DESDE
tempos imemoriais (quando os rios eram, à falta
de outras, estradas de Deus ao serviço do caminho dos
homens) até ao presente, é tradicional o ajuntamento de
muito povo da redondeza e de longes terras no areal do
Vouga, em Almear, próximo da Ponte da Rata, nas tardes
quentes dos domingos de Agosto.
Todo esse mundo de gente ali ia e ali vai ainda para se
divertir, o areal fica em festa e transforma-se em romaria, e
com mais ou menos povo ou cenas que de ano para ano possam
variar (e mais ou menos literatura na descrição), se o engenho
e a arte me ajudarem pintarei o quadro de usanças etnográficas com realidade, «mostrando»
ao leitor uma dessas tardes
festivas e coloridas da região.
Também antigamente, e ainda há dezoito anos atrás, constituía hábito de muita gente de
Ílhavo ir «a banhos» para
Almear, que as águas do Vouga, de S. Pedro do Sul para
baixo, muito bem faziam às doenças da pele.
Era no último domingo de Agosto. A tarde ia quente.
Soalheira. Os campos largos do Almargem e de Alquerubim, de Picão, de Pinheiro e de S. João de Loure, e por aí
abaixo até Angeja, ainda traziam milhos por ceifar, os azevens
verdes e mimosos salpicados de flores amarelas dos pampilhos.
Nos montes, ao redor, os píncaros nostálgicos dos pinheiros e eucaliptos, nimbados de luz doirada, erguiam-se para o
azul das alturas.
Por toda a vasta largueza da paisagem, nas planuras e
nas elevações, as pinceladas bucólicas do casaria rural: − Ali,
Almear (Almenara) e, em relevo de vanguarda, uma casa
«assolarada» de azulejos verdes com medieva escada de granito e portão de ferro com pilastras também de granito. Para
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[Vol.
XV - n.º 57 - 1949]
lá, ao cimo da montanha, estende-se a freguesia de Travassô (Travasolo).
Mais além, ao fundo, na esteira multicor da
planície, a famosa Pateira de Fermentelos (Foramontanelos).
A Nascente espreitam, de longe, torres das igrejas de Segadães (Segadanes)
e Trufa (Tarafa). Ao Norte a grande e espalhada freguesia de Alquerubim
(Al-Corbin), que vai de Pardos e Calvães até ao distante lugar de Paus
(Paoos), já a caminho de Albergaria-a-Velha. E para Poente Carcavelos,
Ponte da Rata e, nas alturas, Eirol (Eyrool), com a sua igreja de Santa
Eulália embrulhada em alvura de cal. Vasto miradouro de grandioso
cenário!
Era no último domingo de Agosto. Andavam cantigas
no
ar quente daquela tarde. As uvas amaduravam nos vinhedos. Pombas mansas
voavam perto.
dlin . .. dlin... dlin...
Dacolá, das cordas de uma viola, vinham sons alegres,
cantantes, repenicados. Era a viola do Remígio.
Já tinham batido cinco horas. O Sol declinava, ainda alto. O Céu sem
nuvens, translúcido. A luz clara, fluido de oiro e rosas. O ar tremia
como os corações moços. O areal cheio de gente... e o rio, além, água
esverdeada e transparente, deslizava, muito sereno e muito suave, por
entre margens arrelvadas, com amieiras, freixos e salgueiros, a
projectarem caprichosos e trémulos rendilhados de amenas e aveludadas
sombras que se estendiam e alongavam sonhadoras sobre a mansidão poética
do rio, que na monotonia e suavidade do seu deslizar parecia transportar
todas as saudades do pitoresco da paisagem, dos montes altivos e
agrestes, dos vales acidentados e profundos, das várzeas multicores e
cultivadas... e das aliciantes localidades que para trás deixara:
Valongo, Macinhata, Sarnada, Paradela, Cedrim, Ribeiradio, Arcozelo,
Quintela, Vila Chã, Pinheiro de Lafões, Oliveira de Frades, S. Vicente,
Vouzela, S. Pedro do Sul...
e outras mais por aí arriba. Serra arriba...
.... dlin. .. dlin... dlin...
Isto era no areal, aquela viola cantante de sons repenicados do Remígio...
