O
EXAME de numerosa e variada documentação revela-nos que desde bem
recuadas eras se efectuavam
em Águeda diferentes Procissões e outros cortejos religiosos mais ou
menos aparatosos e cuja prática
o nosso povo foi mantendo carinhosamente através dos tempos; trazendo
alguns até nossos dias, não raras vezes à custa de trabalhos de toda a
ordem e mesmo de pesados sacrifícios. E se, de tudo isso, uma boa parte
desapareceu na corrida dos séculos, nós poderemos contudo ainda, à vista
do que ficou, aquilatar quanto de pitoresco e de beleza enriquecia essas
tradicionais composições cuja apresentação em público foi, é, e será
sempre, um dos espectáculos mais queridos, mais venerados e mais
sentidos que pode oferecer-se aos olhos da nossa gente. Passam os
séculos, mas a alma, o sentimento popular, esse, vai permanecendo o
mesmo na sua essência, e só assim se explica que ainda hoje, tal como há
muito o fizeram nossos avós de antanho, o bom povo da
nossa terra aí apareça a promover, a dirigir, a tomar parte, ou, de qualquer forma, mais ou menos directa
− a concorrer para este
fim com a mesma fé, com o mesmo devoto interesse e com o mesmo amor com que eles outrora o fizeram.
Sem a preocupação de organizar uma resenha completa destas velhas manifestações de culto que aí se faziam com
um cunho muito especial, revestindo mesmo certas particularidades que
não conhecemos noutras regiões, embora se notem entre umas e outras alguns pormenores comuns ou semelhantes
−
apontarei entretanto tudo o que a tal respeito consegui reunir; e, se
bem o creio, formarei assim um dos
mais interessantes capítulos da história de Águeda.
Só quem ali não tenha presenciado algum dia essas tocantes, e ao mesmo tempo aparatosas procissões dos Passos e da
/
278 /
Semana Santa, poderá discordar do que afirmo; é que, na verdade, parece
que um laço mais forte prende as almas
nessas ocasiões, tocando-as dum sentimento de mais funda
religiosidade e elevação, aquecendo-as na mesma labareda
de fé, que atinge a sua expressão máxima nessa noite de
emotiva beleza qual é a de sábado de Passos, e que tem
sido em épocas várias − e algumas já bem distantes, continuando decerto a
sê-lo, − um tema preferido por escritores
da nossa terra que têm procurado pintar esse belo quadro
com as mais formosas tintas da sua imaginação. E, efectivamente, quando a imagem do Senhor dos Passos sai da igreja
de Águeda oculta no seu camarim de seda roxa, já sob o
escuro da noite, a caminho da capela de Assequins, entre o tremeluzir
de milhares de lumes, que são outros tantos corações aquecidos pela crença, e o ciciar das preces da multidão
reverente que acompanha o Senhor ajoelhado sobre o andor
florido; com os outeiros de ao redor e casais iluminados ao
longe, como se as estrelas baixassem do firmamento e ali
fossem postas a doirar aqueles lugares; e ainda o dobre triste
dos sinos atirado lá da torre da igreja, a juntar-se ao trilo de
centenares de ralos que nessa quadra do ano povoam o nosso
campo e que, em caprichoso concerto, formam uma estranha
orquestra − tudo isso assume proporções de beleza tais, que a pena as
não pode traduzir fielmente: não nos alonguemos
por isso neste ponto e entremos já no assunto enunciado,
começando por falar das procissões e cortejos religiosos
mais antigos de Águeda, que através dos tempos têm deixado mais vivo rasto.
PROCISSÃO DOS PASSOS
Não se sabe ao certo em que data começou a fazer-se
esta procissão; ela vem contudo de tempos muito remotos,
imemoriais, e filia-se, possivelmente, na do Senhor dos Passos
da Graça, que, com grande veneração se realizava na capital
a partir do século XVI e que teve como origem o aparecimento de uma imagem de Cristo com a cruz às costas no
Convento dos Gracianos em circunstâncias misteriosas, no
mesmo lugar onde pernoitara um mendigo a quem os frades daquele
convento deram agasalho, o qual dali desapareceu
sem se saber como. O facto foi atribuído a milagre e a devoção ao Senhor
dos Passos foi aumentando dia a dia,
conservando-se ainda hoje muito viva.
