Laudelino de Miranda Melo, Crendices e superstições, Vol. XVII, pp. 86-96

CRENDICES E MAUS OLHADOS

BRUXAS E LOBISOMENS

SUPERSTIÇÕES E MEZINHAS...

QUE ANDAM NAS VIDAS DAS GENTES SIMPLES

DA REGIÃO DE VOUGA, COMO JÁ ANDARAM

NAS DOS SEUS AVÓS

(do livro a publicar Nossa Terra e Nossa Gente)

CREDO, t'esconjuro! Abrenúncio! Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo; avé-Maria e salvé-Rainha.

MENINO «TOCADO»

Menino ou menina, já se vê.

Quando as mulheres andam grávidas, se alguém lhes toca com intenção de mal fazer, logo a mulher tocada, se disso tiver pressentimento, deve devolver o toque a quem lhe tocou, com uma forte pancada, dizendo a acompanhar: − «eu te devolvo, alma danada, toque de mau agouro».

Mas se a mulher grávida ignora esse segredo do mal ou se, tendo dele conhecimento, não devolver o toque, o recém-nascido fica sempre «acanhadinho», enfezadinho, sem crescer... Então, não há dúvida, é «menino tocado».

Que faz a mãe?

Leva o seu menino e vai procurar certa mulher de virtude que já destocou outros meninos.

Entram as duas mulheres e a criança tocada para um quarto e ali se fecham por dentro, a meia luz. A mãe com o filho ao colo e nuzinho; e a mulher de virtude com um / 87 / crucifixo pequeno na mão esquerda, e, na direita, um raminho de murta, arruda e alecrim.

Benze que benze o menino, e a acompanhar umas palavrinhas que muito podem:

«Mão que tocaste este menino e o deixaste acanhadinho, desacanha-o, inimigo malfeitor, que assim o quer Nosso Senhor, e a Virgem Maria, e todos os santos da corte do céu

Diz-se isto três vezes. E depois de outras palavras idênticas, sempre a benzer, com o raminho na mão direita e o crucifixo na esquerda, as duas mulheres ajoelham e rezam três avé-marias, três padre-nossos e três salvé-rainhas.

A seguir, a mulher que benzeu queima o raminho, junta as cinzas e, com a mãe e o menino, dirigem-se para onde haja água corrente. E de costas viradas para onde corre a água, a mulher de virtude atira as cinzas para a corrente, dizendo:

«Quem te tocou que te destaque,
quem te acanhou que te desacanhe,
porco sujo, dianho mau,
deixa este menino em paz
que a mão que lhe tocou foi a mão
de Satanaz.»
«Bicho sujo, t'esconjuro
p'rá água te afogar.
Vai p'ra longe, porco sujo,
p'ra onde a água te levar.


Daí em diante o menino principia a crescer e a «lograr» saúde que até dá gosto vê-lo, louvado seja Deus e a Virgem Santíssima.

*

Às vezes, durante os trabalhos da lavoura, alguns homens trazem a fralda da camisa por fora das calças... É por causa das bruxas e dos maus olhados. Já também assim procediam os seus pais e avós.

*

Depois de uma mulher destes sítios ter tido a sua boa horinha, e enquanto a criança recém-nascida não é baptizada, sempre, de noite, no quarto onde dorme a criança, não pode deixar de haver uma luz acesa. E só se deixa de acender / 88 / depois de ter sido baptizada, porque senão os «estafermos das bruxas» vêm e chupam todo o sangue do inocentinho, credo! Esta velha crendice vem de séculos atrás, talvez tão antiga como a ignorância. Mas isto não quer dizer que não haja muitas excepções à regra, mesmo nas localidades rurais.

*

− E então o que aconteceu ao Manel do Coito! Aquilo é que foi! Até é de se arripiarem os cabelos a uma pessoa!...

Pois é!: − Vinha o pobre rapaz da noitada da Senhora das Febres, muito descansadinho da sua vida, noite alta... quando de repente lhe aparecem numa encruzilhada, perto dum pinhal, dois leitões a pular diante dele e dois homens que tinham a forma de grandes lobos.

Abrenúncio! Abrenúncio!...

