Soares da Graça, As antigas procissões de Águeda, Vol. XIV, pp. 277-291

AS ANTIGAS PROCISSÕES

DE ÁGUEDA

O EXAME de numerosa e variada documentação revela-nos que desde bem recuadas eras se efectuavam em Águeda diferentes Procissões e outros cortejos religiosos mais ou menos aparatosos e cuja prática o nosso povo foi mantendo carinhosamente através dos tempos; trazendo alguns até nossos dias, não raras vezes à custa de trabalhos de toda a ordem e mesmo de pesados sacrifícios. E se, de tudo isso, uma boa parte desapareceu na corrida dos séculos, nós poderemos contudo ainda, à vista do que ficou, aquilatar quanto de pitoresco e de beleza enriquecia essas tradicionais composições cuja apresentação em público foi, é, e será sempre, um dos espectáculos mais queridos, mais venerados e mais sentidos que pode oferecer-se aos olhos da nossa gente. Passam os séculos, mas a alma, o sentimento popular, esse, vai permanecendo o mesmo na sua essência, e só assim se explica que ainda hoje, tal como há muito o fizeram nossos avós de antanho, o bom povo da
nossa terra aí apareça a promover, a dirigir, a tomar parte, ou, de qualquer forma, mais ou menos directa − a concorrer para este fim com a mesma fé, com o mesmo devoto interesse e com o mesmo amor com que eles outrora o fizeram.

Sem a preocupação de organizar uma resenha completa destas velhas manifestações de culto que aí se faziam com um cunho muito especial, revestindo mesmo certas particularidades que não conhecemos noutras regiões, embora se notem entre umas e outras alguns pormenores comuns ou semelhantes − apontarei entretanto tudo o que a tal respeito consegui reunir; e, se bem o creio, formarei assim um dos mais interessantes capítulos da história de Águeda.

Só quem ali não tenha presenciado algum dia essas tocantes, e ao mesmo tempo aparatosas procissões dos Passos e da / 278 / Semana Santa, poderá discordar do que afirmo; é que, na verdade, parece que um laço mais forte prende as almas nessas ocasiões, tocando-as dum sentimento de mais funda religiosidade e elevação, aquecendo-as na mesma labareda de fé, que atinge a sua expressão máxima nessa noite de emotiva beleza qual é a de sábado de Passos, e que tem sido em épocas várias − e algumas já bem distantes, continuando decerto a sê-lo, − um tema preferido por escritores da nossa terra que têm procurado pintar esse belo quadro com as mais formosas tintas da sua imaginação. E, efectivamente, quando a imagem do Senhor dos Passos sai da igreja de Águeda oculta no seu camarim de seda roxa, já sob o escuro da noite, a caminho da capela de Assequins, entre o tremeluzir de milhares de lumes, que são outros tantos corações aquecidos pela crença, e o ciciar das preces da multidão reverente que acompanha o Senhor ajoelhado sobre o andor florido; com os outeiros de ao redor e casais iluminados ao longe, como se as estrelas baixassem do firmamento e ali fossem postas a doirar aqueles lugares; e ainda o dobre triste dos sinos atirado lá da torre da igreja, a juntar-se ao trilo de centenares de ralos que nessa quadra do ano povoam o nosso campo e que, em caprichoso concerto, formam uma estranha orquestra − tudo isso assume proporções de beleza tais, que a pena as não pode traduzir fielmente: não nos alonguemos por isso neste ponto e entremos já no assunto enunciado, começando por falar das procissões e cortejos religiosos mais antigos de Águeda, que através dos tempos têm deixado mais vivo rasto.


PROCISSÃO DOS PASSOS

Não se sabe ao certo em que data começou a fazer-se esta procissão; ela vem contudo de tempos muito remotos, imemoriais, e filia-se, possivelmente, na do Senhor dos Passos da Graça, que, com grande veneração se realizava na capital a partir do século XVI e que teve como origem o aparecimento de uma imagem de Cristo com a cruz às costas no Convento dos Gracianos em circunstâncias misteriosas, no mesmo lugar onde pernoitara um mendigo a quem os frades daquele convento deram agasalho, o qual dali desapareceu sem se saber como. O facto foi atribuído a milagre e a devoção ao Senhor dos Passos foi aumentando dia a dia, conservando-se ainda hoje muito viva.