Dois barcos mercanteis, um abarrotado de molhinhos de
carqueja, outro a transbordar com grossas achas de lenha
/
50 /
de pinheiro − os compridos mastros deitados por cima das
cargas − ali estavam encostados à margem esquerda, talvez à espera de
maior volume de água para descerem rumo a Aveiro, empurrados à vara, que o rio de há muito anda
assoreado... aqui e além bucólicos ilhotes de areia branca,
como seios, em faiscações luminosas, a darem-se à superfície... E esses barcos quando subiram o rio, no seu habitual roteiro económico e comercial, transportaram sal, tijolos e telhas,
das marinhas e das cerâmicas da cidade da beira-mar
para localidades que ficam no interior, lá para riba, na vizinhança das serras.
A Poente do areal de Almear, do lado da estrada, tascos
de vinho e de petiscos, com tabuletas de tábua que anunciavam em tinta roxa de escrever, rabioscado à mão:
|
à leitão asado
e
bom binho
|
|
|
E na rampa a descer, e no próprio areal, estacionavam
modestas carripanas de burros, alguns automóveis, dois motociclos,
muitas bicicletas.
Nas margens do caminho em rampa, e sempre por aí
abaixo, mulheres aninhadas no chão junto de canastras, de
tabuleiros, cestos e açafates com fruta, pão de trigo, tremoços, cavacas, roscas, figos secos do Algarve em ceiras de palha
trançada, e doces vários... e toca a vender ao povinho
que mercava, que punha e embrulhava as «mercas» nos lenços das mãos... Homens e mulheres
− a maior parte gente rural,
lavradores e moços e moças de toda a redondeza − grupos por
aqui e por acolá «à palra» ou a cantar e a bailaricar, braços
e mãos ao alto, os dedos a esturlicar, os corações festivos,
os corpos em saracoteios:
«Ó vira do vira,
ó vira virou...
as voltas do vira
sou eu que as dou.
Rambóia, gentes, rambóia!...
Outros, de mais longe, trouxeram as suas merendas,
e... depois de um banho ligeiro e refrescante (mesmo em ceroulas ou cuecas) no rio esverdeado e transparente, de
areias brancas com faiscações luminosas... agora desencalorados,
/
51 / toca a
sentarem-se no arrelvado da margem esquerda, à sombra
acolhedora das velhas amieiras.
Também por ali andavam a passear, na tarde quente daquele último domingo
de Agosto, senhoras e cavalheiros de localidades próximas, e das vilas
de Águeda e de Albergaria-a-Velha, e da cidade de Aveiro, com vestidos
da moda e fatos janotas. Figurinos de bom tom na paisagem rural.
As freguesias de Alquerubim, Segadães, Trofa,
Ois da Ribeira, EspinheI,
Travassô, Requeixo, Eirol, Eixo, S. João de Loure e ainda outras,
estavam largamente representadas
por seus filhos e residentes. E gente de Ílhavo, ali a banhos,
distinguia-se pelo seu linguajar de pronúncia característica. Via de
regra gente modesta que, todos os anos, por aquele tempo, se acomodava
por salas e alpendres dos lavradores
de Almear.
dlin... dlin... dlin...
O areal, muito animado. As merendas ruidosas,
com risadas cascalhantes,
falatório malicioso, picheiras e garrafões e cabaças e pipinhos com
vinho, e cestos com apetitosos farnéis, nacos de pão e de carne nas mãos
(leitão, chouriço de fumeiro, galinha assada), queixadas a mastigarem à
disputa, copos cheios e vasilhas empinadas nas guelas sequiosas, a pinga
escorropichada com volúpia de crentes, os pescoços espichados... e
depois, alentados «ahs» de satisfação física e espiritual, os olhos vermelhuços a lacrimejarem... e os beiços molhados eram limpos às
costas das mãos! − «Pois atão como é, home de Deus»!... «Raios te
comam, que nunca aprendes»...
A seguir, um interregno de segundos de hesitação entremeado de graçolas
pesadas e maliciosas que provocam risotas descaradas, e outra vez o
ataque ao chouriço e ao leitão (enquanto dura, vida doçura) que... «de
tão bem assadinho tinha a pele a estalar», e havia recheio, «home de
Deus»; um nadinha apimentado − muito apetitoso! Mesmo bom a valer...
Era no último domingo de Agosto. As uvas amaduravam nos vinhedos. As
largas planícies dos campos ainda traziam milhos por ceifar. Pombas
mansas voavam perto, silhuetas aladas a bordarem a porcelana azul do
céu.