Não, que nem se sabe como o pobre do Manel não ficou p'rá-li morto de susto, tranzidinho de todo... Uma coisa daquelas! Uma avantesma assim!...

Pois não senhores! Até custa a acreditar!...

Levantou o cajado no ar e quando ia para descarregar nos leitões, estes pareciam cabritos a pular e principiam a ladrar como cães. E logo os homens-lobos desapareceram e os leitões deitam a fugir, a fugir, aos pulos... sempre a ladrar e a pular, e uma luzinha a segui-los, a segui-los...

Depois quando a luzinha chegou àquelas «alminhas» que estão à entrada da povoação, ouviu-se um grande estouro e a luz desapareceu!

− «Não, que ele há coisas, há, digam lá o que disserem» resmungavam, tolhidinhas de todo, a ti Filomena e a ti Engrácia, quando lhes contaram aquilo.

Eram, não há dúvida! bruxas e lobisomens.

*

AS SEMENTES DA SORTE

Na noite de S. João, quem procurar por cômaros ou à beira de vaIados uma espécie de feto que seca no inverno e reverdece na primavera, talvez não perca o seu tempo − assim diz a crendice popular − porque, se calhar, grandes benefícios pode conseguir. É o caso que a referida planta, depois de reverdecer, dá umas sementes. E quem, em noite de S. João, à meia noite, se avizinhar dessa planta para colher as sementes, lá vê aparecer também um vulto negro com olhos de gato, à semelhança de um lobisomem, mas que deve ser o Diabo.

/ 89 / Então, o Senhor dos Infernos, com imensa calma e respeitável superioridade, assim diz na sua voz de tragédia, a ecoar dentro da noite:

− «Ou levas tu ou levo eu» − (refere-se às sementes da tal planta).

Ora, se a pessoa que vai para colher as sementes tiver medo do Diabo, deita a correr e vai-se embora espavorido.

Mas se não recear o diabólico Senhor, põe as mãos às sementes e colhe-as, gritando na mesma ocasião:

− «T'esconjuro, porco sujo! Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo; avé-Maria e salvé-Rainha.»

Neste caso, é o tal vulto negro com olhar de gato que deita a fugir. E então, sim, a pessoa que colheu as sementes será para sempre ditosa e tudo conseguirá: mulheres prendadas, amores fáceis e difíceis, sorte ao jogo, amigos, boa disposição... tudo, enfim! Mas enquanto trouxer consigo as tais sementes; porque se as perder... adeus, minhas encomendas!

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Como é sabido, a imaginação dos simples dos meios rurais vê, com facilidade, a horas mortas da noite, bruxas, lobisomens e almas penadas, a vaguear como duendes. E quando não vê, ouve contar e acredita, com arrepios de medo, que é assim a alma crendeira do povo.

*

Cão a uivar!... Mau, mau, p'ra longe vá o agouro.

*


Galo a cantar de noite fora de horas!... Ai, credo, não é coisa boa, isso não.

*

Azeite derramado, espelho quebrado, prato ou copo partidos!... Grande desgosto está p'ra vir. É um aviso. Que se benza logo a quem isso aconteceu.

*

A porca dos leitõezinhos está doente e não lhe entra nada na boca há três dias? O bezerro da vaca turina não quer mamar? O vinho estragou-se sem haver trovoadas? Morreram quatro pintos, já grandinhos, daquela ninhada de / 90 / Janeiro? Deu uma coisa à Rosa da ti Rita e aquela alminha do Senhor não dá acordo de si?

«Tudo desgraças, abrenúncio, t'arrenego, dianho mau!»

É a casa que está enguiçada. São invejas e maus olhados; manda-se benzer. E com um raminho de alecrim, murta e arruda, cosida a boca de um sapo com as orelhas de um morcego, juntando-se-lhe alguns fios de cabelo de defunto viúvo que morresse de morte natural, e depois umas palavrinhas que certa mulher (a bruxa) sabe dizer, com uns padre-nossos e umas avé-marias, tudo murmurado em grande mistério pelos cantos da casa... logo a porca fica boa, o bezerro já mama bem, não morrem mais os pintos, a Rosa da ti-Rita ficou sãzinha e escorreita e tudo agora corre às mil maravilhas, com a graça de Deus e da Virgem Maria.

