A
MEIO da cópia deste trecho surpreendeu-me a triste
notícia da morte do erudito colaborador do Arquivo
do Distrito de Aveiro e meu estimado conterrâneo e amigo, cónego
ANTÓNIO FERREIRA PINTO, a quem tanta
simpatia e tantas atenções e finezas me ligavam. Mais novo
do que eu, era de há bastantes anos um dos que prematuramente ostentávamos as cabeças brancas. Ambos devotados
ao estudo das coisas da nossa terra, tive muita vez ensejo
de pedir auxílio à sua vasta cultura, à sua clara inteligência,
ao seu muito saber e ao seu aturado estudo. Rendo-lhe o
preito saudoso da minha gratidão e da merecida homenagem
em que me acompanham decerto os amigos da Terra de Santa Maria por ele
tanto prezada.
CRIAÇÃO DO CONVENTO
No volume IV do Arquivo publicou esse meu distinto
conterrâneo a Lista Geral dos Reitores da Colegiada do
Espírito Santo na vila da Feira.
Apesar de geral, só compreende os reitores «eleitos por
votos de toda a religião», não sendo portanto completa essa
lista. Faltam-lhe 28 reitores de antes de 1653; e houve-os desde 1566.
Tenho na Biblioteca Municipal da Feira um livro provindo do convento dos Loios na mesma vila e que fora dar
fundo ao depósito da repartição distrital de finanças de Aveiro,
não sei como nem quando nem porquê.
Conserva a encadernação primitiva em coiro, com carcela para fechar, à
qual já faltam as tiras da fivela. Chama-se na primeira lauda:
Liuro e memorial da fazenda deste Conuento pera se
dar principio ao tombo tão necessario pera sua augmentação.
[Vol.
XV - N.º 58 - 19949]
/ 130 /
Mas contém apontamentos diversos escritos, na maior
parte, pelo seu iniciador o padre mestre Jorge de S. Paulo,
um desses primeiros reitores escolhidos pelo capítulo. Ao
assinar o preâmbulo, na folha 1, escreveu
Jorge de S. Paulo
R.or
Alguém, mais tarde, acrescentou: «aliaz Administrador» com outra caligrafia. Deve ter sido emenda de um dos reitores eleitos,
mais pechoso e ciumento do seu título; mas
que não tinha decerto os méritos revelados pelo seu antecessor.
Segundo esses apontamentos, com todos os foros de
autenticidade, é de 3 de Julho de 1550 a concessão do núncio
João Spontino, cardeal a latere do papa Júlio 3.º, para os
cónegos seculares da congregação de S. João Evangelista
levantarem mosteiro colegiado na vila da Feira. Confirmou
essa concessão a bula de 16 de Novembro de 1553, depois
de um fiat de 15 de Setembro do mesmo ano, passando-se
a bula executória a 27 de Julho de 1554.
Tratou-se de edificar o convento e a sua igreja por doação do quarto conde da Feira, D. Diogo Forjaz Pereira.
Tinha este conde dois irmãos nessa congregação. Um,
sem importância, foi o padre Leonis de Santiago, filho bastardo do terceiro conde da Feira e pessoa diversa do irmão
também bastardo, D. Leonis Pereira, a quem me referirei.
O outro era o filho segundo do mesmo conde D. Manuel
Pereira e da condessa D. Isabel de Castro, filha do 1.º conde
de Tarouca D. João de Meneses e de D. Joana de Vilhena.
Chamou-se D. Rodrigo Pereira, foi abade de Fiães e, renunciando esta abadia a 6 de Maio de 1547 por ter recebido
o hábito dos Loios em Vilar de Frades, tomou o nome de
Rodrigo da Madre de Deus. Tinha sido inquisidor em
Coimbra quando, a 19 de Agosto de 1542, lhe deram posse
do mesmo cargo na mesa grande do tribunal do santo ofício.
Eleito bispo de Angra por D. João
IIl, teve logo a seguir a nomeação de inquisidor geral num dos amuos do cardeal
infante D. Henrique. Veio a morrer no castelo da Feira
a 6 de Maio de 1553.
O quarto conde da Feira D. Diogo, levado pela amizade
fraternal que o ligava ao padre Rodrigo da Madre de Deus,
fez petição ao capítulo geral dos Loios em 1549 para instituir
na Feira um convento de cónegos regrantes. Deferida a
petição em capítulo, logo tratou o conde D. Diogo de angariar para a
futura instituição a igreja paroquial da Feira, a que andava anexa a de S. Mamede de Travanca.
