A. S. de Sousa Baptista, Duas inscrições antigas, Vol. XVII, pp. 81-85.

DUAS INSCRIÇÕES ANTIGAS

HÁ duas inscrições no nosso distrito que precisam de ser estudadas. Está uma na Igreja de S. Lourenço do Bairro e outra na igreja de Lamas.

Da primeira tratou ANTÓNIO DE VASCONCELOS, neste Arquivo de Aveiro, voI. VII, págs. 55 a 57.

Já me referi à segunda no volume XIII, no meu artigo «Santa Maria de Lamas». Estas inscrições são conhecidas há muito tempo, sobretudo a da igreja de Lamas.

Da de S. Lourenço do Bairro diz ANTÓNIO DE VASCONCELOS: «Foi desenhada e aberta pelo lapicida numa placa de calcário das pedreiras de Ançã, em belas letras capitais, umas redondas outras angulares, misturadas com algumas unciais, todas elas de formas bem conhecidas por serem vulgares em títulos de livros ou capítulos nos códices caligráficos dos séculos Xl e XII, assim como nas melhores inscrições da época. Tem muitas letras conjuntas, outras inclusas, algumas suprimidas com indicação de sinais braquigráficos, mas tão distintamente desenhadas e tão nitidamente gravadas que a sua leitura não oferece embaraços a quem não seja inteiramente analfabeto em epigrafia.»

Também a inscrição de Lamas foi desenhada e aberta numa pedra de Ançã, mas nesta as letras são quase todas alemãs maiúsculas. Dou em seguida a leitura das duas e respectivas traduções, seguindo quanto à de Lamas o Santuário Mariano, que na forma ortográfica diverge um pouco da inscrição, como pode ver-se pela fotografia.

S. Lourenço do Bairro

Sob honore sancti Laurencii
peIagiolus presbiter hanc edifi
cavit ecclesiam quam cero

perfectam Vermudus conimbri
afie ecclesie religiousus dedicavit
Episcopus VIII calendas novembris
     era MaCCXVIlIl

Em honra de S. Lourenço, o presbítero pelagiolo edificou esta igreja
a qual concluída tardiamente, foi sagrada
por Bermudo, religioso bispo da igreja Coimbra, no dia 8 antes dos Calendas de novembro da era de 1219.

[Vo1. XVII - N.º 66 - 1951] / 82 /

Santa Maria de Lamas

Dedicata fuit haec ecclesia de
Santa Maria de Lamas ab Episcopo
Dom Michaelo Colimbriensi
et per manus Veremundi eccle-
siae Presbyteri, sub era 1208
sexto idus Maii, in festivita-
te sanctorum Gordiani Epi-
machi, in honorem sanctae
Mariae Virginis, ano ab ln-
carnatione Dei 1170 regnante
apud Portugale Alfonso comi-
tis Henrici et Reginae Theresiae
filio, multorum sanctorum
Reliquiae in praefactas ecclesiae
altaribus habentur de sepulchro
B. Mariae Virginis, et reliquiae
Sanctorem Felicissimi et Aga-
piti, S. Sebastiani, et sanctae
Marinae et de Sepulchro Domi-
ni, et qui scripsit vivat in
aeternum.

Esta igreja de Santa Maria de
Lamas foi consagrada pelo bispo
de Coimbra D. Miguel por
mãos de Veremundo presbítero
da igreja, na era de 1208, dez
de Maio dia dos santos Gor-
diano e Epimaco, em nome
de Santa Maria Virgem,
ano da Encarnação do
Senhor de 1170, reinando
em Portugal Afonso, filho
do Conde D. Henrique e
da Rainha Teresa. Há
nos altares desta igreja
relíquias de muitos santos
do sepulcro da Virgem Maria
de S. Felicíssimo e Agapito
S. Sebastião e Santa Ma-
rinha e do sepulcro do Se-
nhor. Tenha vida
eterna quem escreveu isto.

Haverá entre estas duas inscrições alguma outra relação além da contemporaneidade? Penso que sim. Já por várias vezes, em artigos anteriores, me referi às invasões de Almansor, no fim do século X, e como elas foram, sobretudo a de 998, a ruína dos povos da beira-mar, com a destruição de suas riquezas e templos. A reconstrução destes, sem exceptuar mesmo as Sés do Porto e Braga, só se fez, vagarosamente, no correr dos dois séculos imediatos.