Calor. Vinho. Mulheres. Alegria. As faces das pessoas, coradinhas. Os olhos a lacrimejarem, do picante do vinhinho...
E viva deus Baco!
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62 /
As raparigas azougadas,
provocantes. Os rapazes atrevidotes. E, acolá, cantigas ao desafio com
muitos apreciadores à roda, a gozarem aquilo:
ó − i − ó − ai...
. . . . .
. . . . .
«diz vosmecê qu'eu tenho rapaz,
digo eu que vosmecê tem rapariga...
e tamãe digo que ti Russo no é capaz
de lhe fazer inchar a barriga....
Às últimas palavras da quadra uma larga risota dos assistentes aplaudiu
o improviso da moçoíla rimadora à «deixa» do outro, e algumas vozes
disseram alto:
− Ai o raio da cachopa, que lh'atirou mesmo a matar.
− Pois não querem lá ver...
a rapariga sabe daquilo!
Sim, senhor! Ora vai-te! ...
− Coitado do ti Russo...
− Olha quem ela é! ... a Amélia Fanata I Cachopa remexida, frescalhona e reinadia, que tem muito jeito «p'rás respostas», toda a gente o diz! mail-o Jaquim Russo, do Fial...
Sim, senhor! Pois atão quem havera de ser, senão ele. Home levado dum
raio p'rás mulheres! ... e já vai nos sessenta! Mas não parece, assim todo lampeiro, os
olhitos
pequenos e piscos... Femeeiro a valer, lá isso é qu'ele é!...
Pelo que dizem, tem mais de meia dúzia de filhos arredios, um de cada
barriga. Homenzinho dum raio! ...
− E além, vai ajuntamento grande e anda poeira no ar... Vosmecês
estão a ver, gentes?!... Que diacho será aquilo?!...
− Aquilo é rambóia, gentes,
é rambóia.
dlin... dlin... dlin...
Isto é a viola do Remígio da ti Eduviges acompanhada
da harmónica do Zé da Angélica. Os dois tocadores estão rodeados de
muito povo em meio do areal. O Remígio sempre com a ponta do cigarrito
dos fortes, ao canto da boca a chamuscar os pelitos do bigode ralo. É
hábito. Parece
que assim toca melhor. E o Zé da Angélica, cada safanão
que dá ao fole da harmónica cerra os olhos, a sentir aquilo...
e a camisa de riscado, espipada da calça, sai-lhe para fora do colete
curto. Dois artistas. Dois boémios... O Remígio cultiva umas territas,
tem umas leiras e uns pinhaizitos. E o
Zé da Angélica, esse é moleiro, de uma família de moleiros.
O pai já era moleiro e o avô também moleiro, sempre atrás
dos burritos com as taleigas da moenda dos fregueses, Mas gente boa,
gente boa...
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53 /
A tarde ia quente. Soalheira...
Ao som dos simpáticos instrumentos as raparigas e rapazes bailaricavam, encalorados e luxuriosos, agitados e suarentos
− elas
e eles aos pares, muito agarrados e excitados... pelo calor, pelo
vinhinho, pelo contacto dos corpos... a carne em desejos sensuais, as
barrigas coladas, os seios das cachopas oferecidos e amarrotados contra
os peitos deles... moços de trabalhos agrícolas, caixeiros de tascas e
de lojas, aprendizes de trolhas e de ferreiros provincianos, e alguns
estudantes em férias que queriam gozar − tudo domingueiramente enfarpelado nas roupas de «benza-a-Deus», muitos deles com
raminhos festivos nos chapéus... e, elas... cachopas da vida rural,
a cheirarem a feno e a alecrim, morenas e roliças, muito afogueadas, os
cabelos escuros e fartos, os penteados já em desalinho a caírem sobre os
pescoços e os ombros, os olhos húmidos e lânguidos de volúpia, os lábios
a tremer, as carnes moças a tremer, os corpos bamboleantes e unidos em
saracoteios ritmados e sensualões, bailaricavam ao som da harmónica do
Zé da Angélica e da viola do Remígio.
dlin . .. dlin... dlin...
Isto é rambóia, gentes, é rambóia! Os corações andam aos pulos. O
sangue moço anda aos pulos. Os seios esmagados, a entregarem-se em fúria
e desejo. Sensualismo a transbordar. E, às vezes, ao dar da meia volta
...
