Luís Chaves, Uma viagem pelo dist. de Aveiro no séc. XIX, Vol. XIV, pp. 267-276

UMA VIAGEM PELO DISTRITO

DE AVEIRO NO SÉCULO XIX

VEIO parar às minhas mãos, não sei já como, um caderno manuscrito de 198 páginas de papel antigo, pautado a água, com as dimensões de 145mm ao alto e 95mm de largura, com os dizeres seguintes na 1.ª página, a servir-lhe de rosto: − 1.º Caderno | Apontamentos de Viagem | 13 de Abril de 1860 | Gerardo Pery | Beira alta e Beira baixa |. Apenas estão utilizadas 116 páginas, com cursivo miúdo, bem rasgado e corrente.

A viagem abrange o percurso de Lisboa, pelas Beiras, até Proença-a-Nova. Ao cimo de cada página ficou apontado o nome do principal acidente populacional ou corográfico, de que nela se fala. Por esse índice peregrinante se observa a passagem do Autor: (3 e 4) Serra do Dianteiro, (5 e 6) Oliveira do Bairro, (7 e 8) Palhaça, (9 a 15) Vagos, (16 a 20) Aveiro, (21) Albergaria [Velha], (22 e 23) Oliveira de Azeméis, (24) Sever, (25) Serra da Freita, (26) Serra de Cambra, (27) Serra da Gralheira, (28) Pecegueiro, (29) Albergaria Velha, (30) Marnel, (31) Águeda, (32) Serra das Talhadas, (33) Vouzela, (34) Banho [S. Pedra do Sul], (35 a 39) Viseu, (40 a 46) Mangualde, (47) Penalva do Castello, (48) Chãos, (49) Fornos d'Algodres, (50 a 52) Gouvêa, (53 e 54) Serra da Estrella = alto da Santinha, (55) Folgosinho, (56) Caverna de Viriato, (57) Linhares, (58 e 59) Rio Mondego, (60 a 62) Guarda, (63) Jarmello, (64 e 65) Belmonte, (66 a 72) Manteigas, (73 a 88) Serra da Estrella, (89) Cêa, (90) Sabugueiro, (91) Carregal, (92) Tondella, (93) Valle de Besteiros, (94 e 95) Serra do Caramullo, (96) St.ª Combadão, (97) Arganil, (98 e 99) Góes, (100 e 101) Pampilhosa, (102) Fajão, (103 a 105) Fundão, (105 a 111) Castello Branco, (112) Villa Velha de Ródão, (113 a l15) Pórtas de Rodão, (116) Proença a Nova. Por estas indicações se vê quantas diversões e reviravoltas o autor dos apontamentos fez, o / 268 / que não devemos estranhar, se notarmos a sua qualidade técnica de topógrafo.

Interessa apenas a transcrição da parte que abrange as terras da região de Aveiro até às entradas na Beira Alta em direcção a Viseu, por Vouzela e S. Pedro do Sul {Págs. 2 a 23), zona comparada às «encostas da serra de Cintra».

Oficial do Exército, GERARDO PERY, com A. J. Pery e C. da Costa, levantou de 1860 a 1865 a Carta Geographica de Portugal, publicada por ordem de Sua Magestade, sob a Direcção do Conselheiro Filippe Folque, «General de Brigada graduado e Director do Instituto Geographico». Foi, assim, no começo deste período de elaboração da Carta, que GERARDO PERY fez a sua viagem de estudo e tomou as notas destes «Apontamentos». Reconhecem-se nelas as observações do geógrafo (acidentes geográficos, geológicos, mineralógicos, etc.), no meio de referências, por vezes poéticas «véo branco de uma casta donzella», ao avistar a Serra da Estrela com neve; «lençol branco extendido na serra [da FreIta]», ante a cascata do Caima), à paisagem e às culturas agrícolas; apreciava os «valles amenos e deliciosos», a envoltura do arvoredo no panorama, como a de Montemor-o-Velho, com as árvores debruçadas no caminho do Mondego, a verem passar o belo rio; fez reparos de arte na arquitectura dos monumentos, nos quadros das igrejas, nas riquezas artísticas destas, e não desprezou curiosas e pitorescas coisas de etnografia e tradições locais.