A Procissão dos Passos faz-se em muitas regiões do país e a sua composição é mais ou menos a mesma que se adoptou em Águeda; há terras onde esta função religiosa é feita / 279 / segundo regras estabelecidas em disposições antigas e por iniciativa das Misericórdias locais que correm inteiramente com todas as despesas necessárias, tendo até algumas os seus «compromissos» ou obrigações escritas para esse fim. Noutras terras há Confrarias ou Irmandades próprias que fazem essas solenidades; e onde não há instituições desta natureza, formam-se muitas vezes comissões particulares que promovem esses actos religiosos.

Retábulo da Capela do Santíssimos em pedra de Ançã. Escola da Renascença.

Em Águeda temos a Irmandade do Senhor Jesus instituída no primeiro terço do século XVII, e é a seu cargo que está a realização da Procissão dos Passos, sendo possível no entanto que já se fizesse anteriormente àquela época. Não encontrei referência a qualquer «compromisso» / 280 / escrito que impusesse a obrigação de realizar actos do culto relativos a este assunto, sendo escassas as notícias que nos chegaram a respeito da Procissão dos Passos nos tempos mais recuados. Trata-se entretanto da tradição religiosa mais antiga e mais arraigada na alma do nosso povo, pois já no último quartel do século XVII ela aí se fazia, e era de tal modo concorrida, que a autoridade eclesiástica, atendendo a essa circunstância, permitia, no ano de 1686, que fossem abertas as grades de ferro forjado que vedavam a capela do Santíssimo e que fosse livre a entrada de pessoas nesse recinto, em vista do grande concurso de povo que se verificava nessa ocasião e pela Semana Santa, em que igualmente era facultada a entrada nessa capela, − fora disso rigorosamente vedada ao público. No ano de 1687 foi determinado também que as mulheres não andassem de noite a «correr os Santos Passos», como era costume na época; e já anteriormente, no ano de 1681, na Visita Pastoral feita à igreja de Águeda a 27 de Julho desse ano, foi apresentada queixa contra algumas pessoas que «sem temor de Deus» levavam para sua casa as velas que alumiavam na procissão, pelo que foi ordenado que a Irmandade as distribuísse segundo um rol, para depois se cobrarem, também por meio dele; foi calculado o número de 60, das velas desaparecidas naquele ano, facto aliás pouco honroso para os penitentes desse tempo...

De tudo isto porém tem de concluir-se que a Procissão dos Passos em Águeda vem de eras longínquas, devendo considerar-se como a manifestação religiosa mais antiga e mais concorrida da nossa terra, sendo também a mais respeitada. Pelo que tenho visto e lido, não difere muito de terra para terra o aspecto geral do figurado e mais elementos de que se compõe este préstito religioso; além da irmandade do Senhor Jesus, dos andores do Senhor dos Passos e da Virgem da Soledade, é costume incorporarem-se também «anjinhos» e outras figuras alegóricas como a de Maria Madalena e S. João, vistosamente trajadas, o que dá ao conjunto uma nota de pitoresco realce(1). Na capital, de onde, como já dissemos deve ter irradiado para a província esta tradição religiosa, figurava neste préstito o «farricôco» tocando uma buzina, simbolizando assim o toque dado / 281 / pelo clarim romano «quando as justiças do Império conduziam ao patíbulo algum condenado e como se fizera em Jerusalém quando Jesus Cristo foi levado do Pretório ao Calvário»(2). Em Águeda, e em cumprimento de promessas ainda actualmente toma parte, à frente da procissão, um ou mais homens que tocam uma trombeta, designada pelo nome de sacabucha. Este pormenor é observado também noutras terras do pais(3). Apesar do muito que neste capítulo de tradições locais se tem perdido na esteira dos séculos, não esmoreceu ainda sequer, antes cada vez é mais vivo e intenso, o culto da nossa gente pelo Senhor dos Passos: renovam-se a miúdo no seu altar as mais mimosas flores e diante da sua imagem ardem constantemente lumes votivos, quais chamas de corações agradecidos por mercês dispensadas.