S. Lourenço do Bairro e Santa Maria de Lamas, vilas agrícolas, a que se reteremos documentos antigos, vem certamente dos tempos romanos, atravessando as dominações goda e árabe, na sua função produtora, respeitada por todos. Tiveram seus templos, que Almansor não poupou, pois lhe ficavam à beira da estrada de Lisboa ao Porto, por onde seguiam as suas tropas vitoriosas. E como estas, muitas outras. Não sei como à roda da Igreja de Santa Maria de Lamas se formou a lenda de que ela era a mais antiga de toda a região. Já disse e tenho elementos para dizer que esta lenda não tem fundamento. Outras igrejas se reconstruíram muito antes de Santa Maria. A de Valongo, já em 1110, isto é, 60 anos antes, estava reconstruída. Por circunstâncias desconhecidas, aqueles dois templos de Santa Maria de Lamas e de S. Lourenço do Bairro só nos aparecem reconstruídos em 1170 e 1181. A de Lamas foi sagrada em tempo do bispo Miguel, por mão de Bermudo, a de S. Lourenço foi sagrada pelo bispo Bermudo. No meu artigo Santa Maria / 83 / de Lamas sugeri que o Bermudo, por cujas mãos foi sagrada a igreja de Lamas, era o mesmo Bermudo que depois foi bispo, isto é, aquele que em 1181 vem a sagrar a igreja de S. Lourenço do Bairro. Desta maneira, os dois templos foram sagrados pelo mesmo sacerdote.

Não temos conhecimento de outras lápides comemorativas da sagração dos templos em terras do Vouga. Acredito que outros existiram e foram perdidos em novas reconstruções. E que essas inscrições lapidares não se destinavam só a perpetuar a memória de um acontecimento importante, eram também e sobretudo documento necessário à prova dos direitos jurisdicionais do bispo perante o rei e perante o mosteiro de Santa Cruz.

O mundo cristão é obra dos apóstolos, e desde o seu tempo vem abrindo os braços por todas as partes da Terra. O mundo católico romano é sonho de Gregório VII, realização sua e dos seus imediatos sucessores com a cooperação do mosteiro de Cluny. No ocidente peninsular, especialmente no condado portucalense, os bispos não só não obedecem a Roma, como ainda tinham um ritual e leis canónicas sobre o casamento e família que divergiam muito dos romanos. Gregório VII ainda tentou mandar um emissário a entender-se com Sisenando e D. Paterno, primeiro bispo de Coimbra depois da reconquista. Mas este morreu no caminho e Gregório VII pouco lhe sobreviveu. Pode dizer-se que a romanização eclesiástica do condado só começou com D. Henrique e os bispos que com ele ou em seu tempo vieram − monges de Cluny − Geraldo de Braga, Maurício de Coimbra. O processo foi longo e fez-se por dois modos: − o da subordinação directa dos bispos ao papa, e o da isenção dos mosteiros da jurisdição dos bispos para os colocar na sujeição imediata de Roma. Quer dizer, a par da hierarquia eclesiástica que punha na cabeça o papa, este criava-se com os mosteiros um poder paralelo e de algum modo inimigo dos bispos com que se assegurava da obediência destes. Este último caminho foi o mais demorado.

Há no alvorecer da história portuguesa gigantes adormecidos que precisam despertar na nossa consideração e respeito: o santo Arcebispo Geraldo; o diabólico arcebispo Gelmires de Compostela; o hábil político João Peculiar, também arcebispo de Braga. É sobretudo ao compostelano que Portugal deve a sua existência; é ao último que deve a plenitude da sua independência política. Sem a protecção e amizade de Diogo Gelmires, D. Teresa não podia sustentar-se na doação de seu pai, depois da morte do conde Henrique; sem a cooperação inteligente e eficaz de João Peculiar, Afonso Henriques não se teria libertado tão facilmente da vassalagem ao Imperador de Leão e Castela. / 84 /

O bispo D. Gonçalo de Coimbra morreu em 1128, D. Teresa e seu marido ou amante, Fernando Peres de Trastâmara, tinham resolvido entronizar a D. Telo, Arcediago, mas a revolução que deu o governo a Afonso Henriques, não lho permitiu. Afonso Henriques entronizou Bernardo, por não ter confiança em D. Telo. Este fora companheiro do falecido bispo D. Gonçalo, amigo do metropolita de Compostela. Afonso Henriques queria a independência política de Portugal e a restauração da igreja portuguesa em Braga.

Pouco tempo depois, porém, Afonso Henriques estava nas melhores relações com D. Telo.