Não agradarão, por certo, algumas das observações à importância da vida e condições de povoações visitadas, sobretudo as críticas a Aveiro, Ílhavo, Ovar; é bom lembrar que estas visitas foram feitas em 1860, isto é, há 89 anos, e, se compararmos o que Gerardo Pery afirmou, em realidades de então, com o que essas terras hoje são, nas realidades actuais, concluir-se-á, sem dúvida, pela verdade do seu aproveitamento e do progresso resultante.

*

Parti de Lisboa pª Coimbra a 13 d'Abril, na malla-posta; nesta tão cantada terra, estive até ao fim deste mez. Descreverei Coimbra e as suas bellesas, noutra occasiaõ; agora começarei a apontar unicamte o q vi depois q sahi d'alli.

D'alli foi trabalhar á serra do Dianteiro, que fica duas legoas pª Nordeste de Coimbra; esta serra pertence ao mº levantamento do Bussaco, assim como todas as outras serras / 269 / q se estendem até Poiares. Duas legoas pª o poente, fica Penacova, jto ao Mondego, tendo ao N. os grandes penedos d' Albarqueira; Lorvão está escondido n'um profundo valle, com o seu famoso mosteiro; a antiga villa esconde a sua decadencia, por isso q só se vê qdo se está ao pé. Na baixa desta serra pª o poente, n'um extenso valle se achão algas, pequenas povoações, entre ellas a fregia da Figra.

É atravessada esta serra pIa antiga estrada de Coimbra a Viseu, q é o caminho mais curto, mas pessimo, porque até Mortagoa passa por serras asperas, e terreno mto cortado. Na encosta O. da serra está assente a povoação do Dianteiro, Roxo, &c, todas ellas pobres e insignificantes. Esta mª encosta, é quasi toda coberta de pinhaes.

Do alto desta serra gosa-se uma vista excellente, descobrindo-se em dias claros, toda a costa até Ovar, e pª baixo da Figueira. Pª o nascente estende-se a vista até á serra d' Estrella, que vi coberta de neve na parte mais elevada, scintillando aos raios do sol como o véo branco de uma casta donzella. Mais proximo, observa-se um terreno mto accidentado, formado de cabeços arredondados, o q denota formações schistosas, e q. se assemelha a um mar encapellado. Pª S.E vê-se o alto Pico de Trevim na serra da Lousãa, que é a mª elevada das serras proximas da costa. Ao poente, gosa-se a vista de passaro, o valle do Mondego até Montemór-Velho, bordado por duas fileiras de povoações, como que formando alas pª verem passar esse bello rio. Ao N. o Bussaco e mais longe o Caramullo limitam o horisonte.Do Dianteiro até Coimbra, a estrada passa por terrenos mto ferteis e aprasiveis, por valles amenos e deliciosos, onde se vêem escondidas, no meio do arvoredo numerosas habitações. = Sahi de Coimbra pª Vagos em 1 de Maio. Fiquei essa noite em Oliveira de Bairro, em casa do secretario da Administração. A estrada até á Mealhada atravessa um terreno cheio de pinhaes, areento, e só proprio pª tal cultura. Da Mealhada até á Ponte da Pedra, segue o Valle do Certima, Rio que tem a sua origem na serra do Bussaco. Um pouco abaixo da Ponte da Pedra, aparta-se a estrada pª Aveiro. Oliveira de Bairro, está situada n'uma pequena elevação, a 1/2 legoa do Certima. Toda esta porção de terreno, desde Olivª, até Murtedo, é denominada a Bairrada, e produz principalmente um vinho de excellente qualidade, e que é muito procurado. Nestes ultimos annos tem havido grande falta, pois que o oidium não tem poupado aquelles sitios. Tem duas ou trez casas abastadas, a villa d'Olivª. D'Oliveira até á costa, só se vêem pinhaes éxtenços, seguindo pª o Sul até á Figueira.

