuno, Hermes, Diónisos, Esculápio, Hércules.

Por esse lado, portanto, a atribuição lançada por MELO FREITAS em 1911 podia aceitar-se, embora outras lhe pudessem igualmente caber se considerássemos apenas a cabeça.

A posição da serpente também não impede a sua aceitação pois sabemos já que muito variou através dos tempos; além disso, articulando a sua presença com o módulo clássico da cabeça do gigante, a hipótese de se tratar dum Esculápio justifica-se. Não sei, mesmo, se tal associação se não deverá considerar decisiva para a identificação, pois a não se tratar dum Cronos mitraico – o que não poderá nunca ser, visto faltar a cabeça de leão, colocada, ao menos, em miniatura, sobre o peito, e não se encontrarem vestígios de asas, mesmo postiças, de encaixar – a serpente não poderá constituir característica fundamental senão de Esculápio, dentro, evidentemente, dos tipos clássicos, impostos à nossa consideração pelo módulo grego da cabeça e pela época luso-romana que supomos dever assinalar-se à feitura da estátua, visto excluirmos, por enquanto, a hipótese de se tratar duma falsificação, inábil, do século XVI, que o pormenor das bragas, e as invulgares dimensões da estátua nos levam a rejeitar, sem que mais fortes razões se invoquem para essa cómoda solução.

Com um tridente na mão e um golfinho ao lado (ou mesmo sem ele) poderíamos pensar num Neptuno (fig. 9); com um tronco de árvore, ou massa, na mão, e com uma pele de leão, seria Hércules. Etc.

A serpente, porém, enroscada na estátua, faz pender grandemente o prato da balança a favor de Esculápio, se, evidentemente, excluirmos a hipótese dum emblema na mão / 129 / [Vol. XVIl - N.º 66 - 1951] direita, hoje desaparecido, incompatível com Esculápio e decisivo a favor doutro; essa particularidade dificilmente virá a obter solução; só pelo aparecimento doutra estátua, idêntica e completa, a poderia ter.

Percorrendo a copiosa relação dos principais atributos das divindades, cuidadosamente organizada pelos arqueólogos franceses R. CAGNAT e V. CHAPOT (Manuel d'Archéologie romaine, I, 467 e segs.), encontramos a serpente a condicionar a simbólica de Aesculapius, Apollo, Bacchus, Bonus Eventus, Ceres, Cybele, Genius, Genius Mithriacus, Hecate, Hercules (infans), Hygia, lsis, Mithra, Nantosvelta, Pluto, Rosmerta, Sabazius, Salus; excluindo, da lista, as oito divindades femininas aí relacionadas, a figuração das dez restantes, masculinas, só no caso de Esculápio coloca em posição primacial, que pode chegar até excluir por completo qualquer outro atributo, a serpente.

Mas o pormenor das bragas, como resolvê-lo?
A presença de tal peça de indumentária, de características e proveniência definidas, significaria então, muito simplesmente, que a estátua proviria da oficina dum centro mitraico, e teríamos assim perante nós um caso interessante de adaptação dum velho mito a uma ideologia diferente; sobreposição de civilizações: diríamos, por exemplo, um Esculápio mitraico; em vez do clássico himation, que aparece em quase todas as figurações do deus da Medicina, as bragas características dos adeptos de Mitra, que assim teriam englobado no seu panteão aquela divindade grega, de culto muito espalhado em todo o mundo clássico.
/ 130 /

Exemplos de adaptações dessas fornece-nos em abundância a história das religiões de todos os tempos, sem exclusão, sequer, do cristianismo.

FRANZ CUMONT, o historiador máximo do mitraísmo, regista, com exemplos vários, que o mazdeísmo sofreu alterações de adaptação em contacto com os cultos indígenas; «certains rapprochements entre les conceptions réligieuses des deux races durent fatalement se produire.» (Les Mystères de Mithra, pág. 16, 2.ª ed.).