A Procissão dos Passos faz-se em muitas regiões do
país e a sua composição é mais ou menos a mesma que se adoptou
em Águeda; há terras onde esta função religiosa é feita
/
279 /
segundo regras estabelecidas em disposições antigas e por iniciativa das
Misericórdias locais que correm inteiramente com todas as despesas
necessárias, tendo até algumas os seus «compromissos» ou obrigações
escritas para esse fim. Noutras terras há Confrarias ou Irmandades
próprias que fazem
essas solenidades; e onde não há instituições desta natureza,
formam-se muitas vezes comissões particulares que promovem esses
actos religiosos.
|
Retábulo da Capela do Santíssimos em pedra de Ançã. Escola da
Renascença. |
Em Águeda temos a Irmandade
do Senhor Jesus instituída no primeiro terço do século XVII,
e é a seu cargo que está a realização da Procissão dos Passos, sendo
possível no entanto que já se fizesse anteriormente
àquela época. Não encontrei referência a qualquer «compromisso»
/
280 / escrito que impusesse a obrigação de realizar actos do culto
relativos a este assunto, sendo escassas as notícias que nos chegaram a
respeito da Procissão dos Passos nos tempos mais recuados. Trata-se
entretanto da tradição religiosa mais antiga e mais arraigada na alma do
nosso povo, pois já no último quartel do século XVII ela aí se fazia, e
era de tal modo concorrida, que a autoridade eclesiástica, atendendo a
essa circunstância, permitia, no ano de 1686, que fossem abertas as
grades de ferro forjado que vedavam a capela do Santíssimo e que fosse
livre a entrada de pessoas nesse recinto, em vista do grande concurso de
povo que se verificava nessa ocasião e pela Semana Santa, em que
igualmente era facultada a entrada nessa capela, − fora disso
rigorosamente
vedada ao público. No ano de 1687 foi determinado também que as mulheres
não andassem de noite a «correr os Santos Passos», como era costume na
época; e já
anteriormente, no ano de 1681, na Visita Pastoral feita à igreja de
Águeda a 27 de Julho desse ano, foi apresentada queixa contra algumas
pessoas que «sem temor de Deus» levavam para sua casa as velas que
alumiavam na procissão, pelo que foi ordenado que a Irmandade as
distribuísse segundo um rol, para depois se cobrarem, também por meio
dele; foi calculado o número de 60, das velas desaparecidas naquele
ano, facto aliás pouco honroso para os penitentes desse tempo...
De tudo isto porém tem de concluir-se que a Procissão dos Passos em Águeda vem de eras longínquas, devendo considerar-se como
a manifestação religiosa mais antiga e mais concorrida da nossa terra,
sendo também a mais respeitada. Pelo que tenho visto e lido, não difere
muito de terra para terra o aspecto geral do figurado e mais elementos
de que se compõe este préstito religioso; além da irmandade do Senhor
Jesus, dos andores do Senhor dos
Passos e da Virgem da Soledade, é costume incorporarem-se
também «anjinhos» e outras figuras alegóricas como a de Maria
Madalena
e S. João, vistosamente trajadas, o que dá ao conjunto uma nota de
pitoresco realce(1). Na capital, de onde, como já dissemos deve ter
irradiado para a província esta tradição religiosa, figurava neste
préstito o «farricôco» tocando uma buzina, simbolizando assim o toque
dado
/
281 /
pelo clarim romano «quando as justiças do Império conduziam ao patíbulo algum condenado
e como se fizera em
Jerusalém quando Jesus Cristo foi levado do Pretório ao
Calvário»(2). Em
Águeda, e em cumprimento de promessas
ainda actualmente toma parte, à frente da procissão, um ou
mais homens que tocam uma trombeta, designada pelo nome
de sacabucha. Este pormenor é
observado também noutras terras do
pais(3). Apesar do muito que neste
capítulo de tradições locais se tem
perdido na esteira dos séculos, não esmoreceu ainda sequer, antes cada vez é mais vivo e intenso, o culto
da
nossa gente pelo Senhor dos Passos:
renovam-se a miúdo no seu altar as mais mimosas flores e diante da sua
imagem ardem constantemente lumes
votivos, quais chamas de corações agradecidos por mercês dispensadas.