/
131 /
Era abade de S. Nicolau da Feira frei Pero Soares, religioso professo
de S. Domingos. Renunciou nas mãos do cardeal João Spontino, naquele
tempo núncio em Portugal com poderes de legado a latere, o qual
alevantou em colegiada as ditas igrejas e lhes concedeu todas as graças
e privilégios de que usavam os mais colégios dessa congregação,
pela referida bula apostólica de 3 de Julho de 1550.
A 21 de Março de 1555 o reitor dos Loios do Porto, padre
Brás de Santa Maria, como procurador do geral, padre Diogo
da Ressurreição, tomou posse da igreja paroquial da Feira, no local onde
hoje se encontra a Misericórdia, na presença do conde da Feira, D. Diogo. Foram despedidos o cura Nuno de Carvalho
e o reverendo Diogo Tavares. A renúncia de frei Pero Soares tinha tido
confirmação papal em 16 de Outubro de 1553.
Da igreja de Travanca não podiam tomar posse em vida
do abade Tristão Pinto que diziam ser sobrinho do frei Pero
Soares. Morto ele, porém, e aos 15 de Novembro de 1565,
foi tomada essa posse e transferida a 17 de Dezembro do dito ano para o
padre João de Santa Maria reitor do convento dos Loios no Porto e que em
Maio seguinte de 1566 foi mandado para a Feira como reitor do novo
convento.
ADMINISTRADORES E REITORES
Tendo sido a primeira pedra da nova igreja da Feira colocada solenemente no dia de S. João
ante portam latinam, aos 6 de
Maio de 1560, no sétimo aniversário da morte do padre Rodrigo da Madre
de Deus, já deviam estar muito adiantadas as edificações e habitável o
convento seis anos depois. Portanto o reitor nomeado para ele não podia
ser um simples administrador das obras, recaindo a escolha, de
mais a mais, no reitor cessante da colegiada do Porto. O título seria
simplesmente o pretexto, mas não um limite
de funções. Na lista desses primeiros superiores figuram
cinco que depois foram gerais (dois por três vezes) e este nosso padre
Jorge de S. Paulo, principal autor do Livro e memorial tem a designação
de «padre mestre». Revela ele esta mesma opinião como se vê do que
escreveu na folha 42:
O religioso que governava este convento não tem
ainda verdadeiro título de reitor porquanto não é nem
nunca foi casa colegiada. Somente lhe deram título de Administrador das
obras, posto que sempre se intitula
reitor da Feira, é eleito em capítulo geral pelos votos da
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132 /
definição, tem mesa travessa como qualquer outro prelado das mais casas. No ano de 1566 aos 30 de Abril fizeram os homens
nobres desta vila petição ao capítulo em que pediam se elegesse reitor
para que governasse
esta igreja, porquanto dessa concessão e união das igrejas de S. Nicolau e Travanca a este convento, que foi
no ano de 1550, era a dita governada por curas sem residência de abade, somente o reitor do Porto de quando
em quando acudia às obras do mosteiro, alegando juntamente na petição que o rendimento do curado sem a
renda do convento bastava para sustentar ao reitor e seu
companheiro e outras coisas que podem ver na petição
que está na gaveta 4.ª n.º 10.º Na sobredita petição não
está despacho algum do capítulo porém achei que quando
se fez o contrato com os fregueses que foi em 17 de Dezembro de 1566
acerca de se mudar a freguesia para o convento se nomeia no contrato o
padre João de Santa Maria por reitor desta casa e procurador da
congregação
para celebrar o contrato, e a petição dos fregueses foi
a 30 de Abril do mesmo ano de 1566, de modo que combinadas as eras, foi eleito no capítulo em que se apresentou a petição o padre João de Santa Maria por reitor
deste convento assim que foi o primeiro reitor dele e
começou no dito ano de 1566. E adverti que este mesmo
padre João de Santa Maria no mesmo ano que foi eleito
reitor desta casa tinha acabado de reitor do Porto, o que
colijo do dia e ano em que tomou posse da igreja de
Travanca que foi aos 17 de Dezembro de 1565, como
consta do documento da posse que está na gaveta primeira n.º 11.º e
acabou de reitor do Porto no capítulo
que se fez daí a cinco meses que foi em Maio de 1566 no
qual foi eleito porque em Dezembro da mesma era se
nomeia reitor no contrato das freguesias que está na
gaveta quarta n.º 8.º e no livro 10 fl. 7 se nomeia também por reitor desta casa.
A lista que vou apresentar começou a escrever-se anteriormente à já publicada neste
Arquivo e foi talvez a fonte
dela, como facilmente se deduz.