E mais adiante:

«Un certain nombre de figures ont été empruntées telles quelles aux tvpes traditionnels de l' art gréco-romain, Ahura-Mazda, détruisant les monstres soulevés contre lui, est un Zeus hellénique foudroyant les géants; Verethraphna est transformé en un Hercule; Hélios est l'éphebe à longue chevelure monté sur son quadrige habitueI, Neptune, Vénus, Diane, Mercure, Mars, Pluton, Saturne se présentent à nous sous leur aspect ordinaire avec les vêtements et les attributs que nous leur connaissons de longue date. De même les Vents, les Saisons, les Planètes avaient été personnifiés avant la propagation du mithriacisme, et celui-ci n'a fait que reproduire dans ses temples des modèles depuis longtemps vulgarisés.» (pág. 184).

...«comme le judaisme alexandrin, le mazdéisme en Asie-Mineure s'était humanisé sous l'influence de la civilisation hellénique. Transporté dans un monde étranger, il dut se plier aux usages et aux idées qui y régnaient, et la faveur avec laquelle il fut accueilli l encouragea à persévérer dans sa politique conciliante. Les dieux iraniens, qui escortèrent Mithra dans ses pérégrinations, furent adorés en Occident, sous des noms grecs et latins; les yazatas avestiques y revêtirent l'apparence des immorleIs siégeant dans l'Olympe, et ces faits suffisent à montrer que, loin de témoigner de l'hostilité aux vieilles croyances gréco-romaines, la religion asiatique cherche à s'y accommoder, du moins en apparence. Un myste pieux pouvait, sans renier sa foi, consacrer une dédicace à la triade capitoline Jupiter, Junon et Minerve; il prenait seulement ces appelations divines dans un sens différent de leur accéption ordinaire.» (págs. 149-150).

No próprio mithraeum de Mérida (segundo PIERRE PARIS, citado por VERGÍLIO CORREIA na História de Portugal, ed. de Barcelos, voI. I, pág. 249) apareceu uma estátua de Esculápio, «de tronco nu, teatral e vulgar» (34), o que favorece a coexistência, / 131 / de resto evidente, do culto de Esculápio na sede de tão importante mithraeum como foi Mérida.

Uma oficina daí ou dalgures terá lançado a simbiose dum Esculápio, ou do deus de que na verdade se trate, envergando as bragas de Mitra, deus supremo da ocasião. Demais a mais, Mitra era venerado como sendo o deus que distribui a saúde à Humanidade.

Mera hipótese, é claro, e natural desejo de encontrar explicação racional para o estranho simbolismo da estátua aveirense.

Como quer que seja, verifica-se que a oficina donde a estátua provém deve ter sido inteiramente distante de Roma, e muito reduzidas as possibilidades artísticas do escultor; a cabeça, tê-la-á copiado duma moeda ou dum ex-voto, tudo isso perfeitamente acessível; ainda conseguiu dar vida ao réptil e à mão que o domina, mas já lhe não foi possível vencer as dificuldades do material e das dimensões da estátua no resto do corpo, que lhe saiu como se vê (35), caso se não devam considerar retoques, já do tempo dos Tavares, certos pormenores anatómicos mais estranhos, como os vincos das costelas e da espinha dorsal.

Em resumo, portanto: para a estátua arcaica do Museu de Aveiro poder representar um Esculápio, como queria MELO FREITAS em 1911, teremos de o aceitar então influenciado pela iconografia mitraica; assim condicionada, poderá ser, de facto, o deus da Medicina; doutra forma, não. Mas decidir, agora, se, na verdade, aquele velho gigante pretendeu, ou não, interpretar a figura de Esculápio, é resposta que dificilmente, no estado actual dos nossos conhecimentos, se poderá dar; pelo menos, enquanto o desconhecimento do emblema da mão direita subsistir.

Doutras estátuas arcaicas, assim incompletas, dizia avisadamente PIERRE PARIS (op. cit., pág. 106): Pour la plupart / 132 / nous devons nous contenter de les désigner comme gréco-romaines, car elles manquent de ces traits particuliers qui classent les écoles.