É frequente oferecerem-lhe círios do peso da pessoa que faz a promessa, ou da sua altura (do seu altôr, na linguagem popular) e que ali se consomem diante do altar do Senhor dos Passos.

Não sei se outrora houve em Águeda capelas próprias para os chamados «Passos» edificadas nas ruas do percurso da procissão, como havia em Lisboa e se vêem ainda em algumas terras do pais(4). Nunca encontrei referência a isso e, àparte o Passo do Calvário, embutido na fachada norte da igreja, só tenho conhecimento dos que costumam armar nas casas particulares por essa ocasião. / 282 /

Imagem do Senhor dos Passos


PROCISSÕES DA SEMANA SANTA

Com as procissões dos Passos relacionam-se as da Semana Santa, que em regra se faziam também anualmente.

Quanto às solenidades de culto interno, próprias desta quadra litúrgica, encontrei referências várias a partir do último quartel do século XVII, mas quanto às procissões propriamente ditas não vi qualquer data sobre que possa precisar-lhes o começo, tudo indicando porém que são igualmente bem antigas. Podem classificar-se de mais importantes as Procissões do Enterro e da Soledade ou das Lágrimas; qualquer destas bem aparatosa, a última porém mais simples, mas tocada igualmente de certa imponência.

Deposição no Túmulo - Grupo escultórico em pedra de Ançã, notável trabalho artístico

A Procissão do Enterro que por si é tocada duma nota emocionante, pelo seu próprio significado, é também aquela que prende o povo de mais interesse tendo em vista que é nela que figura o Vos omnes, o «Vozone» como, vulgarmente é conhecida a figura alegórica que vai logo a seguir ao esquife em que é levada aos ombros de quatro clérigos revestidos de alva e com as estolas de cor negra cruzadas sobre o peito, a imagem de Cristo morto e que representa a Virgem lamentando a morte de Jesus. O «Vozone» canta em diversos pontos do itinerário da Procissão do Enterro, o que faz convergir a esses locais grande número de pessoas, principalmente quando aparece a desempenhar esse papel uma figura de boa apresentação e timbrada voz.

Sobre a composição destas procissões não encontrei nada estabelecido relacionado com épocas recuadas: o que delas resta, e que é na verdade ainda muito, deve ser o resultado duma / 283 / longa prática seguida através de muitas gerações. O povo foi compondo, ajeitando, melhorando estes cortejos religiosos com o seu carinho, com o seu gosto, com a sua fé devota, só assim se explicando que tenham resistido até nossos dias, sem grandes alterações.

A Procissão do Enterro abre pelo pendão da Irmandade do Senhor Jesus, abatido, segurando às extremidades quatro irmãos trajando de luto e envergando as suas opas pretas; segue-se-lhe o corpo da irmandade, que é numeroso, e a meio dela um sacerdote revestido de capa e batina, empunhando uma cruz grande de madeira, da qual pende um alvo lençol de linho, e a ladeá-lo duas lanternas acesas; depois grupos de anjos transportando os martírios do Senhor e logo após as figuras das três Marias caprichosa e vistosamente engalanadas, com os seus vestidos e mantos de coloridos tons, e ainda S. João Evangelista ao lado da Madalena, seguindo o esquife em que, sob o pálio de cor roxa, vai a imagem de Cristo morto, em tamanho natural, envolta na mortalha branca de linho bordado. Logo após, o andor da Virgem da Soledade, de forte e magoada expressão(5).