Fui aqui perfeitamente tratado, pelo menos, de boa vontade. No dia seguinte fui ficar à Palhaça. É um lugar que / 270 / fica na antiga estrada de Coimbra a Aveiro; fui ficar a uma estalagem soffrivel; mas no dia seguinte pela manhã, foi procurar-me um sugeito, que me obrigou a ir almoçar com elle. Era o Morgado de Monternór-Velho, Raposo. Soube depois que era doido. Foi-me mostrar as suas fasendas, e lá me contou uma cousa que a ser verdadeira, é bastante notavel. Disse-me elle, que tinha observado nos annos anteriores n'um valle, que corria pª o Poente, e onde se cultivava arros até certa altura; que [n] umas vinhas que estavam na encosta do Sul, se desenvolvia a molestia com mta mais força, na parte da vinha q ficava proxima aos arrosaes; em qto na outra porção, o mal era mto menor, a p[on]to de escaparem mtas cêpas. A linha N.S que passasse pela extremidade superior dos arrosaes, era a linha divisoria, entre a vinha atacada e a sãa. D'aqui se pode concluir que o vento predominante, N, impellindo as emanações putridas dos arrosaes sobre as vinhas, auxiliava ou augmentava a causa do mal. Talvez desta simples observação, se colhessem gdes resultados, se fosse repetida em grande escala. − Os arredores da Palhaça são mto ferteis, e abundam em agoa. É um terreno areento e mto solto, mto proprio pª certas culturas, especialmente pª hortas. − No dia seguinte marchei pª Vagos, onde estive até ao fim do mez de Maio. Fomos aIli mto obsequiados, pelo Duarte Vidal, e pIo Antº Maximo. Vagos está situada, sobre uma pequena elevação do terreno que borda a ria de Vagos. A ria é navegavel até meia legua a cima da Villa, onde chamão o lugar do Bóco. Na parte opposta e fronteira a Vagos está a Villa de Sousa. Na mma margem direita da ria, e 400m abaixo de Vagos está a fabrica da Vista-Alegre. Esta fabrica pertence aos Ferreira Pintos, e os seus productos são porcelanas e vidros. É já bastante antiga, mas agora está em decadencia. Tem uma bella Igreja, onde se acha a notar a capella-mór, toda de marmore, e de elegante architectura.

O terreno em torno de Vagos é mto abundante de pyrite de ferro, que decompondo-se e transformando-se em carbonato, se muda de novo em oxydo de ferro, que apparece nas areas onde a agua se acha depositada pr algum tempo. Perto de Mira se achou um veio de lPyrite e alguma lignite, mas de nenhuma importancia: −Todo este terreno é dé areia que à força de mto trabalho se tem podido converter em terra cultivavel. Todos os annos vão conquistando um pedaço d'arêa ás dunas que s'extendem até ao mar na largura de 1 a 1/2 légoa. A principal producção é centeio milho e batata. Todo este terreno até Mira, é povoadissimo; e pª se sustentar esta gente, é neccessario tirarem á força de trabalho, um parco producto, d'uma terra ingrata. Um beIlo exemplo, do que pode o trabalbo, é a Gafanha. É uma povoação, composta de casas espalhadas desde a barra d'Aveiro, até á foz da ria de Vagos. / 271 /