Escrevendo da conhecida estátua de efebo da Villa Albani, assinada por Stéphanos, discípulo de Pasitelès, e que é do tipo de Argos, do tempo de Agélaidas, MICHEL FOLMAN (Introduction à l'étude de la Sculpture archaïsante-greque et greco-romaine), Paris, 1935, pág. 18) anota: «La structure du corps, les épaules larges et saillantes, la forme de la tête, l'agencement des cheveux, l'attitude raide, le geste conventionnel, sont pris d'un modèle archaïque».

Lá como cá... e mais não acrescentaremos.

*

Outro problema a considerar é, ainda, o da presença da descomunal estátua em Aveiro, qualquer que seja a interpretação que venha a ser atribuída ao colosso.

Donde terá ela vindo?

Trabalho de oficina local não é; Aveiro propriamente dita não se documenta na época luso-romana; duma cabeça de Jano que há poucos anos ainda se dizia ter sido encontrada na cerca do próprio convento de Jesus, depois Museu, foi esclarecida pelo Sr. Dr. FERREIRA NEVES (Arquivo do Distrito de Aveiro, voI. XI, de 1945, pág. 48) a proveniência: veio de Portalegre, trazida pelo Engenheiro-Director das Obras Públicas, João Honorato da Fonseca Regala. A esse esclarecimento posso acrescentar – e nunca é de mais insistir no restabelecimento da verdade – que o próprio organizador do Museu a que ela foi doada – JOÃO AUGUSTO MARQUES GOMES – deixou registada aquela mesma declaração de proveniência na história do Museu de Aveiro que iniciou no Campeão das Províncias, em 1921, como acima dizemos (36); e por igual forma LEITE DE VASCONCELOS se lhe refere no artigo que em defesa de MARQUES GOMES publicou no Diário de Notícias, em 24 de Novembro do mesmo ano (37); temos presente qualquer das duas peças bibliográficas. / 133 /

Dos arredores de Aveiro não faltam estações romanas, como é sabido; nenhum santuário, porém, se registou ainda no qual a estátua de Aveiro pudesse estar integrada, o que, aliás, não quer dizer que não venha a encontrar-se.

Há, portanto, o problema do transporte para Aveiro, quer referido ao tempo dos Tavares (1503) quer antes, visto que podia o gigante ter sido trazido anteriormente já para a vila, por outra família de tratamento e curiosidade.

Consideradas as dimensões e peso do monólito, os deficientes meios de transporte e os caminhos da época, só uma hipótese é plausível: a estátua deve ter vindo embarcada; doutro modo não chegaria inteira ao seu destino. E se não foi esculpida na própria sede do santuário donde os Tavares (ou quem a trouxe para Aveiro) a recolheram, há ainda a considerar o primitivo transporte da oficina para o santuário; pelas mesmas razões acima apresentadas, esse transporte tinha de ser por mar; e assim, parece legítimo concluir que tanto a oficina como o santuário que primeiro recebeu a imagem terão de ser, necessariamente, procurados em locais confinantes com o mar ou cursos de água.

A análise laboratorial do calcário em que ela foi talhada é elemento científico de primeira ordem que não pode ser dispensado no estudo definitivo do problema, que apenas enunciamos e cuja complexidade invulgar absolutamente reconhecemos.

Já acima vimos, aliás, que o porto de Óstia, na Itália, foi apontado por EUGÉNIO JALHAY como possível proveniência do baixo-relevo mitraico de Setúbal (Tróia), donde teria vindo «através do Mediterrâneo e do Atlântico».

E FRANZ CUMONT declara, em consequência do especial estudo a que dedicou a sua vida inteira:

«Nous avons des preuves nombreuses qu'une bonne partie des sculptures destinées aux cités provinciales était, sous l'empire, exécutée à Rome. C'est probablement le cas pour quelques-uns de nos monuments trouvés en Gaule, et même pour ceux qui ornaient un mithréum de Londres.») (op. cit., pág. 182).