Nossa Senhora da Soledade

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Dentro ainda da Semana Santa, em 5.ª Feira Maior, tem lugar a Procissão da Soledade ou das Lágrimas. Toma parte nela a mesma Irmandade, e apenas é constituída por ela, pelo andor da Virgem acima mencionada, que fecha o cortejo rodeado de lanternas acesas, pois esta procissão tem lugar, como a anterior, de noite. À frente, abre o préstito / 284 / um grupo formado por um sacerdote trajando capa, batina e barrete, descendo aquela, solta, até aos pés, levando uma imagem grande, de Cristo Crucificado, indo ao lado dois irmãos do Senhor Jesus, conduzindo cada um uma lanterna .acesa. Antigamente era aquela Imagem levada na procissão por um daqueles Irmãos, e essa prática, vinha já de tempos remotos; mas em 1815 o então Prior de Águeda, José Manuel da Cunha Coelho Brandão, não se conformando com este costume, quis acabar com ele, alegando que o Cristo deveria figurar ali como cruz da freguesia e assim, junto dos clérigos, devendo ser levado pelo Juiz da igreja, sustentando que aos irmãos do Senhor Jesus só era permitido levar o seu pendão. Estabeleceu-se conflito e a Irmandade elaborou uma extensa representação(6) ao Prelado de Aveiro, pedindo para continuar a usufruir aquele direito, que era imemorial, sendo aquela imagem de Cristo a mesma que servia na Via-Sacra e nas procissões de Penitência. Não pude apurar qual a solução que foi dada a este caso, mas o Prelado aveirense deve ter atendido o pedido da Irmandade, pois o certo é que foi sempre um clérigo, e só na falta deste um membro daquela Irmandade que conduziu a dita imagem, que continua a ocupar na Procissão das Lágrimas o lugar que lhe foi dado antigamente, não atrás junto do clero, mas na parte dianteira deste préstito religioso.


PROCISSÃO DAS CINZAS

Forma, com as duas atrás referidas, o número das três mais importantes procissões que chegaram a nossos dias. Costuma também ser designada por Procissão dos Terceiros ou da Penitência e é mais ou menos semelhante às que se fazem noutras terras, diferindo apenas num ou noutro pormenor do seu arranjo, número de andores e imagens.

Em Águeda, eram bastante numerosas as imagens que a Ordem Terceira de S. Francisco possuía, desde tempos muito antigos, e assim o seu avultado número de andores dava a este cortejo religioso uma nota de aparato e grandiosidade que lhe conquistava um lugar de grande relevo entre os outros. Havia as imagens de Nossa Senhora da Conceição, cujo andor abria a procissão da Cinza, de Santo Ivo, dos Bons Casadinhos (S. Lúcio e Dona Bona), da Rainha Santa Isabel, de Santa Clara, de Santa Rosa de Viterbo, de / 285 / Santa Rosa Morta, de S. Luís rei de França, de S. Tomás mártir, de S. Francisco a receber as chagas, de S. Francisco abraçado ao Senhor, de S. Francisco ressuscitado, de S. Francisco e Senhor dos Passos com a cruz às costas, e mais recentemente de S. Roque(7).

À face de um velho livro do cartório da Irmandade, que examinei, e do qual tirei algumas notas, é fácil reconstituir este préstito religioso, a partir dos fins do século XVIII (1794), e com bastante pormenor, não sendo erro conjecturar que assim fosse já muito anteriormente. O seu princípio deve remontar ao século XVII, época em que a Irmandade de São Francisco tinha já na igreja de Águeda o seu altar privativo em capela própria, podendo talvez concluir-se que nessa época a Ordem estava entre nós florescente, pois o retábulo dessa capela, em talha doirada, ao gosto da Renascença, se bem que modesto, é dos melhores do templo.

A Procissão das Cinzas, pela aparatosa composição que a constituía, e pela singularidade de certos pormenores que nela se observavam, devia ser um espectáculo sensacional, bem rico de colorido e de acentuado e estranho pitoresco. Além do seu grande número de andores, − estes como as imagens que neles eram conduzidas, preparados com arte e bem ornados − viam-se grupos alegóricos e figuras várias, de mistura com orquestras de instrumentos diferentes, cujo conjunto deveria ser cheio de palpitante interesse; basta saber-se que nele se incorporava uma companhia de Auxiliares que era sempre requisitada à Comarca de Esgueira, e que tomava parte no cortejo com o seu tambor; um grupo numeroso de tocadores de pícaros, e um outro grupo de «fradinhos» que engrossava o acompanhamento dos irmãos terceiros, que na maior parte eram ocupados no transporte dos andores.

Tenho à mão as notas das despesas feitas com as Procissões das Cinzas em vários anos, em Águeda, e os números / 286 / falam bem expressamente, por eles se podendo facilmente avaliar o que era esse cortejo religioso no tempo dos nossos avós. Senão vejamos: logo à frente, em passo grave, cadenciado, o Anjo querubim, coberto de sedas e pedrarias vistosas, expulsando Adão e Eva do Paraíso, figuras que o seguem vestindo humildes túnicas, em atitude submissa, em contraste com a do Anjo, que de espadim empunhado vai revestido de solene majestade; depois, as músicas, os andores, os irmãos, os anjos, distribuídos com regularidade em todo o comprimento da procissão.