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COMENTÁRIO DO MEU VIZINHO AMBRÓSIO

«Não se desmancham ninhos de andorinhas, que acontece coisa má... Não se matam andorinhas, que é sinal de maus instintos, «malvadeza», falta de sensibilidade... Mas mandam-se afogar gatinhos fechados dentro de um saco, no sítio mais fundo do rio e ainda com uma pedra dentro do saco para os bichinhos não terem probabilidade de escapar e morrerem asfixiados. E isto já são bons instintos, já não é «malvadeza»! É muito coerente e justa a sensível Humanidade... toda a Humanidade!...»

− E o meu vizinho Ambrósio revoltava-se e atirava um palavrão que ia direitinho à cara da Humanidade. Mas não era por mal.

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PARA NÃO ACONTECER MAL AO PORCO

Por esta região há uma remota superstição entre muita gente, que consiste nisto:

Quando compram na feira um porco ou porca e quando o bicho chega a casa, ao meterem-no no curral pela primeira vez, fazem, não sem dificuldade, com que o bicho entre a recuar, isto é, a cabeça do porco entra por último.

Feito isto, pode-se dormir tranquilo, porque nem mais são necessários os «responsos» a Santo António, de grande utilidade em casos graves de porcos ou de porcas. E está averiguado, diz a sabedoria do povo. / 91 /

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MENINO SEM FALA

Quando assim é ou quando a criança está «atrazadinha» na fala, as mães fazem o seguinte:

Agarram o seu menino e vão com ele a uma procissão onde vá o andor de S. Luís, o que foi rei de França. E passando com o menino por baixo do andor, três vezes a seguir, não esquecendo de bater com a moleirinha do pequerrucho no fundo do andar, dizem, em súplica, algumas vezes, isto:

«Meu São Luís rei de França
Dai fala a esta criança.»

E a criança se não falar é porque é muda. E disso não, tem culpa o real santo.

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AO DAR DO MEIO DIA

Em certas localidades da região, ao dar do meio dia, mães que tenham os filhos pequenos ao colo ou perto de si, rezam-lhe aos ouvidos, num desejo de boa sorte:

«Meu menino, Deus te reparta bem por esse mundo além.»

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PARA CURAR TERÇOL

Pessoa que tenha um terçol, para o fazer desaparecer, deve passar por casa de uma mulher grávida e bater-lhe três pancadinhas na porta... Assim diz a superstição das gentes.

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MENINO «RENDIDO»

Coitadinho! Parece que nasceu assim. Mas, em noite de S. João, precisamente à meia noite, procura-se pequena árvore de carvalho (ainda pouco desenvolvida) e racha-se ao meio a referida árvore, de alto a baixo. Depois arranjam-se um rapaz e uma rapariga com os nomes de João e Maria, e o João coloca-se de um lado da árvore rachada e a Maria do lado oposto. E das mãos do João para as de Maria, e assim várias vezes das mãos de um para as do outro, / 92 / passam o menino «rendido» por entre as duas metades do carvalhinho rachado, dizendo:

− (Toma lá, Maria».
− « Que me dás, João?»
− «Dou-te um menino doente
E tu hás-de mo dar são.»

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TALHAR A ERISIPELA

Chamusca-se alho e ferve-se com azeite. Besunta-se, com isso, o sítio do corpo atacado. Depois, entra em cena a benzedura, bem feitinha, fazendo cruzes com uma faca sobre o sítio molestado, sempre a benzer, sempre a benzer... e lá se foi a erisipela.

Contudo, se a coisa é «erisipelão» não é mulher mas sim um homem que deve talhar aquilo. ... porque é «erisipelão»!

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TALHAR O SOL

Há certas dorzinhas de cabeça que não são de quebranto, mas sim efeitos do Sol. E neste caso, talha-se assim:

A pessoa que tem as dores senta-se numa cadeira, à hora do meio dia, voltada para o Sol e de maneira a que lhe bata na cabeça.