«Néanmoins la majorité de nos monuments a sans aucun doute été exécutée sur place.... la certitude d'une fabrication indigène ressort pour beaucoup d'autres encore de la nature de la Pierre employée.» (pág. 193).

O jardim dos Tavares, em Aveiro, ficava, como é sabido, sobranceiro ao esteiro; as condições de desembarque não podiam ser mais favoráveis.

E que o transporte do pesadíssimo bloco se fez sem prejuízo do seu recorte escultórico, a integridade da estátua, ainda hoje verificável, o demonstra. / 134 /

Que concluir então?

Que estamos em presença duma figuração que não cabe nos moldes definidos até ao presente?

Esteticamente, já acima o frisámos, a serena majestade daquela veneranda cabeça impede-nos de aceitar que a figura seja a dum prisioneiro bárbaro; do mesmo modo a posição solene, convencional, do braço direito, e a serpente, contrariam a hipótese, pois tudo isso ficava sem explicação plausível: apenas o problema das bragas receberia solução aceitável.
Quanto a data, logo de princípio registámos que os olhos do gigante apresentam pupilas gravadas, circunstância essa que nos leva a colocar o trabalho para aquém do século II depois de Cristo, de acordo com a cronologia fixada para outras estátuas romanas da Península por GARCIA y BELLIDO (op. cit.) e por outros arqueólogos bem documentados.

Tenho, pois, para mim, e enquanto demonstração convincente se me não fizer do contrário, que a estátua do Museu de Aveiro é obra da arte romana provincial do séc. III e que representa uma figura mitológica do panteão greco-romano (deus, semi-deus, génio ou herói), a que a ideologia mitraica não é estranha.

O século IV afigura-se avançado demais para uma obra desta natureza, atenta a transformação social de então, iniciada com o Cristianismo.

Em Materiales de Arqueología española, notam com justeza os arqueólogos GOMES-MORENO e PIJOAN que se encontram «hoy, pasados ya los tiempos heroicos de WINCKELMANN, que fijó los tipos de los Inmortales»; novos horizontes se apresentam e novas hipóteses surgem; «a WINCKELMANN, para sus investigaciones, eran suficientes los mármoles de las colecciones romanas; hoy es necesario inventariar todo lo que se encuentre de esculturas clásicas, hasta los pequenos bronces y tierras cocidas, donde muchas veces se descubren rasgos de los modelos perdidos

Chamando, pois, a atenção dos arqueólogos nacionais e estrangeiros para a escultura arcaica do Museu de Aveiro, e divulgando, pela gravura e pela transcrição da bibliografia respectiva, a sua existência multi-secular, limitamo-nos, por agora, a enunciar os votos seguintes:

1.º – que a veneranda estátua possa, muito em breve, ser retirada do local onde provisoriamente se encontra desde 1911, com prejuízo da sua conservação (pois sobre ela descarregam as águas duma conduta dos telhados), e que seja recolhida onde se possa examinar e estudar convenientemente.  / 135 /

2.º – que se promova largo debate crítico acerca do seu simbolismo e data, a fim de tudo ser definido com a possível segurança e de harmonia com o excepcional interesse que este raro exemplar de estatuária arcaica – único em colecções portuguesas – indiscutivelmente apresenta.

Ao distinto Director do Museu – Senhor Dr. Alberto Souto – a quem a história de Aveiro e dos seus tesouros, culturais sempre mereceu inteligente e carinhosa atenção, confiadamente entrego o apelo aqui formulado para que a intenção que o ditou não venha a ser inteiramente perdida e possa receber, por seu prestigioso intermédio, o apoio oficial de que necessita.

Será mais um serviço, e valioso, a somar aos muitos que à cidade de Aveiro e à Arqueologia nacional dedicadamente tem prestado e que todos os estudiosos lhe reconhecem, tributando-lhe a elevada gratidão de que, por seu muito merecimento, se tornou credor.