− Seu atrevido! − berrou alguém em meio da confusão do bailarico. Era
uma mocetona corada e trigueiraça, os olhos largos e pestanudos, as
sobrancelhas escuras e fartas, o nariz um nadinha arrebitado, um «buçozinho»
no lábio superior... tudo a lembrar boa mistura de sangue sarraceno,
sangue da moirama de outrora.
− Vá agarrar lá nisso da sua avó... ora o atrevido! Pois quem é que
você pensa qu'eu sou?!... Olhe que nem todas são no mesmo, ouviu?...
E com tais palavras a mocetona trigueiraça e corada, de olhos largos e
pestanudos, muito formalizada e parecendo não ter gostado da
brincadeira, compunha nervosamente o cabelo em desalinho e gesticulava...
dlin... dlin... dlin...
Rambóia, gentes, rambóia!...
− Ó menina dos olhos grandes, não seja tão arisca
− disse um dos estudantes que andava em cabelo, folião e
galhofeiro, apertando muito a si a cachopa com quem bailava.
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54 /
Ouviram-se risos. Ditos maliciosos...
Então uma mulher de idade −
xaile pelas costas e lenço
escuro de ramagens na cabeça grisalha − de entre as pessoas
que à roda presenciavam, falou alto: − «que não havia direito,
de se fazer aquilo, grande pouca vergonha!»
Era a ti Ana do Castorino, viúva do ti «Sabastião» que
Deus haja, que morreu de um tumor maligno na véspera da
Senhora das Febres, já lá iam cinco anos...
Foi quando um homem novo e
sardento, talvez parente
ou conterrâneo amoroso da cachopa trigueiraça, avançou resoluto e de
olhos em chispas para o atrevido.
Grande confusão, socos, reboliço, pancadaria grossa.
Tudo parou de dançar. Há correrias. Uns afastam-se e
outros aproximam-se. O barulho generalizou-se. Todos
dão e apanham. Todos querem molhar a sopa. Mulheres berram. Outras
gritam «ai Jesus, aqui d'el rei»! Já deu um
fanico numa rapariga histérica que outra amparou, levando-a
para longe dali. Vêem-se marmeleiros no ar. Um rapazola
está com a cabeça a esguichar sangue, mas continua assanhado.
Outro, ajudante de trolha, já tem um grande lenho na cara.
O homem novo e sardento, que foi o rastilho do barulho,
traz o casaco todo rasgado nas costas e a camisa de riscado
fora das calças. Os chapéus dos homens, pelo chão, andam
pisados pelo reboliço. Uma rapariga foi a correr à borda do
rio, muito aflita, buscar uma caneca de água para refrescar a testa do
seu primo António, que está p'ráli caído no areal sem dar acordo de si e
até parece morto...
− Grande pouca vergonha! − fala alto a ti Ana do Castorino.
E uma mulher de Ílhavo diz para outra, sua conterrânea, que está afastada de si, na pronúncia interessante dos
«íbalhos»:
− Ah, cachopa!... tir-te daí... olha c'os estipores dos
homes trazem o mafarrico no corpo, credo!...
Foi quando um dos estudantes, que trepou a um muro
próximo, berrou lá de cima, com gestos teatrais e cómicos,
para o povo do barulho:
− Attention, messieurs, attention!
Cherchez l'amour... messieurs! −
substituindo assim o velho lugar comum do cherchez la femme.
− Grande pouca vergonha! − diziam ainda os olhos da
ti Ana do Castorino. E o ti Venâncio, lavrador já cansadote,
sério e rico (tinha duas juntas de vacas no curral e boa adega
de mil e tal almudes) conversava com o Dr. Angelino e o
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55 /
industrial Ribeiro da Silva − ambos de Águeda − e olhava
despreocupadamente, de largo, a harmónica do Zé da Angélica e a viola do Remígio, que recomeçava:
dlin... dlin... dlin...
Isto é rambóia, gentes, é rambóia!
Cherchez l'amour,
messieurs, ici et partout. L'amour, c'est la vie!...
Ora, foi precisamente ao findar do barulho que apareceram no areal, a
dirigirem-se para o ajuntamento que rodeava a viola e a harmónica, o ti
Augusto Pintassilgo e o Júlio da
Bouça...
Aquele trazia o seu conhecido e famoso bombo das romarias e rambóias, ao
qual atirava pancadas rijas que ressoavam com estrondo:
bum... bum − bum − bum...