Este D. Telo foi o fundador do mosteiro de Santa Cruz. D. Afonso Henriques também se intitula seu fundador. D. Telo foi o executor; Afonso Henriques o grande protector; a luz que orientou os passos dos dois foi sem dúvida a inteligência e astúcia de João Peculiar, monge de Cluny, e mestre escola da Sé de Coimbra. Este Homem, forte em acção e espírito, procurava realizar dois interesses que já vinham combinados desde os primeiros tempos do conde D. Henrique; o religioso, de subordinação dos bispos a Roma e criação de mosteiros livres da jurisdição dos bispos e na obediência directa ao papa; o político, da criação da igreja portuguesa servindo a Portugal independente.

É minha opinião que, durante os governos do conde D. Henrique e de D. Teresa, os movimentos dos bispos portugueses obedeceram sempre ao ritmo do interesse dos governantes. Não é este o lugar próprio para tratar deste assunto, nem o comporta o programa do Arquivo. Basta-nos por agora dizer que a rejeição de D. Telo, a eleição de Bernardo e a fundação da Santa Cruz, parecem obedecer ainda ao mesmo pensamento, isto é, ao interesse político do governante.

Criado o mosteiro dos Cónegos regrantes de Santo Agostinho, logo as desinteligências surgiram entre ele e o bispo. Este entendeu tê-lo sob a sua jurisdição imediata e obrigou os cónegos a actos de humilhação afirmativa desta obediência. Dirigiram-se a Roma D. Telo e João Peculiar a solicitar do papa Inocêncio II a isenção para o seu mosteiro. E o papa concedeu-lha pelo breve de 20 de Maio de 1135. Quer dizer, o mosteiro e todas as terras que tinham sido doadas e aquelas que de futuro por qualquer título lhe viessem a pertencer, ficaram isentas da jurisdição do bispo e sujeitas ao mosteiro. Um bispado dentro do bispado. A guerra entre a Sé e o mosteiro durou séculos. Estudou-a ROCHA MADAHIL no seu valioso e fecundo trabalho «O Privilégio do Isento de Santa Cruz de Coimbra». É para este estudo admirável e sem dúvida o mais completo sobre o assunto, que remeto o leitor. / 85 /

O bispo D. Miguel Salomão governou o bispado de 1162 a 1176. Durante o seu tempo o mosteiro triunfou largamente. O bispo fez-lhe largas concessões, reconheceu o Isento obrigando os cónegos pela força a assinarem, no que era apoiado por Afonso Henriques. As liberalidades deste bispo deram origem a alguns dos lances mais violentos de luta entre o mosteiro e a Sé. Miguel fora cónego de Santa Cruz e daí a razão das liberalidades. Bermudo sucedeu a este bispo. E foi ele que sagrou a igreja de S. Lourenço em 1181, como na qualidade de presbítero da igreja de Coimbra, e como representante de D. Miguel, tinha sagrado a de Lamas em 1170.

Salvo o devido respeito, parece-me que as palavras «quam cero perfectam» da inscrição de S. Lourenço assim traduzidas: «a qual concluída tardiamente» podem levar a supor que o bispo quis com elas fazer uma espécie de recriminação por aquela obra ser feita tão tarde, como quem lembra que era obrigação ter-se feito antes. Creio que é bem diferente o real significado delas: o presbítero Plagiolus tinha construído aquele templo mas não o tinha concluído. Este trabalho de conclusão só foi feito muito mais tarde. Isto aconteceu lá como aconteceu noutros lugares, em todos os tempos. Os templos raramente são feitos de uma assentada, são algumas vezes cuidado de várias gerações. Foi o que aconteceu com a actual igreja de Lamas, que levou cem anos a construir.

Na lápide de S. Lourenço chama-se Bermudo religiosus episcopus. Deve ter sido amigo e partidário de Miguel. A menos, não consta que tivesse tomado alguma atitude contra o mosteiro, para desfazer os erros de Miguel, como fizeram os seus imediatos sucessores. Esta circunstância e o ele chamar-se religiosus levam-me a crer que também Bermuda fosse um cónego de Santa Cruz e, portanto, um continuador e respeitador da obra de Miguel, isto é, um respeitador do isento. Reconhecer o isento era reconhecer a circunscrição territorial na qual se exercitava a jurisdição de Santa Cruz, ao lado da circunscrição onde chegava o poder do bispo. As lápides são assim uma demonstração de que as duas igrejas pertenciam à jurisdição episcopal e indirectamente o reconhecimento da outra jurisdição, o que nenhum outro bispo, nem antes nem depois, fez.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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