Das contas das despesas feitas com estas funções religiosas, de 1813 em diante, vê-se: que neste ano, os cantores levaram 3.200 reis; com os anjos gastaram-se 600 e com o feitio de um hábito para S. Francisco, feito pelo alfaiate Charra, despendeu-se a quantia de 360 reis; em 1814, por dois sermões pregados pelos, frades de Serém, 3.200; 2 dobradiças para o andar de S. Francisco ressuscitado, 140, e ainda 120 reis que deram ao armador Crespo por ir a Serém levar uma carta ao Padre Comissário. Em 1815, também entre outras despesas, anotei a da importância de 480 reis que deram ao portador que foi a Esgueira buscar a licença da autoridade militar para os milicianos poderem ir na procissão e a de 1.440 que foi em quanto importaram os «pifres» que foram tocados durante o percurso da mesma. Por seu lado, com o pífaro e com o tambor dos Auxiliares também se gastaram 240 reis; o armador Crespo, por tocar as tréculas (matraca), e os rapazes que envergaram hábitos receberam o mesmo que se deu ao tambor, e foram estes os gastos mais modestos deste ano, pois a quantia mais avultada = 2.000 = foi ganha pelo José Pintor por armar os andores; este, ainda se abotoou com mais 480, que foi quanto pediu «por fazer as bichas»(8).

No ano de 1819, ao Senhor Padre Cabaço, por assistir à missa da Cinza, davam-se-lhe 200 reis sendo a maior quantia dispendida este ano, de 4.800, que os frades de Serém levaram por três sermões; menos de metade − 2. 160, deram aos frades da casa conventual de Travassô, por tomarem parte, como cantores, na procissão.

Em 1821, vê-se que os gastos foram mais reduzidos; de tocar a matraca e o sino 330 reis, e poucas despesas mais se fizeram; mas em 1822 já assim não sucedeu: só o Anjo querubim, à sua conta, fez gastar à Ordem 3.000 reis, o que nos leva a concluir que neste ano deve ter dado nas vistas... Com muito menos teve de se contentar a Eva cujo vestido importou apenas em 665 reis, como vi anotado. Só houve / 287 / neste ano um sermão a S. Francisco, e ao pregador foi dada a quantia de 1.200; em 1823, os cantores que tomaram parte na cerimónia das Cinzas e na procissão ganharam 2.490. Em 1826 também foram pequenos os gastos: um requerimento ao General do Porto por causa dos Auxiliares, 480, sino e matraca, 250; em 1828 já se foi mais além, pois neste ano os pífaros importaram em 1.440, e também se gastaram 240 reis com matraca e sino.

Não encontrei apontamentos sobre alguns anos, decerto porque a procissão se não fez anualmente, e não tomei nota de outras despesas, que se repetiam. Em 1841, a três mulheres que foram a Ílhavo buscar adornos para a Procissão e que os confrades de lá, com quem houve sempre boas relações de camaradagem, emprestavam, 640 reis; em 1843 foram comprados 2 resplendores, um para Santo Ivo, outro para São Francisco, por 600 reis. Mas as cifras vão aumentando, e em 1849 já temos a música da procissão a fazer uma conta de 6.200, e pelo arranjo de 7 anjos deram-se 3.500. Em 1853, maior despesa com a música: 7.000 reis; e aparece uma verba nova − de 90 reis − paga a quem foi ao alecrim (certamente para juncar a igreja). Ao celebrante da missa da Cinza, 400 reis; de compor a Santa Rosa 140, e do arranjo do Senhor 300 reis; os «fradinhos» neste ano só ganharam 80 reis. Em 1860, último ano de que tenho notas, vejo que pelo sermão da Cinza deu a Ordem 2.800; pelos 7 anjos para a procissão, 2.800; e um hábito novo para o S. Francisco que vai abraçado ao Senhor importou em 2.500. Havia, é claro, além destas, outras despesas anuais obrigatórias, e de muitas não tirei apontamento por se não revestirem de interesse especial.