E o Júlio, aparelhando ao lado do ti Pintassilgo, tocava
o tradicional ferrinho:
tim... tim − tim - tim...
Estes bambo e ferrinho e aquelas harmónica e viola completavam-se.
Faziam um quarteto necessário ao ritmo musical de certas cantigas e
danças em voga e, sem esses instrumentos, as festas do mundo rural da
região perdiam carácter, porque a toada e harmonia da música pareciam
estar em concordância com a garridice da indumentária das gentes e com
a ancestralidade dos sangues a reviver costumes e
velhas usanças.
Seis horas. A roda do Sol tinha descido mais na tarde quente daquele
último domingo de Agosto.
Os dois barcos mercanteis lá estavam, parados e quietos, os mastros
deitados ao comprido sobre a carqueja e as achas de lenha. Perto dos
barcos, um dos barqueiros, de indumentária característica, assava
sardinhas em brasas vivas e ia-as comendo sobre nacos de broa.
No rio, p'ra riba e p'ra baixo, senhoras e rapazes de Aveiro passeavam
em bateiras chatas, empurradas à vara. Ainda havia homens de ceroulas
compridas e de troncos nus a tomar banho, e viam-se-lhes os peitos
cabeludos, as barrigas
que pareciam pandeiros, os umbigos à mostra. Mulheres,
pelo meio do rio assoreado, arregaçavam as saias acima dos
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joelhos, a verem-se as coxas, com o pretexto de banharem
as pernas, mas, na verdade... para bem as mostrarem aos olhos
concupiscentes dos homens.
Rapazitos, que andavam nus em pelo, davam grandes
saltos dos ramos altos das amieiras das margens. Outros
esforçavam-se por aprender a nadar. Crianças, também nuazinhas e pelas mãos das mães, recebiam «machucos», choramingavam e
ficavam depois por ali a chapinhar pelas bordas,
na água verde e transparente do rio, que deslizava suavemente... aqui e além vagos murmúrios
− rocegar da corrente nos ramos dos
salgueiros tombados na água... que por vezes reflectia a porcelana do
céu distante.
Murmúrios! Vagos e suaves murmúrios da água do rio ao cair sereno da
tarde, por entre rendilhados de sombras!
Cicios que ora pareciam querençosos ecos de velhas e saudosas lendas perdidas em mundos quiméricos, ora nostálgicas baladas de sonho, ora génios que habitassem o próprio
rio e pretendessem traduzir as suas dores, arroubos e encantamentos nas avé-marias de GOUNOD e de SCHUBERT, nas sinfonias de
BEETHOVEN, nas marchas guerreiras e nos nocturnos de CHOPIN.
E, logo, quando todos já tenham partido e as aves recolhido aos ninhos,
quando o areal e tudo ao redor seja sossego, e os casais durmam, e já se
não ouça o coaxar das rãs e nem o latir monótono dos cães... então dos
esconderijos mais
sombrios das margens, dos tufos arrelvados, dos frondosos ramos do
arvoredo, surgirão os duendes do rio, que principiarão por entoar cânticos aos deuses dos mitos, e bailarão
sobre as águas verdes à luz morna e opalizada da Lua, e os
rouxinóis boémios, de guitarras de âmbar nas pequeninas
almas de grandes trovadores, cantarão nos bucólicos salgueiros as nostálgicas melodias do luar de Agosto ao ritmo dos
bailados dos duendes, e ouvir-se-ão baixinho − como música
ao longe − as frautas dos pastores das serras longínquas...
desde a Gralheira e para lá da Gralheira... por onde o rio
passa a sonhar!...
Música ao longe! Frautas acompanhadas de harpas
mágicas e de mágicos violinos − com PAGANINI a reger − em prelúdios de
amor!
Amor!... Amor dos corações enamorados das que
foram virgens e se perderam nas românticas e sensuais tardes de Agosto ao som de harmónicas e violas cantadeiras...
e na suavidade do veludo quimérico e emotivo das noites de
prazer, cheias de silêncios místicos, e grandes, e fundos... quando na
mornidão do ar andam delírios de sonhos e essências
/
57 / das vagas e... sobre a Terra, em ânsias de fecundação e Vida, vagas
silhuetas de faunos de olhares lúbricos.
Noites de amor! Noites de enlevo! De enlevo e de
expectativa! De desilusão e de angústia!
Noites de preces rezadas em rosários de lágrimas diante
do altar da Virgem, as mãos erguidas a implorar, a implorar!:
«Minha Nossa Senhora!»