Ha 70 annos, apenas havia n'aquelle sitio uma ou duas casas de pescadores, ou mais propriamente, palheiros ou casas de madeira, aonde se recolhem na epoca das pescarias. Semeou-se primeiro pinhal, n'aquelles sitios que nem uma unica planta produziaõ. O pinhal segurou as arêas; os primitivos habitadores, foram cultivando alguma porção de terreno, que estrumavão copiosamente com as plantas maritimas de q abunda a ria e a que chamão moliços; e isso mostrou a possibilidade de se cultivar aquelIa immensa extenção d'areal. Além da má qualidade de terreno q. esta pobre gente tem de cultivar, accresce uma difficuldade que se poderia remediar com alguma despesa: e é q. os ventos impelIem as arêas pª as terras cultivadas, neutralisando deste modo o trabalho empregado. Semeando penisco e matto, por conta das Camaras, seria um beneficio geral que se faria. − A navegação da ria de Vagos, é só feita por barcos pequenos de quilha chata; mas antigamente dava mais fundo. Ha memoria do sitio onde se construiam embarcaçoes grandes. Meia legoa pª N.O de Vagos, ha uma CapelIa dedicada a N. Snrª. Ao poente da CapelIa, vêem-se em pé umas paredes antigas, q. a tradição diz ser a casa d'um Eremita, ou Capella onde antigamente estava a Snrª. Diz a tradicção, q. deu á costa jto áquelle ponto, um navio estrangeiro; e q. o Capitão d'elle se salvára abraçado áquelIa imagem. Fez depois voto de levantar alli uma Capella á Snrª q. tam milagrosamente o salvou, e viver como Eremita, na mª CapelIa. É porem de notar q. a Imagem é de pedra; o q. augmenta o milagre, porq. parece q. em vez de o salvar, o devia perder: depois o Eremita morreu; e passados tempos um fidalgo, não sei em q. apuros prometteo faser uma capella nova pª a Senhora. Veio pª esse fim com um criado, caminhando sempre a direito, e qdo chegou á ria, passou como se tal não existisse, e o criado teve de ir rodear 2 legoas pª a poder passar. Alem deste milagre, ha outro; que depois de feita a capelIa, mudaram pª lá a Senhora; mas todas as manhãas a iam achar na antiga capella; repetido isto tantas vezes, lembraram-se de passar tambem o corpo do Eremita pª a nova Capella; desde entaõ a Senhora deixou-se hospedar na casa nova.

Pelo Espirito Santo, é a Senhora de Vagos, objecto d'uma grande romagem, a que concorre immensa gente. Vem o prior de Cantanhede com o Santissimo, mas é forçoso vir pelas arêas: no dia do Espirito Santo, sahe a procissão da Igreja da Villa pª a Capella; depois segue-se a distribuição do bodo, que consiste em carne pão e vinho, resultado d'algumas promessas. É curioso ver 6 carros carregados do comer pª distribuir aos pobres. No outro dia, o prior de Cantanhede vai dizer missa á Igreja de Vagos, e senta-se na Cadeira, lê banhos, como se fosse prior da freg.ia Concorre a esta / 272 / romaria gente de todos os povos ao Sul de Vagos até ainda álem de Cantanhede; porem d'Ilhavo a Aveiro, vai mto pouca gente.

A uma legoa de Vagos, no caminho d'Aveiro, encontra-se Ílhavo. É uma Villa mto grande, e q. tem tantos fogos como Aveiro, porem pobre, como todas as terras de pescadores. É afamada pellas bonitas raparigas q. tem; mas eu qdo por lá passei, não vi uma q. o fosse.