ANTÓNIO AUGUSTO DA ROCHA MADAHIL

_________________________________________

(1)MELO FREITAS, Feixe de motivos por que na parte nobre do convento de Jesus, d'Aveiro, se deve instalar um museu distrital ou municipal, Aveiro, Tip. do «Campeão das Províncias», 1911; 22 págs.

(2)Cortados, atrás, por altura das orelhas, deixando a nuca a descoberto. 

(3) − Do exame atento da pedra parece poder concluir-se que a cabeça foi já colada no corpo; se, de facto, o foi, já assim deu entrada no Museu, não sendo fácil de determinar em que época tal colagem, que é perfeita, se terá realizado.

(4)Arquivo do Distrito de Aveiro, 111, 96. 

(5)D. FERNANDO DE TAVARES E TÁVORA, Senhores de Mira, Coimbra, 1939 (separata do voI. IV do Arquivo do Distrito de Aveiro).  

(6)SANTOS ABRANCHES, Summa do bullario portugues, pág. 214.

(7)MARQUES GOMES, Memórias de Aveiro, pág. 123.

(8)RANGEL DE QUADROS, O Episcopado e o governo de Portugal, pág. 89. 

(9) RANGEL DE QUADROS, Muralhas de Aveiro (artigo incluído na obra Subsídios para a historia de Aveiro, de MARQUES GOMES, para a qual expressamente foi escrito (de págs. 262 a 322).  

(10) Ibid., pág. 280.

(11) Registe-se, a propósito, a designação idêntica dada também pelo povo a quatro estátuas de gigantes, empunhando lanças, que rematam o frontão da igreja do Convento de Nossa Senhora da Graça, em Évora (Renascença final): são os Meninos da Graça.

(12) Transcrita, parcialmente, no art. cit. de RANGEL DE QUADROS, op. cit., de MARQUES GOMES, pág. 282, donde a transcrevemos, pois nos não foi possível encontrar o referido jornal.

(13) Ibid., pág. 322.

(14) A coroa de louros é manifesto lapso de RANGEL DE QUADROS; não só não existe semelhante pormenor escultórico, mas nem sequer se vislumbra possibilidade de ter existido, quer fixo, quer volante. A confusão provirá, certamente, dos cabelos ondeados do gigante vistos à distância a que a sua altura obriga, e bem assim da má colocação da estátua no local onde RANGEL DE QUADROS a viu − o quintal do Prior da Vera-Cruz. Em mais nenhum memorialista se encontra referência à suposta coroa de louros.

(15)Aveiro, tipo do "Campeão das Províncias", 1911; 22 págs.

(16) −  Destes artigos projectava seu autor uma separata de 100 exemplares; interrompidas porém, uma e outra publicação, em consequência da doença que acometeu o malogrado Historiador, ficou a separata em folhas, que não ultrapassam 60 páginas e nunca foram distribuídas.   Por distinto obséquio do Senhor Capitão Fernão Marques Gomes, possuímos uma colecção, de que esperamos ocupar-nos no Arquivo do Distrito de Aveiro com o pormenor que ela merece. 

(17)Se o distinto Director do Museu, Sr. Dr. Alberto Souto, me permite esclarecer o que considero mero lapso, de ocasião, eu direi que em verdadeiro rigor histórico não é, propriamente, a casa dos Tavares que hoje constitui pertença do liceu. A casa dos Tavares, depois das vicissitudes acima registadas, ardeu, em 1864, quando o Governo Civil ali se achava instalado, e acabou por ser demolida.
      O prédio que veio a ser incorporado no liceu era a residência dos Marqueses de Arronches, onde viveu, na 2.ª metade do século XIX, o Rev. Manuel Ferreira, e em cujo pátio o Menino-Jardim foi recolhido até dar entrada no Museu em 1911.
      É certo que os Marqueses de Arronches eram igualmente Tavares (Sousa Tavares); mas as residências eram perfeitamente independentes e não pertencia ao palácio destes últimos o famoso jardim dos Tavares, claramente identificado na topografia citadina dos séculos passados. O próprio CRISTOVÃO DE PINHO QUEIMADO diferencia os palácios das duas famílias − Marqueses de Arronches, e Tavares Senhores de Mira, dando primazia à casa destes últimos, como vimos acima. MARQUES GOMES, que ainda conheceu os jardins, esclarece, por seu turno, que eles ocupavam a actual praça Luís Cipriano, como acima ficou transcrito.