Depois enche-se um copo com água, coloca-se sobre o copo um guardanapo dobrado em quatro e, a seguir, virando-se o copo com a boca para baixo, ficando assim a água sobre o guardanapo, põe-se isso sobre a cabeça do doente.

Benze que benze, reza que reza, a água principia a mexer e a fervilhar e foram-se as dores de cabeça. Foi um ar que lhe deu!...

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ESPINHELA CAÍDA

Um processo de tratamento: Senta-se o doente numa cadeira, e a pessoa que entende daquilo coloca-se diante do enfermo, abre-lhe os braços esticando-os muito e assim esticados segura com as suas as mãos do doente. E dessa maneira vai, lentamente, levantando os braços do doente até as mãos se juntarem ao alto da cabeça. E se, juntas as mãos, um dos braços do padecente estiver mais curto, não pode haver dúvida: «É doente de espinhela caída». Então, para endireitar / 93 / a espinhela o «sabedor» ou «sabedora» do tratamento daquilo estica tantas vezes os braços do doente, abaixo e acima, quantas as vezes necessárias para que os braços fiquem do mesmo tamanho. E assim que ficam, está a espinhela direitinha.

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QUEBRANTO

Isto de «quebranto» quando é do mau, mesmo do mausinho... diz-me pessoa sabedora que dura dezoito dias e dezoito noites. É verdade! Dá assim com umas dorzinhas de cabeça, fortezinhas, e a boca a abrir-se muitas vezes. Mau olhado... invejas... já se vê!

Mas para se ter a certeza se a coisa é, de facto, «quebranto», faz-se isto:

Enche-se uma tigela com água, arranjam-se umas brasas em fogo, e vai-se pondo na água uma, e outra, e mais brasas. Se forem ao fundo, não é quebranto, pode-se estar tranquilo; mas se não forem, então é, sim senhores.

Neste caso, a mulherzinha que está com o «quebranto» (via de regra é mulher, por várias razões), de cada vez que põe na água uma brasa, diz com solenidade:

«Deus me gerou, Deus me criou,
Deus me tire este mal que no meu corpo entrou.
Jesus, Maria, José,
De onde este mal veio ele para lá torne »

Feito isto deve cuspir três vezes para o lado esquerdo e dizer:

− «A Senhora do Quebranto me tire este quebranto». E, logo a seguir, rezar três padre-nossos, três avé-marias e três salvé-rainhas. E pronto, foi-se a coisa má, arre com ela!

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«SAPINHOS» NA BOCA DAS CRIANÇAS

Esta doença tratam-na, algumas destas gentes. metendo na boca das crianças chaves de sacrários. Contudo, elucida-me culto eclesiástico que talvez antigamente isso desse resultado, por serem, habitualmente, as chaves de prata. Mas, hoje...

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CARNE DE GATO PRETO

Gato preto, bem cozidinho, e a carne bem mastigadinha e bem engolida pelo enfermo (às vezes até em doenças más), / 94 / logo o dito enfermo fica curadinho. E quem não encontrar gato preto também pode servir, para remediar (mas já não é remédio tão seguro) uma galinha preta, mesmo do vizinho...

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TERRA DE SEPULTURA

«Cura também graves doenças» − dizem certas mulheres de virtude − «e às vezes até a tuberculose» − afirmam ousadamente. Como? Assim:

O doente, ao dar da meia noite, vai ao cemitério e traz, de uma sepultura, um pouco de terra. Ao chegar a casa dissolve a terra num pouco de água e bebe aquilo. «Fica bom», dizem as tais mulheres ousadamente; e o povinho crê, piedosamente.

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PARA CURAR MAUS OLHADOS

Uns fiozinhos da estola de um padre (fios de duas cores) e o pó da raspagem de pedra ara (de altar), estas coisinhas metidas e cosidas num saquinho e dependurado este ao pescoço... e todas as sextas-feiras de manhãzinha e em jejum beber azeite de lâmpada de igreja com água benta e cinza de alecrim, tudo misturado, não há mau olhado que resista. Abrenúncio! ... E está provado.