Mencionadas, e descritas embora muito resumidamente estas três procissões que, como já deixei dito, se podem considerar as mais importantes de quantas aí se faziam, passarei a referir-me a outras que aí tiveram lugar, e das quais encontrei o rasto já longínquo através de documentos vários que me passaram pela mão; falarei em primeiro lugar da

 

PROCISSÃO DE CORPOS CHRISTI

Deveria revestir-se decerto de bastante pompa, à semelhança do que se observava em outras povoações, com a assistência das autoridades locais, etc., e subordinada ao regimento próprio que havia para esta função religiosa cuja solenidade foi sempre objecto de determinações várias da parte das entidades oficiais que tinham cuidado do seu luzimento. Não encontrei dados que me permitam ajuizar do modo como era feita, e da solenidade que revestia; que ela tinha lugar em Águeda já no primeiro quartel do século XVIII, / 288 / demonstra-o o registo de óbito do Prior Constantino da Silva Pinto, da Casa da Borralha, que faleceu em Águeda no dia 19 de Junho de 1710, precisamente no dia do Corpo de Deus e depois de ter presidido a esta procissão; no momento em que, estando ela já recolhida, cantava as orações do ritual, caiu morto junto do altar, com um acidente, ali à vista do povo que, como é natural, ficou tomado de alvoroçada consternação(9).

Porque é muito elucidativo sob o ponto que vimos tratando, copio aqui textualmente o registo do seu óbito:

«A 19 de Junho de 1710 faleceu o Prior Constantino da Silva Pinto, de um acidente depois de ter dito missa e levando a Custódia com o S.S. na Procissão do Corpus Christi e chegando ao altar com ela e recolhido o povo a poz em cima delle e começando a cantar a oração do S. Sacramento, na conclusão d'ella e nas palavras qui vives et regnas cahiu e expirou d'um acidente; está sepultado nesta igreja)(10).


O SENHOR FORA

Falaremos a seguir deste préstito religioso pela grande aproximação que existe entre ele e a procissão precedente e ainda porque dos préstitos que vou referir é sem dúvida o mais importante. Nota-se, através das Visitas Pastorais feitas à nossa freguesia, e delas se reflecte nitidamente a vida religiosa da época; que houve sempre o maior cuidado em que o Sagrado Viático ou Senhor-Fora, como lhe chama o povo, fosse conduzido com todo o respeito e decência, dando ao cortejo, que para esse fim se organizava, o aspecto da maior solenidade. De resto, é bem profunda em Águeda a devoção com esta prática de piedade religiosa, assente numa já bem distante tradição; e assim é que, mal o sino da nossa terra despede as suas badaladas a chamar os fiéis para acompanhar o Senhor, de todas as casas correm pressurosas pessoas, formando um préstito numeroso e recolhido que o segue em respeitosa atitude, entoando o Bendito a caminho da casa dos enfermos.

Já em 1696 foi determinado que quando o Senhor «saísse em Viático fosse levado com toda a decência, com pálio» e isto por constar à autoridade eclesiástica que não era costume fazê-lo; estabelecia-se até a multa de 2.000 reis para / 289 / [VoI. XIV - N.º 56 - 1948] punir a falta de cumprimento desta deliberação, responsabilizando-se até os mordomos do Senhor por isso(11).

Pelos anos fora, mais providências foram tomadas a este respeito, no sentido de que não faltasse a esta cerimónia o esplendor que lhe era devido. Em 1700 determinava-se que a qualquer hora que o Senhor saísse iriam acompanha-lo não somente os Mordomos dessa Confraria mas ainda todos os clérigos que morassem dentro de Águeda; e era tão grande o cuidado posto neste caso, que se prescreviam os mais leves pormenores para que nada faltasse para o melhor luzimento do acto. O Santíssimo seria conduzido sob o pálio; o sacerdote que o levasse deveria ir revestido de capa de asperges, não esquecendo o turíbulo, a naveta com incenso e duas lanternas erguidas junto da cruz, devendo esta ser de prata; em 1712 ainda se acrescentava a isto, que fosse sempre à frente do cortejo uma pessoa tocando uma campainha. Por aqui se vê claramente o religioso interesse que sempre despertou na nossa terra esta comovedora solenidade do Senhor-Fora a que ainda hoje o bom povo de Águeda acorre pressuroso e reverente.