É frequente oferecerem-lhe círios do
peso da pessoa que faz a promessa, ou
da sua altura (do seu altôr, na linguagem popular) e que ali se consomem
diante do altar do Senhor dos Passos.
Não sei se outrora houve em
Águeda capelas próprias para os chamados «Passos» edificadas nas ruas
do percurso da procissão, como havia
em Lisboa e se vêem ainda em algumas terras do pais(4). Nunca encontrei
referência a isso e, àparte o Passo do Calvário, embutido na fachada
norte da igreja, só tenho conhecimento dos que costumam armar nas
casas particulares por essa ocasião.
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282 / |
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Imagem do Senhor dos Passos |
PROCISSÕES DA SEMANA SANTA
Com as procissões dos Passos relacionam-se as da Semana
Santa, que em regra se faziam também anualmente.
Quanto às solenidades de culto interno, próprias desta
quadra litúrgica, encontrei referências várias a partir do
último quartel do século XVII, mas quanto às procissões propriamente ditas não vi qualquer data sobre que possa precisar-lhes o começo, tudo indicando porém que são igualmente bem
antigas. Podem classificar-se de mais importantes as
Procissões do Enterro e da Soledade ou das Lágrimas; qualquer destas bem aparatosa, a última porém mais simples, mas tocada
igualmente de certa imponência.
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Deposição no Túmulo - Grupo escultórico em pedra de Ançã, notável
trabalho artístico |
A Procissão do Enterro que por si é tocada duma nota emocionante, pelo
seu próprio significado, é também aquela
que prende o povo de mais interesse tendo em vista que é
nela que figura o Vos omnes, o «Vozone» como, vulgarmente é conhecida
a figura alegórica que vai logo a seguir ao esquife em que é levada aos
ombros de quatro clérigos revestidos de alva e com as estolas de cor
negra cruzadas sobre o peito, a imagem de Cristo morto e que representa
a Virgem lamentando a morte de Jesus. O «Vozone» canta em diversos
pontos do itinerário da Procissão do Enterro, o que faz convergir a esses locais grande número de pessoas, principalmente quando
aparece a desempenhar esse papel uma figura de boa apresentação e
timbrada voz.
Sobre a composição destas procissões não encontrei nada estabelecido
relacionado com épocas recuadas: o que delas
resta, e que é na verdade ainda muito, deve ser o resultado duma
/
283 / longa
prática seguida através de muitas gerações.
O povo foi compondo, ajeitando, melhorando estes cortejos religiosos com
o seu carinho, com o seu gosto, com a sua
fé devota, só assim se explicando que tenham resistido
até nossos dias, sem grandes alterações.
|
A Procissão do Enterro abre
pelo pendão da Irmandade
do Senhor Jesus, abatido, segurando às extremidades quatro irmãos
trajando de luto e envergando as suas opas pretas; segue-se-lhe o corpo da irmandade,
que é numeroso, e a meio dela
um sacerdote revestido de capa
e batina, empunhando uma cruz
grande de madeira, da qual pende
um alvo lençol de linho, e a ladeá-lo duas lanternas acesas;
depois grupos de anjos transportando os martírios do Senhor e
logo após as figuras das três
Marias caprichosa e vistosamente
engalanadas, com os seus vestidos e mantos de coloridos tons,
e ainda S. João Evangelista ao lado da Madalena, seguindo o esquife em que, sob o pálio de cor
roxa, vai a imagem de Cristo
morto, em tamanho natural, envolta na mortalha branca de
linho bordado. Logo após, o andor da Virgem da Soledade, de forte e magoada
expressão(5). |
Nossa Senhora da Soledade |
*
* *
Dentro ainda da Semana Santa, em 5.ª Feira Maior, tem
lugar a Procissão da Soledade ou das Lágrimas. Toma
parte nela a mesma Irmandade, e apenas é constituída por
ela, pelo andor da Virgem acima mencionada, que fecha o
cortejo rodeado de lanternas acesas, pois esta procissão tem
lugar, como a anterior, de noite. À frente, abre o préstito
/
284 / um grupo formado por um sacerdote trajando capa, batina e barrete, descendo aquela, solta, até aos pés, levando uma
imagem grande, de Cristo Crucificado, indo ao lado dois
irmãos do Senhor Jesus, conduzindo cada um uma lanterna .acesa.