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POMBO NEGRO

Em certa doença muito grave diz-me pessoa douta nestes assuntos que se busca um pombo negro e, mesmo com penas e tudo, abre-se o bichinho ao meio. Assim rachado ao meio coloca-se sobre o peito do doente a carne quente do pombo negro e liga-se com uma ligadura, para que fique bem unida ao peito da pessoa doente, e então logo a referida pessoa fica sãzinha do grave mal de que foi acometida, talvez por artes de mau olhado. «Mas deve ser pombo (macho) e não pomba» − diz-me o douto informador.

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PÉ OU BRAÇO ABERTO

Ferve-se água num panêlo de barro preto e quando a água estiver a ferver vira-se o panêlo de boca para baixo / 95 / dentro de uma escudela de madeira. E no fundo do panêlo, que está voltado para cima, põe-se um punhado de sal, e em cima do sal coloca-se o braço ou pé aberto, que deve, como é natural, estar inchado, dizendo então:

«Eu te coso, pé aberto ou desmanchado
fio destorço ou escalvado,
Deus te ponha no teu estado
com o poder de Jesus Cristo e da Virgem
padre nosso e avé-maria.»

Repete-se isto três vezes e muito a sério. E se o pé ou braço inchado estiver, de facto, «aberto», toda a água que estiver na escudela entra outra vez no panêlo. Dizem-me que é garantido.

*

«UNHEIRO»

Unheiro, por algumas localidades da região, esclarece-me pessoa entendida que é vista inflamada. Chama-se então a curandeira. Vem a mulher, mastiga alho cru e atira o bafo para a vista que está inflamada dizendo, na ocasião, uma reza especial muito complicada. Isto durante nove dias seguidos e em jejum, para produzir efeito.

Contudo parece-me que aquilo da reza é para complicar e dar um cunho de misticismo à cura, aproximando-a do Céu.

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TALHAR O BICHO

O «bicho», neste caso, tanto pode ser uma espécie de brotoejas como coisa pior, que adrega de aparecer no corpo das gentes e até dos outros animais... aqueles a que, por graça, chamamos irracionais. Enfim, é uma coisa má. Bicheza. E o que se faz então?

Benze-se, em jejum, durante três dias seguidos, o sítio do corpo atacado e dizem-se estas palavrinhas:

«Eu te talho, bicho bichão,
aranha aranhão,
bicho de toda a nação;
em louvor de S. Silvestre,
tudo quanto faço tudo preste.»

/ 96 / Isto dito três vezes seguidas, durante três dias, em jejum, sem faltar nenhuma palavrinha, e no final de cada três vezes rezar uma ave-Maria e uma salve-Rainha.

Mas também há quem talhe o «bicho» da seguinte maneira:

Diante da pessoa doente fazem-se nove montinhos de sal, tendo cada montinho seis pedrinhas. Então a reza é dita nove vezes e ao fim de cada reza atira-se ao doente um dos montinhos com as seis pedrinhas de sal. E talhou-se a bicheza!

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A RASPAGEM DO S. MAMEDE

Em certa igreja de uma freguesia da região de Vouga, ali para o lado da serra, havia um S. Mamede de madeira e de regular tamanho.

Ora, acontecia que as mulheres da localidade e dos lugarejos da redondeza, quando estavam para «dar à luz» iam à igreja onde estava a imagem exposta no seu altar, abeiravam-se do santo como podiam e raspavam a madeira de que a imagem era feita, guardando o pó raspado... porque, assim procedendo e segundo velha crendice, os seus seios teriam leite para amamentar os filhos.

S. Mamede... mama... amamentar − deduziam elas, que as suas avós já também assim deduziam. E porque em virtude de tanto raspar a imagem já está acabando aos poucos, resolveu por bem o pároco esconder o santo, de contrário era uma vez um S. Mamede!

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O que sobre o assunto − mézinhas e benzeduras − aqui fica publicado, é só uma amostra, porque a tal respeito há muita coisa mais, que daria para grosso volume.

Era assim, por tais processos, que as gentes de antanho se tratavam. E é assim que ainda hoje, por todas as aldeias de Portugal, com mézinhas e benzeduras idênticas, se tratam muitos dos seus habitantes... louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.

Aveiro, Junho, 1951

LAUDELINO DE MIRANDA MELO

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