O livro 3.º de lembranças examinado pelo escrupuloso
cónego A. FERREIRA PINTO (pág. 85 do voI. IV do Arquivo),
escrito aos 20 dias do mês de Novembro de 1815, é manifestamente
decalcado sobre o que tenho aqui e estou copiando,
escrito pelo padre mestre Jorge de S. Paulo no ano de 1638. A parte
Fundação transcrita é uma súmula do que leio na folha 3 do cartapácio
aqui presente, só com a diferença do
erro evidente na data final que é 1549 e não 1449. A própria
lista dos reitores parece copiada do Livro e memorial, porque
/ 133 / as omissões e erros correspondem a palavras mais
difíceis de
ler, pelas caligrafias várias e às vezes arrevezadas ou pela tinta
sumida.
Limito-me a copiar a lista dando-lhe mais fácil disposição.
REITORES DO CONVENTO DA FEIRA
Listagem em PDF
-
clicar no título
Nota: De acordo com anotação
no final do doc. em PDF, o último nome, referente a 90-62,
António Baptista da Silva, de Braga, não consta na lista do Livro
e memorial.
/
135 /
CAPELA-MOR
No mesmo cartapácio, o padre mestre Jorge de São Paulo
elucida outro caso complicado relativo à igreja do Espírito
Santo no convento de S. João Evangelista, actualmente paroquial de S.
Nicolau da Feira.
Diz a tradição que a
capela-mor era pequena, pelo que D. Inês de Castro, filha de um conde da
Feira, a mandou reconstruir à sua custa.
Verifica-se que o conde D. Diogo deixou a capela-mor
incompleta e foi refeita depois da morte da D. Inês, sua
irmã.
Leiamos o escrito pelo padre mestre Jorge de S. Paulo na folha 16 verso:
No ano de 1580 contratou o conde D. Diogo, fundador, com o mestre de
pedraria Jerónimo Luís para que fizesse a capela-mor na forma que lhe
apontava no contrato em preço de 180$000 reis e quarenta alqueires de
trigo e quarenta de segunda e uma pipa de vinho.
Esta capela se principiou e não se acabou por nesse
tempo morrer o conde D. Diogo e o conde D. João, seu
neto, que lhe sucedeu, não tratou disso: ou por andar ausente ou por não
ter tanto espírito como o conde seu avô. (As palavras em itálico foram
riscadas e por
cima outra caligrafia escreveu: tantas posses.)
/ 136 /
Segue a narração na folha 17 verso:
O certo é que D. Leonis, irmão do devoto conde D. Diogo e de D. Inês de
Castro sua irmã, mandou fazer uma capela neste convento, o que ficou à
conta da senhora D. Inês que devia de ser por alguma herança do D.
Leonis seu irmão.
Na gaveta 4.ª n.º 9.º está um papel de que consta que a senhora D. Inês
era obrigada a fazer a capela de seu irmão D. Leonis, cujos ossos se não
sabe onde estão.
Este D. Leonis, filho bastardo do terceiro conde da Feira
D. Manuel Pereira, notabilizou-se em Malaca a ponto de ser cantado num
soneto por CAMÕES. Ao mesmo tempo militava também na Índia outro irmão,
D. João Pereira, filho do primeiro matrimónio do conde D. Manuel com a
condessa D. Isabel de Castro, filha do primeiro conde de Tarouca D. João
de Meneses.
Continuemos lendo o padre mestre Jorge de S. Paulo,
na folha 20:
D. João Pereira, irmão do conde D. Diogo fundador
deste mosteiro, vindo das partes da índia morreu no mar,
tinha feito seu testamento em que mandou o seguinte:
Mando que se me faça uma capela de Nossa Senhora em Portugal no Mosteiro
do Espírito Santo na Feira à custa de minha fazenda, e o instituidor
dela quero que seja o conde meu irmão e seu filho D. Manuel Pereira e
deixo para nela se me dizer uma missa perpetuamente em cada ano vinte
mil reis de
juro os quais mando se comprem com minha fazenda para a esmola e
sustentação do padre que a disser e não se acabando o mosteiro mando que
se me faça a dita capela assim e da maneira que dito é em S. Nicolau.
Onde se fizer a capela se trasladarão os ossos de meu pai e de minha
mãe e a missa que se disser seja por minha alma e de meus defuntos.