Aveiro onde estive alguns dias, é uma Cidade insignificante, que nem merecia as boas estradas q. já possue; e o dinheiro q. se tem gasto na barra. É atravessada pla ria, sobre a qual, ha duas pontes soffriveis. A ria d'Aveiro é navegavel até à Cidade, para embarcações grandes; cahiques, etc. Tem um commercio mto fraco, q. logo se avalia pela alfandega, q. possue a cidade; q. não é mais que um pequeno armazem. Qto a Edificios é pouco abundante; tem o novo Lyceo, bom edificio, elegante e bem construido, mas inutil pª Aveiro. A cousa mais notavel q. tem a Cidade é a Capella do Convento de S. Joanna, e o Tumullo da Infanta Santa. A Capella é pequena, mas bem adornada, e possue bellos quadros a oleo. Tem no altar-mor, 4 ou 6 quadros, historiando a vida da Santa. O tumullo é uma obra magnifica; é tudo de bello mosaico antigo, d'um preço inextimavel. Perde porem grande parte do seu brilho, pela casa em q. está collocado, que é excessivamte baixa, e cujo tecto parece estar esmagando o tumulo. É sustentado o tumulo por 4 anjos de primoroso trabalho. Os paramentos da capella são mto ricos, tanto pelo bello bordado, como pelo valor intrínseco, pois q. são de tela de seda e prata, bordados a oiro, alguns ornados com pedras preciosas.

Ha uma Igreja bastante antiga, de q. me não lembra o nome, mas q. é junto ao Convento, onde está na Capella mór, um jasigo, onde parecem repousar as cinzas da celebre Catharina d'Athaíde, por quem Camõens tanto padeceo; a data da morte desta, coincide com a historia, pois que é de 1500 e tantos. N'um altar á esquerda, e o primeiro jto á porta principal, vê-se um quadro em madeira, q. parece ter sahido das mãos do Grão Vasco.

Parece que Aveiro no tempo dos Romanos, era onde hoje está o Lugar de Cacia; ha entre a Mortosa e Villarinho; um campo denominado da Matança, onde parece ter havido uma grande batalha, q por terem ficado muitos mortos no campo, se ficou chamando − da Matança.

Parece depois ter mudado Aveiro a sua posição, pª Esgueira, q. ainda no fim do seculo passado era a maior povoação d'aquella comarca. Toda esta porção de terreno, é doentia, devido á grande quantidade de marinhas, e alguns arrosaes, que principalmte circundam Aveiro. Da Cidade / 273 / [VoI. XIV - N.º 56 - 1948] parte uma estrada q está em construcção, q. contorna a ria, atravessa a ria de Vagos, por uma bella ponte de madeira, e segue até á Costa-nova, que é composta d'algas casas, edificadas jto á torre da barra; e que talvez sejão o nucleo d'alguma povoação importante, visto o augmento de população q. tem havido na Gafanha, e as novas conquistas q. cada anno este povo faz ás areias. Perto da Costa-nova, estão os Palheiros, encostados á ria de Mira. Teêm-se construido alli ha pouco tempo boas casas de madeira, pª o tempo dos banhos. É a Pedrouços d'Aveiro.

Sahi d'Aveiro pª Oliveira d'Azemeis no dia 3 de Junho. Fui ficar a Albergaria Velha, pª aproveitar a estrada nova até esta ultima Villa. A estrada passa pr Esgueira, e Cacia, atravessa o Vouga, por meio d'uma miseravel ponte de madeira; que felizmte vae ser substituida por uma de ferro; − passa pr Angeja, e segue pª Alberg.ª. Foi no lugar do Sobreiro, junto a Albergª, q. pela primeira vez vi as videiras q dão o vinho verde, trepando pelos castanheiros, carvalhos, etc. É a partir da margem direita do Vouga que começa a zona onde se produz o vinho verde. Tambem começam a apparecer com mais abundancia os castanheiros, q até alli não tinha visto.