(18)Publicação da «Junta para ampliación de estudios e investigaciones científicas − Centro de estudíos históricos»; Madrid, 1912. Lám. XXXI, fig. 36; no Museu Arqueológico de Mérida, a estátua tem o n.º 87. Em Portugal, foi a referida escultura de Mérida divulgada em 1913 por LEITE DE VASCONCELOS, a pág. 339 do vol. III da sua obra Religiões da Lusitânia.
      O eminente arqueólogo espanhol, ANTONIO GARCIA y BELLIDO, inclui igualmente o Cronos leontocéfalo na sua monumental colectânea de Esculturas romanas de España y Portugal (Madrid, 1950), atribuindo-lhe a data de «pleno siglo II», e referenciando-o com a seguinte bibliografia:
      GÓMEZ-MORENO Y PIJOÁN, Materiales, n. 36. − LEITE DE VASCONCELOS, RL. lII fig. 150. − Mélida, BRAH. LXIV (1914) 450 n. 8 lám. IV. − PARIS, Bull. Hisp. XVI (1914) 294. PARIS, RA. 1914 II 6 n. 6 fig. 3. − LANTIER, n. 13 fig. 13. − MÉLIDA, CM Badajoz, 1304 n. 1.084 fig. 140. − MÉLIDA, HE. (Espasa-Calpe) II fig. 251 (con las alas). − GARCIA Y BELLIDO, BRAH, CXXIl (1948), 326 s. figs. 7 y 24.
É a estampa n.º 119 do seu álbum de reproduções.

(19) Além das bragas, as personagens referidas envergam outro vestuário, como, aliás, o apresenta igualmente uma outra estátua de Cronos leontocéfalo, existente no Museu de Florença.

(20) −  Pietro Tacchi Venturi, Storia delle Religioni, I, Torino, 1939, pág. 716.

(21) O culto de Mitra, de origem persa, «propagou-se no orbe romano no tempo dos Flávios (séc. I), e desenvolveu-se no dos Antoninos e Severos (séc. I-III), mas talvez já contasse fiéis em Roma desde os fins da República, após as expedições de Pompeio ao Oriente». Cfr. J. Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, Lisboa, 1913, pág. 334.»  

(22) Duma ficha arquivada em 1931, no regresso duma visita ao Museu do Louvre, e que o Sr. Dr. ALBERTO SOUTO teve a bondade de me comunicar, por mais duma vez, consta a semelhança fisionómica do «Menino-Jardim» com uma estátua daquele Museu, representando Esculápio, que tem, no entanto, apenas o dorso a descoberto, revestindo-se o resto do corpo com o clássico himation: «serpente e cajado, dorso nu, manto abaixo da cinta vindo dos ombros, barbado, cabeleira anelada e encaracolada; exclamei ao vê-lo: – é o Menino-Jardim, de Aveiro».
      É também tradição no Museu, que o Prof. de História de Farmácia, da Universidade de Madrid, Dr. Rafael Folch, afirmara em 1943, na visita que fez a Aveiro, que o Menino-Jardim seria um Esculápio, semelhante em tudo a outros existentes em Espanha.
      Em correspondência que posteriormente troquei com o referido Professor não logrei, contudo, obter confirmação daquela sua afirmativa.
  