PROCISSÃO A VIRGEM

Data de era bem recuada esta prática devota, que julgo ser de simples culto interno. Tinha lugar no primeiro domingo de cada mês; na Visita Pastoral de 1689 era feita censura expressa ao facto de nessa procissão tomar parte somente um sacerdote cantando, o que era para estranhar numa terra onde havia tantos e assim, sob «pena de desobediência» foi ordenado que na mesma procissão se incorporassem todos os que estivessem na terra nessa ocasião.


PROCISSÃO DOS SANTOS ÓLEOS

Muito simples, fazia-se quando iam à sede do Bispado buscar os óleos bentos para os gastos litúrgicos do ano. Na visita de 1712, estabelecia-se que fossem colocados numa capela da povoação e dali conduzidos processionalmente até à igreja, acompanhados do Prior e outros sacerdotes. / 290 /


PROCISSÃO DO GUIÃO DE SANTO ANTÓNIO

Era já prática antiga em 1719, levar a bandeira de Santo António à sua capela do lugar da Gesteira no dia em que ali :se festejava este Santo. Em Visita daquele ano foi censurado o facto de ter caído isso em desuso, e o Visitador ordenava que não deixasse de continuar esse costume, determinando que lá fosse nesse dia o pároco ou o seu cura acompanhar o Guião.

AS LADAINHAS

Posto que não possam considerar-se procissões propriamente ditas, o povo da nossa terra dá-lhes esse carácter, juncando até as testadas das suas moradias, à passagem deste cortejo religioso. Em algumas épocas, como sucedeu nos meados do século XVII, notou-se algum desinteresse por elas, o que levou a autoridade eclesiástica, no ano de 1666, a determinar que fosse ao menos uma pessoa de cada casa naqueles préstitos.


A VIA SACRA

Havia uma ermida da Via Sacra em Águeda e algumas cruzes no caminho dela, mas não consegui apurar onde ficavam; é possível que em qualquer rua das que iam ter ao Adro da Igreja, onde ainda existe o Cruzeiro e o Passo do Calvário.

Na Visita Pastoral do ano de 1719 apresentou-se queixa de que muitas mulheres costumavam «correr as Cruzes da Via Sacra» de noite e pela madrugada, e sendo isso considerado pouco próprio, logo foi proibido que tal se fizesse depois do sol posto; e já no ano de 1704 tinham sido proibidos os jogos da bola, da laranjinha e da cunca «ao pé da ermida da Via Sacra».

Foram estas procissões e cortejos religiosos que encontrei mencionados, mas outros se deveriam realizar, embora dos mesmos não conseguisse apurar dados certos. Assim, havia desde datas muito antigas várias Confrarias erectas na nossa igreja, como a de Nossa Senhora do Rosário − Santa Luzia, do Senhor e de S. Sebastião, − e todas elas deviam festejar os seus Padroeiros, decerto não somente com actos de culto interno, mas também com procissões. Na tradição ficou ainda a da / 291 /

 

SENHORA DA BOA-MORTE

Era a Padroeira dos barqueiros e das sardinheiras e tinha a sua capela no lugar do Barril. Ouvi dizer a pessoas idosas que era uma festa animada e ruidosa; a capela ficava anexa ao Hospital, e já existia com esta designação no ano de 1721, pois neste ano, estando o Visitador eclesiástico em Águeda, impôs a multa de 500 reis para o Hospital às pessoas que sacudissem esteiras, tapetes ou roupas para a frente da capela, como costumava fazê-lo a gente do Barril; refere-se também a esta capela o Dicionário Geográfico do P.e LUÍS CARDOSO, e a memória paroquial de 1721 também a cita(12).

A imagem da Senhora da Boa-Morte que se venerava na capelinha do velho Hospital transitou para a igreja quando aquele foi demolido, indo para o novo quando este abriu e ali se conserva figurada na sua cadeirinha na atitude serena do seu passamento.