«Virgem Santíssima, vaIei-me!»
dlin ... dlin... dlin...
Desceu mais ainda a roda do Sol, mas os grupos continuavam por todo o
areal. E o vinhinho era o rei e a alegria do povo... deste bom povo
português.
Nos montes, ao redor, os píncaros nostálgicos dos pinheiros e eucaliptos
pareciam agora ourelados de uma luz azul-violeta.
Na estrada nacional passavam carros de burros, automóveis e gente
alegre. Ouviu-se um apito agudo do comboio do Vale do Vouga ao entrar
no túnel de Eirol, depois seguiu
para Travassô, Cabanões, Casal d'Álvaro, Águeda, Sarnada e outras estações e apeadeiros, até Viseu... sempre a contornar
montes e vales aos zigue-zagues, a bordejar cenários policrómicos da
paisagem aliciante da região.
Lá para baixo, além, ao fundo daquele caminho do areal, por entre
arvoredos e sítios escondidos, andam parzinhos felizes que se apertam e
beijam doidamente, todos entregues ao deus Amor.
Amor! − ai − la − ri − ló − lé...
. . . . . . . . . . . . . .
. .
«Aaaa... lecrim...
aalecrim aos... molhos...
por... cau... sa de ti...
cho... ram os... meus... olhos...
Assim cantava, em toada arrastada, um grupo alegre de raparigas e de
rapazes numa «dança de roda» (que ainda se dança na região), todos de
mãos dadas e, no remate de cada cantiga, os pares enlaçavam-se e
rodopiavam, voltando depois a darem-se as mãos.
Ainda bem não tinha acabado
o rodopio com a modinha do alecrim e já uma
das cachopas do ruidoso grupo, em voz
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58 /
de bom timbre, deu início a outra, logo acompanhada por
todos em vozes que se iam alteando:
Ora ponh' aqui,
ora ponh' aqui o seu pézinho...
chegadinho,
chegadinho ao pé do meu...
e ao tirar,
e ao tirar o seu pézinho...
ai Jesus,
ai Jesus, que lá vou eu...
E terminada esta, outra logo a seguir, de toada lenta e
monótona:
Óóó. .. re − ma − dor...
reee... ma li − gei − ro...
p'róóó. .. teu bar − qui − nho...
ser' o pri − mei... roo
E... se tu foo... res,
ooo. ., ven − ce − dor...
eeeu... te da − rei,
o meeeu... a − moro(1)
Amor!
fffggg. .. fffggg...
Quase ao findar desta cantiga e do correspondente bailaricar, dois foguetes de «três respostas», não longe dali,
subiram alto, no espaço, e estralejaram.
O Remígio repenicou nervosamente as cordas da viola
e mordeu rijo a ponta do cigarrito dos fortes.
O Zé da Angélica, a espremer para trás e para diante o
fole da harmónica, atirou o nariz p'ró ar na direcção dos
foguetes e teve um sorriso enigmático e bregeiro, de quem sabia daquele segredo... ...daquele código... de que o
ti Pintassilgo e o Júlio da Bouça, que trocaram significativos
olhares, também sabiam...
E ao longe − como um eco de saudade
e de malícia perdido na distância − parecia ouvir-se ainda, «ao desafio», a voz
irónica e fresca da Amélia Fanata:
«e tamãe digo que ti Russo no é capaz
de lhe fazer inchar a barriga...»
/ 59 /
− Dois foguetes!... Ai, aquilo foi ali p'rás bandas da
Ponte da Rata! Ali parece que há coisa... ó ti Venâncio?!...
A esgueirar-se, muito
disfarçadamente, a caminho da
estrada que ia dar à Ponte da Rata, de xaile novo de merino a cair dos
ombros, o olhar rasteiro, bem penteadinha e sapatos de chagrin... lá ia
a sonsinha da Rosa do Pinheiro no seu passinho de arvéola...
− Boa lasca... Boa febra... E, ali onde a vê, parece que não quebra
um prato... − disse, a medo, o ti Venâncio, que era homem sério e já cansadote...
− Mas onde diabo irá o raio
da cachopa assim naquele
jeito e tão bem penteadinha?!...
O maroto do Zé da Angélica e
o ti Pintassilgo deviam
saber da marosca...
Aveiro, Março, 1949.
LAUDELINO DE MIRANDA MELO |