(23) Já no século XIX se realizaram escavações notáveis, pelos seus resultados, no santuário de Epidauros, de 1881 a 1887, que era o mais importante de quantos a Esculápio foram consagrados. Ver, a propósito, CH. DIEHL, Excursions archéologiques en Grèce, e bibliografia aduzida no cap. IX (Les fouilles d'Epidaure); e também JULES GUIART, La médecine n'est pas née dans les temples d'Esculape; Paris, 1927. As explorações locais têm continuado até ao presente, encontrando-se reconstituídos idealmente os principais edifícios do conjunto, que era vastíssimo: rotunda com a fonte milagrosa, santuário com a estátua de Esculápio, de marfim e ouro, templo da deusa Ártemis, cripta ou casa forte, teatro para 14.000 espectadores, estádio, dormitórios para peregrinos, bosque sagrado, etc.  

(24)THRAMER, au mot Asklepios, dans ROSCHER, Lexikon, et dans PAULY-WISSOWA, Real-Encycl.; F. ROBlOU, au mot Aesculapius, dans SAGLIO, op. cit.  

(25) − Statues du Latran (S. REINACH, Statuaire, II, p. 32, I); de Berlin (p. 32, 7); de Naples (I. p. 289, 7); du Vatican (p. 289, 4); cette dernière montre, par exception, un Esculape jeune, imberbe.  

(26)REINACH, ibid., I, p. 287, 3; 288, 304; 289,2-3,8; II, p. 31, 4; 32, 2, 8; 33, I, 4.    

(27) Ibid., II, p. 33, 8. 

(28)BABELON-BLANCHET, Bronzes de la Bibl. Nat., p. 250, n.º 598.

(29)Ibid., p.251, n.º 599.

(30) S. REINACH, Reliefs, II, p. 13, 4; 163, 4; III, p. 180, 3.

(31) −  Le caducée au cours des Âges. Symbolisme religieux. Types divers de cet emblème. (Thèse pour le doctorat en Médecine), Paris, Jouve & C.ie, 1925.

(32) Madrid, Editorial Labor, 1931, págs. 324-325.

(33) J. BETENCOURT FERREIRA, O ofidismo no seu aspecto histórico e actual, Lisboa, 1935.

(34) −  VERGÍLIO CORREIA não identifica a obra do arqueólogo francês que cita; mas a estátua referida encontrava-se já reproduzida na figura 15 da obra de GOMÉZ-MORENO y J. PIJOAN acima citada, Materiales de Arqueología Española, 1912. À estátua faltava já a cabeça, parte dos braços, os pés, o bastão e a serpente; mesmo assim, os arqueólogos espanhóis identificam-na com Esculápio de tipo clássico, deixando o himation apenas o tronco a descoberto, como de costume.

(35) Não será, possivelmente, descabida a observação de FRANZ CUMONT, que dizia: ... «il faut reconnaître que la grande masse des monuments mithriaques est d'une désolante médiocrité. Les praticiens ou tailleurs de pierre – ils ne méritent pas d'autre nom – auxquels les ouvrages sont dus, se contentaient souvent d'esquisser en quelques coups de ciseau la scène qu'ils prétendaient reproduire» (op. cit., pág. 180).
      E mais adiante (págs. 184-185): «Si l'on voulait critiquer les détails de tous ces ouvrages, il serait aisé d'y reprendre la disproportion de quelques figures, la gaucherie de certains mouvements, et parfois la raideur des atitudes et des vêtements, mais ces faiblesses ne doivent faire oublier ni la délicatesse du travail dans une matière friable, ni surtout le succès louable avec lequel a été réalisée une conception d'une véritable grandeur.»

(36) «De épocas mais remotas, além do meio busto lusitano-romano, Janus-Bifrons, encontrado numas escavações nas proximidades de Portalegre e oferecido ao Museu pelo distinto engenheiro sr. João Honorato da Fonseca Regala»... (pág. 4 e 51 também, da separata citada).

(37) −  «Galeria de escultura no res-do-chão – Tem algumas estatuetas e fragmentos de retábulos de pedra dos fins do século XVI, brasões de armas, entre eles os dos duques de Aveiro, picados, em virtude da sentença da Inconfidência, e também uma cabeça bifronte, dos arredores de Portalegre, romana

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