Segue na folha 19:
D. Inês de Castro, como herdeira que foi de seu irmão
D. João Pereira e obrigada da verba do seu testamento... mandou em seu testamento se fizesse a capela mor ....
Deixara explicado na folha 17:
O conde D. Diogo seu irmão e D. Inês de Castro
sua irmã e Álvaro Peres de Andrade seu cunhado (viúvo
/
137 / de outra irmã D. Guiomar de Castro, filha das segundas núpcias do
conde D. Manuel com a condessa
D. Francisca Henriques) foram seus herdeiros e testamenteiros (do D.
João Pereira) e porque não quiseram nunca cumprir este legado da capela
fizeram os padres petição ao juiz das capelas mandasse fazer esta capela conforme ao legado de D. João; que devia de ser
no ano de 1595 em que já o conde D. Diogo era falecido; o que,
por então não teve efeito até que morreu a senhora D. Inês de Castro
herdeira de D. João e sua irmã, mandou em seu testamento se fizesse a capela mor do convento sob a
invocação do Espírito Santo por respeito de uma ermida que estava neste
sítio onde se fundou o mosteiro que tinha a mesma invocação...
Foram testamenteiros de D. Inês D. António Pereira de Meneses seu sobrinho e D. Manuel Pereira, inquisidor, chamado o
Cabrinha (também filho bastardo do irmão D. João Pereira. Morreu em
Lisboa, como escreve o mesmo padre Jorge de S. Paulo na folha 262.
Deixou um legado à igreja da Feira que não foi aceite por o seu
testamenteiro Vasco Pereira César «não querer vir no que era justo»).
Estes dois testamenteiros puseram logo em efeito esta última vontade de
sua tia D. Inês de Castro de modo que aos seis de Abril de 1618 se
lançou a primeira pedra depois de se ter desfeito a obra velha e se tem
gastado na capela dois contos seis centos e oitenta mil reis, como
consta dos livros, que são por outra conta seis mil e setecentos
cruzados, até o ano de 1628 (emendado para 1638).
A grandeza e majestade da capela mor demandava outro cruzeiro mais
alteroso do que estava feito antes de se começar a capela mor, e assim o
padre geral Ambrósio de Santo Agostinho, à petição de D. António
Pereira de Meneses, mandou ao padre reitor Miguel do Espírito Santo
começasse a obra do cruzeiro proporcionada à obra da capela mor, em que
não houve contrato algum entre nós e D. António e D. Manuel Pereira que
ainda então era vivo, mais que ficar em seu querer quererem dar alguma
ajuda para obra tão majestosa. O padre geral lançou a primeira pedra do
cruzeiro quarta feira 30 de Julho de 1625, sendo mestre da obra
Francisco Carvalho, do Porto e por sua morte entrou Valentim Carvalho,
morador também no Porto. Tem-se gastado na
dita obra do cruzeiro até o ano de 1639 três contos
trezentos sessenta e seis mil trezentos setenta reis: a saber um conto e
novecentos mil reis das rendas do convento e um conto e quatrocentos
sessenta e seis mil trezentos e setenta reis que deu D. António Pereira
/
138 /
de Meneses, seu e do juro de D. Inês, e do restante de sua fazenda.
Não preciso acrescentar nada ao que escreveu o meu bom informador, testemunha presencial de uns factos e consciencioso e documentado crítico de outros.
A iniciativa da construção de urna capela para sepultura
dos condes da Feira pertence ao heróico D. Leonis que, no
dizer de CAMÕES, fez em Malaca
Mais de que Leónidas fez em Grécia.
Seguiu-lhe o exemplo ou teve o mesmo intento o seu irmão D. João e,
como herdeira de ambos, repetiu e ampliou esse desejo a irmã D. Inês de
Castro. Mas afinal não foi esta nem aqueles quem fez a capela mor.
Vieram a ser os testamenteiros da D. Inês, os quais, como em cumprimento
das
suas disposições procediam, puseram lá a lisonja das armas dela.
Resta-me só dizer que as erraram. A D. Inês casara e enviuvou. Portanto a
lisonja das suas armas devia ser bipartida e ter ao lado da cruz dos
Pereiras o brasão do marido que seria o dos Vila Real pinchado de
bastardia, por isso que o vice rei da Índia D. António de Noronha era
bastardo de D. João de Noronha, filho também ilegítimo do segundo
marquês de Vila Real.
Fecho com esta nota heráldica porque a simplicidade da lisonja posta na
capela-mor me levou a atribuir erradamente a sua construção a outra D.
Inês de Castro filha de um que não chegou a ser conde da Feira. O pai
desta, D. Manuel Pereira, não teve o título por morrer em vida do seu
pai que era este D. Diogo, quarto conde da Feira. Não era filha do
conde, mas era neta de um e irmã de outro, tornando assim fácil uma errónea tradição. Por último, apurei que esta D.
Inês se
chamava simplesmente D. Margarida da Silva, e morreu em 1646.
Feira, 12 de Abril 1949.
VAZ FERREIRA |