Nossa Senhora da Boa-Morte Imagem que se venerava no velho Hospital de Águeda, e hoje exposta ao culto no actual

Foi sempre muito venerada, principalmente pela gente do bairro ribeirinho, onde existia a antiga capela da sua invocação(13).

SOARES DA GRAÇA

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(1) É de justiça anotar que houve sempre em Águeda um gosto muito particular, um «jeito» próprio para ornar ou vestir estas figuras, salientando-se nisto a conhecida família Guerra. Toda Águeda se recorda da velha «Ti Zera Guerra» que tantas gerações ataviou para esse fim: quem já aí, dos seus 30, 40, 50 e 60 anos que não tomasse parte nas procissões de Águeda «composto» por ela? Já em 1795 uma sua avó não pagava anual «por vestir a figura do Adão para a procissão da cinza», como vi num rol de irmãos da Irmandade de S. Francisco.

(2) Esboceto Histórico da Veneranda Imagem do Senhor Jesus dos Passos da Graça, 1874. 

(3) Em Torres Novas assim se faz também - Vid. Memórias de Torres Novas, ARTUR GONÇALVES, 1937.

(4) Na Guarda, em Ovar, etc. Em Celorico da Beira ainda se vêem em alguns pontos da vila, nichos grandes, de pedra, onde se colocavam as imagens; em Condeixa existem ainda hoje oratórios embutidos nas paredes de alguns prédios, com figuras da Paixão; em Taveiro, a Irmandade do Senhor possui também oratórios de madeira, móveis, onde são expostos quadros pintados com a Vida de Cristo, e que no dia próprio são ornados.

(5)O povo de Águeda nutre particular devoção por esta imagem, que é muito antiga. Em tempos pensou-se em substituí-la por uma outra, chegando a ser adquirida uma imagem nova, o que ia provocando grande conflito; dai, ser esta designada por «Senhora Velha».  

(6)Foi este memorial escrito por Bernardino José da Graça, da Borralha, Tabelião nas Notas do Juízo de Fora da Vila de Recardães. Falecido na Borralha a 26 de Setembro de 1831.

(7)Parece que foi dádiva, à Ordem, do falecido Conde de Sucena, e nessa Casa se guarda.

Nos Açores, Vila Franca do Campo, onde assisti a esta Procissão, havia os andores de S. Francisco deitado sobre silvas e do Senhor preso à coluna, que não vejo existirem por aqui.

Estas imagens estão ao cuidado de várias famílias de Águeda e Borralha, que pertencem à Irmandade. Já em tempos antigos assim era. Em 1807 foram adquiridos os andares de S. Francisco e Senhor dos Passos com a cruz e ainda o de S. Francisco recebendo as chagas, sendo entregues nesse ano à guarda de D. Rita Cândida de Castelo Branco, da Venda Nova, o primeiro, e o segundo a Joaquim José Pereira Guimarães. Na Casa do Redolho foi depositado o andor de S. Francisco abraçado ao Senhor, sempre mimosamente preparado para a Procissão da Cinza; em casa de D. Ana Alves os de Santa Clara e S. Luís rei de França, etc., etc., sendo todos armados pelos irmãos que os guardam com o melhor carinho.

(8)Eram feitas de serapilheira, simulando a serpente do mal e iam enroscadas na árvore do Paraíso terreal que o Adão conduzia.

(9) O Prior Constantino da Silva Pinto paroquiou a freguesia de Águeda de 1680-1710. Era filho de Constantino da Silva de Carvalho e de D. Isabel Pinto de Paiva, da Quinta da Borralha.  

(10)Arq. da Univ. de Coimbra − Registo Paroquial de Águeda, Óbitos, 1710.

(11)Visitas Pastorais, 1697-1712.

(12) Vid. Dicionário Geográfico, ed. 1747; e ROCHA MADAHIL, in Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. V, pago 147.

(13) Foi por iniciativa da Excelentíssima Senhora D. Maria Joana Soares de Cabedo da Casa da Ponte, quando esta Senhora num rasgo de altruísmo se pôs à frente do Hospital Conde de Sucena que dirigiu alguns anos, que a imagem da Senhora da Boa Morte para ali foi. No ano de 1923, foi-lhe feita uma solene festa, com uma vistosa procissão.

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