Antigamente era aquela Imagem levada na procissão
por um daqueles Irmãos, e essa prática, vinha já de tempos
remotos; mas em 1815 o então Prior de Águeda, José Manuel da Cunha
Coelho Brandão, não se conformando com este
costume, quis acabar com ele, alegando que o Cristo deveria figurar ali como cruz da freguesia e assim, junto dos clérigos,
devendo ser levado pelo Juiz da igreja, sustentando que aos
irmãos do Senhor Jesus só era permitido levar o seu pendão.
Estabeleceu-se conflito e a Irmandade elaborou uma extensa
representação(6) ao Prelado de Aveiro, pedindo para continuar a usufruir aquele
direito, que era imemorial, sendo aquela imagem de Cristo a mesma que servia na Via-Sacra
e nas procissões de Penitência. Não pude apurar qual a solução que foi
dada a este caso, mas o Prelado aveirense deve ter atendido o pedido da
Irmandade, pois o certo é que foi sempre um clérigo, e só na falta deste um membro daquela
Irmandade que conduziu a dita imagem, que continua a ocupar na Procissão das Lágrimas o lugar que lhe foi
dado antigamente, não atrás junto do clero, mas na parte dianteira
deste préstito religioso.
PROCISSÃO DAS CINZAS
Forma, com as duas atrás referidas, o número das três mais importantes
procissões que chegaram a nossos dias. Costuma também ser designada por
Procissão dos Terceiros ou da Penitência e é mais ou menos semelhante às que se fazem noutras
terras, diferindo apenas num ou noutro pormenor do seu arranjo, número
de andores e imagens.
Em Águeda, eram bastante numerosas as imagens que a Ordem Terceira de S. Francisco possuía, desde tempos muito antigos, e
assim o seu avultado número de andores dava a este cortejo religioso uma nota de aparato e grandiosidade que
lhe conquistava um lugar de grande relevo entre os outros. Havia as
imagens de Nossa Senhora da Conceição, cujo andor abria a procissão da Cinza, de
Santo Ivo, dos Bons Casadinhos (S. Lúcio e Dona Bona), da Rainha Santa Isabel, de Santa Clara, de Santa Rosa de Viterbo, de
/
285 / Santa
Rosa Morta, de S. Luís rei de França, de S. Tomás
mártir, de S. Francisco a receber as chagas, de S. Francisco abraçado ao
Senhor, de S. Francisco ressuscitado, de S. Francisco e Senhor dos
Passos com a cruz às costas, e mais recentemente de S. Roque(7).
À face de um velho livro do cartório da Irmandade, que
examinei, e do qual tirei algumas notas, é fácil reconstituir
este préstito religioso, a partir dos fins do século XVIII (1794), e com
bastante pormenor, não sendo erro conjecturar que assim fosse já muito
anteriormente. O seu princípio deve remontar ao século XVII, época em
que a Irmandade de São
Francisco tinha já na igreja de Águeda o seu altar privativo
em capela própria, podendo talvez concluir-se que nessa época a Ordem
estava entre nós florescente, pois o retábulo dessa capela, em talha
doirada, ao gosto da Renascença, se bem que modesto, é dos melhores do
templo.
A Procissão das Cinzas, pela aparatosa composição que a
constituía, e
pela singularidade de certos pormenores que nela se observavam, devia
ser um espectáculo sensacional,
bem rico de colorido e de acentuado e estranho pitoresco. Além do seu
grande número de andores, − estes como as imagens que neles eram
conduzidas, preparados com arte e
bem ornados − viam-se grupos alegóricos e figuras várias,
de mistura com orquestras de instrumentos diferentes, cujo conjunto
deveria ser cheio de palpitante interesse; basta saber-se que nele se
incorporava uma companhia de Auxiliares que era sempre requisitada à Comarca de Esgueira, e
que tomava parte no cortejo com o seu tambor; um grupo
numeroso de tocadores de pícaros, e um outro grupo de «fradinhos» que
engrossava o acompanhamento dos irmãos
terceiros, que na maior parte eram ocupados no transporte dos andores.