Ficámos essa noite em Albergaria, continuando no dia seguinte pª Oliveira d'Azemeis. Offerece um contraste excellente com aquelle q eu tinha percorrido, todo este terreno que se estende de Albergª-Nova até Olivª. Da Branca por diante a paisagem é bellissima. Terrenos mto ferteis, abundantes d'agoa, e mto arborisados; dando immenso realce á paizagem as videiras enlaçando-se com os castanheiros e carvalhos. O Pinheiro da Bemposta, sobretudo, é um sitio delicioso. Do Pinheiro até Oliveira d'Azemeis a estrada passa por um terreno mto accidentado, pr profundos valles, que descem d'uma pequena cumiada que corre no sentido N.S. Chegado a Oliveira d'Azemeis, fômos pª uma estalagem, indecente pª uma villa como aquella. Oliveira está situada n'uma collina, ou antes extremo d'um contraforte da cordilheira q. de Romariz se extende até Ossella. É uma villa moderna, e q. tem augmentado mto depois que se fez a estrada nova. A unica cousa notavel que tem, é o Edificio da Camara Municipal, construido ha poucos annos. Os arredores da Villa são mto pittorescos, e mui ferteis. A 2 legoas pª o Nascente, está a Villa de Macieira de Cambra, encostada á serra da Freita. A 2 pª o Poente fica Ovar, terra de pescadores, e pr isso pobre. É uma villa grande a pto de ter mais fogos que Aveiro. Perto acaba a ria que vai a Aveiro. D'Oliveira fui estacionar na quinta do Linheiro, proximo de Sever, q. pertence ao Administrador do Concelho. Está Sever, situada n'um valle, na encosta da Serra de Cambra, ou da Snrª. da / 274 / Saude, e a 1/2 legoa do Rio Vouga. Toda esta encosta é um terreno mto cortado plas vertentes q. descem da serra, mas os valles são mto productivos. A principal producção é milho, vinho, e castanha; tambem fabricam mta manteiga, e de boa qualidade. Toda a encosta offerece um bello aspecto, por juntar á bellesa d'um terreno mto cortado, o ser mto arborisado, de castanheiros e oliveiras. No alto da serra ha algumas povoações, pobrissimas. As casas são construidas de pedra solta, e cobertas de colmo. No inverno, fica a serra ás vezes mais de oito dias coberta de neve, mas raras vezes dura mais tempo. As encostas do N, desta serra são tambem mto productivas; o valle de Cambra é riquissimo até Ossella; é formado pelo rio Caima, que tem a principal nascente na serra da Freita, a peqª distia d'Albergª das Cabras; forma a sahida da nascente, e ao descer do alto da serra, uma magnifica cascata de perto de 50 metros d'altura, e q se vê ao longe, como um lençol branco extendido na serra.

Mais pª o Sul desta, ha outra nascente notavel, no sitio denominado das Fragas, que cahindo de grde altura, dá tambem origem a uma cascata, formando o rio Teixeira, q se vai metter no Vouga, defronte de Arcosello. O levantamento da serra de Cambra, composta de formações schistosas corre na direcção N.15. O. Ao N desta serra este levantamento é mto pronunciado. Vê-se uma serie de grandes cabeços seguindo sempre a mma direcção até Romariz. Porem, nesta serra de Cambra, este levantamto crusa-se com o da serra da Freita, e da Gralheira, une-se com elle, por um braço ao N. do Povo da Junqueira, que se prolonga pª O, até pr cima d'Ossella. Pela pte ms alta da serra da Freita, onde está o Povo de Albergª das Cabras, passa a estrada do Porto a Viseu, que, seguindo pª esta ultima Cidade, atravessa a serra da Gralheira, passando por Manhouce. Esta ultima povoação está na encosta O. da Gralheira, no meio de fragas e penedias horríveis. Ha proximo deste outros povos, collocados no cimo dos penedos como ninhos d'aguia, e pª onde se trepa com bastante difficuldade, por degráos feitos na rocha. N'estas povoações qdo morre alguem, o unico meio q. teem pª o descerem, é atarem o cadaver a uma escada de mão, um homem agarrar-lhe pr baixo, outro pr cima, e descerem-n'o com toda a percaução; já um morto matou dois vivos, pr q estando mal preso á escada, desatou-se, e cahio sobre o homem q. ia segurando a escada, fazendo-o precipitar do rochedo; e o mmo aconteceu ao que vinha superior. É uma estrada perigosa e cheia de precipícios, sobre tudo á descida da Freita pª Chave onde pr mtas veses se tem despedaçado algas cavalgaduras. A 1/2 legoa ao Sul de Sever, está jto ao Vouga a aldea de Pecegueiro; é neste ponto que acaba a navegação do Vouga, onde ha uma ponte na estrada d' Albergaria-Velha pª Vouzella. / 275 / Do Peccgueiro pª cima não é navegavel o rio pela mta rapidez da corrente, e por se tornar n'alguns pontos bastante caudaloso.