Tenho à mão as notas das despesas feitas com as Procissões das Cinzas em vários anos, em
Águeda, e os números
/
286 / falam bem expressamente, por eles se podendo facilmente
avaliar o que era esse cortejo religioso no tempo dos
nossos avós. Senão vejamos: logo à frente, em passo grave,
cadenciado, o Anjo querubim, coberto de sedas e pedrarias
vistosas, expulsando Adão e Eva do Paraíso, figuras que o
seguem vestindo humildes túnicas, em atitude submissa, em contraste com a do Anjo, que de espadim empunhado vai revestido de
solene majestade; depois, as músicas, os andores, os irmãos, os anjos, distribuídos com regularidade em
todo o comprimento da procissão.
Das contas das despesas feitas com estas funções religiosas, de 1813 em diante, vê-se: que neste ano, os cantores
levaram 3.200 reis; com os anjos gastaram-se 600 e com o feitio de um hábito para S. Francisco, feito pelo alfaiate Charra,
despendeu-se a quantia de 360 reis; em 1814, por dois sermões pregados
pelos, frades de Serém, 3.200; 2 dobradiças para o
andar de S. Francisco ressuscitado, 140, e ainda 120 reis que deram ao
armador Crespo por ir a Serém levar uma carta ao Padre Comissário. Em
1815, também entre outras despesas, anotei a da importância de 480 reis que deram ao portador que foi a Esgueira buscar a licença da autoridade militar
para os milicianos poderem ir na procissão e a de 1.440 que foi em
quanto importaram os «pifres» que foram tocados durante o percurso da mesma. Por seu lado, com o pífaro
e com o tambor dos Auxiliares também se gastaram 240 reis;
o armador Crespo, por tocar as tréculas (matraca), e os rapazes que envergaram hábitos receberam o mesmo que se deu
ao tambor, e foram estes os gastos mais modestos deste ano,
pois a quantia mais avultada = 2.000 = foi ganha pelo José
Pintor por armar os andores; este, ainda se abotoou com mais 480, que foi quanto pediu «por fazer as bichas»(8).
No ano de 1819, ao Senhor Padre Cabaço, por assistir à
missa da Cinza, davam-se-lhe 200 reis sendo a maior quantia
dispendida este ano, de 4.800, que os frades de Serém levaram por três sermões; menos de metade
− 2. 160, deram aos frades da casa conventual de Travassô, por tomarem parte, como
cantores, na procissão.
Em 1821, vê-se que os gastos foram mais reduzidos; de
tocar a matraca e o sino 330 reis, e poucas despesas mais se fizeram; mas em 1822 já assim não sucedeu: só o Anjo querubim, à sua conta, fez gastar à Ordem
3.000 reis, o que nos
leva a concluir que neste ano deve ter dado nas vistas... Com muito menos teve de se contentar a Eva cujo vestido
importou apenas em 665 reis, como vi anotado. Só houve
/
287 /
neste ano um sermão a S. Francisco, e ao pregador foi dada a quantia de
1.200; em 1823, os cantores que tomaram parte na cerimónia das Cinzas e
na procissão ganharam 2.490. Em 1826 também foram pequenos os gastos: um
requerimento ao General do Porto por causa dos Auxiliares, 480, sino e
matraca, 250; em 1828 já se foi mais além, pois neste ano os pífaros
importaram em 1.440, e também se gastaram 240 reis com matraca e sino.
Não encontrei apontamentos sobre alguns anos, decerto porque a procissão
se não fez anualmente, e não tomei nota de outras despesas, que se
repetiam. Em 1841, a três mulheres que foram a Ílhavo buscar adornos para a Procissão e que os confrades de lá, com quem houve sempre boas relações
de camaradagem, emprestavam, 640 reis; em 1843 foram comprados 2 resplendores, um para Santo Ivo, outro para São Francisco, por
600 reis. Mas as cifras vão aumentando, e em 1849 já temos a música da
procissão a fazer uma conta de 6.200, e pelo arranjo de 7 anjos deram-se
3.500. Em 1853, maior despesa com a música: 7.000 reis; e aparece uma
verba nova − de 90 reis − paga a quem foi ao alecrim (certamente para
juncar a igreja). Ao celebrante da missa da Cinza, 400 reis; de compor a
Santa Rosa 140, e do arranjo do Senhor 300 reis; os «fradinhos» neste
ano só ganharam 80 reis. Em 1860, último ano de que tenho notas, vejo
que pelo sermão da Cinza deu a Ordem 2.800; pelos 7 anjos para a
procissão, 2.800; e um hábito novo para o S. Francisco que vai abraçado
ao Senhor importou em 2.500. Havia, é claro, além destas, outras
despesas anuais obrigatórias, e de muitas não tirei apontamento por se
não revestirem de interesse especial.