A N.O e a 1/2 legua de Sever, no Valle formado pelo rio Máo, está em exploração a mina do Braçal. Os productos da mina, são chumbo, e alguma prata. Mais pª Nordeste do outro lado da serra que separa este rio do Caima, ha outra mina denominada do Palhal, cujo minerio se compoe de cobre e prata.

Do Linheiro marchei a fazer quartel pr alguns dias em Albergª Velha. − É uma Villa, cuja origem, como o nome o mostra, foi uma casa mandada faser na estrada de Coimbra ao Porto, pela Rainha D. Thereza, pª servir d'Albergue, aos viandantes pobres e doentes; dava-se-Ihe de comer, cama e luz. Em torno desta casa, − que ainda hoje existe, e serve de prisão, − edificárão-se outras, até que chegou a ponto de merecer o foral de Villa. É agora cabeça de Concelho. Ao Sul está junto ao Vouga o lugar de Serem, que por alguns manuscriptos antigos, se vê ter sido grande povoação do tempo dos Romanos, assim como o Marnel, que fica alem do Vouga, n'um valle formado por um ribeiro que desce da serra das Talhadas. Parece provavel que ao MarneI chegasse um braço do mar, ou que o mmo Vouga, dé-se ali profundidade bastante pª grandes navios, porque a bacia que se nota defronte do MarneI, indica bem ter sido produsida por uma força sup.or á de que é capaz o ribº que por elle passa. Alem disso, é permittido suppor que o mar chegava até este ponto, porque é sabido que as dunas d'areia, e a grande caldeira d'Aveiro teêm-se formado pouco a pouco, e que, o que agora é terreno cultivado e povoado, foi ha milhares d'annos, costa e dunas a seu turno. É mais provavel q. o MarneI seja ainda mto anterior aos Romanos. De ser ali porto de mar n'outros tempos, a uníca prova que existe, é a existencia de nomes de certos sitios, que como outros muitos o tempo tem conservado, e a tradicção trasido através de grande n.º de seculos.

D'Albergaria fomos pª o Sardão; logar proximo d'Agueda, e na margem opposta do Rio Agueda. Este rio desce da serra do Caramulo, e d'inverno enche mto. Toda a sua baixa e margens, é mto productiva, de milho. Já aqui se não encontra a videira que dá o vinho verde. D'aqui seguimos pª Vousella, e no outro dia fomos ficar a Viseu. A estrada pª Vousella, a uma legoa d'Agueda, começa a subir á serra das Talhadas, que corre na direcção O.20.N. Neste ponto crusão-se os tres levantamentos, do Caramullo, da Gralheira, e da serra de Cambra. Abunda em nascentes d'agua (assim como as vertentes da serra de Cambra) q vão formar o rio Alfosqueiro q se junta com o Agueda abaixo do lugar da Castanheira. / 276 / No cimo deste Valle e nas faldas da serra do Caramullo, vê-se a povoação de Campia, n'um sitio mto pittoresco. Na serra, está na encosta do S. o lugar das Talhadas, mais adiante na mma estrada, os lugares de Bemfeitos, Entreaguas, Ponte-fóra, etc. A 1/4 de legoa de Vousella, passa-se por Villarigo, povoação mto antiga; ainda se vê o antigo castello n'um alto jto á povoação. Vousella está situada nas faldas do extremo N. da serra do Caramullo, passando-lhe junto o rio ZelIa.

LUÍS CHAVES

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