Mencionadas, e descritas embora muito resumidamente
estas três procissões que, como já deixei dito, se podem considerar
as mais importantes de quantas aí se faziam, passarei a referir-me a
outras que aí tiveram lugar, e das quais encontrei o rasto já longínquo
através de documentos vários que
me passaram pela mão; falarei em primeiro lugar da
PROCISSÃO DE CORPOS CHRISTI
Deveria revestir-se decerto de bastante pompa, à semelhança do que se
observava em outras povoações, com a assistência das autoridades locais,
etc., e subordinada ao regimento próprio que havia para esta função
religiosa cuja solenidade foi sempre objecto de determinações várias da
parte das entidades oficiais que tinham cuidado do seu luzimento. Não encontrei dados que me permitam ajuizar do
modo como era feita, e da solenidade que revestia; que ela
tinha lugar em Águeda já no primeiro quartel do século XVIII,
/
288 /
demonstra-o o registo de óbito do Prior Constantino da Silva
Pinto, da Casa da Borralha, que faleceu em Águeda no dia 19
de Junho de 1710, precisamente no dia do Corpo de Deus e
depois de ter presidido a esta procissão; no momento em
que, estando ela já recolhida, cantava as orações do ritual,
caiu morto junto do altar, com um acidente, ali à vista do
povo que, como é natural, ficou tomado de alvoroçada consternação(9).
Porque é muito elucidativo sob o ponto que vimos tratando, copio aqui textualmente o registo do seu óbito:
«A 19 de Junho de 1710 faleceu o Prior Constantino da
Silva Pinto, de um acidente depois de ter dito missa e levando
a Custódia com o S.S. na Procissão do Corpus Christi e chegando ao altar com ela e recolhido o povo a poz em cima
delle e começando a cantar a oração do S. Sacramento, na conclusão
d'ella
e nas palavras qui vives et regnas cahiu e
expirou d'um acidente; está sepultado nesta igreja)(10).
O SENHOR FORA
Falaremos a seguir deste préstito religioso pela grande
aproximação que existe entre ele e a procissão precedente
e ainda porque dos préstitos que vou referir é sem dúvida o
mais importante. Nota-se, através das Visitas Pastorais feitas
à nossa freguesia, e delas se reflecte nitidamente a vida religiosa da época; que houve sempre o maior cuidado em que
o Sagrado Viático ou Senhor-Fora, como lhe chama o povo,
fosse conduzido com todo o respeito e decência, dando ao
cortejo, que para esse fim se organizava, o aspecto da maior solenidade.
De resto, é bem profunda em Águeda a devoção com esta prática de piedade
religiosa, assente numa já bem
distante tradição; e assim é que, mal o sino da nossa terra despede as suas badaladas a chamar os fiéis para acompanhar
o Senhor, de todas as casas correm pressurosas pessoas, formando um
préstito numeroso e recolhido que o segue em
respeitosa atitude, entoando o Bendito a caminho da casa
dos enfermos.
Já em 1696 foi determinado que quando o Senhor «saísse
em Viático fosse levado com toda a decência, com pálio» e
isto por constar à autoridade eclesiástica que não era costume fazê-lo;
estabelecia-se até a multa de 2.000 reis para
/
289 / [VoI. XIV -
N.º 56 - 1948]
punir a falta de cumprimento desta deliberação, responsabilizando-se até
os mordomos do Senhor por isso(11).
Pelos anos fora, mais providências foram tomadas a este
respeito, no
sentido de que não faltasse a esta cerimónia o esplendor que lhe era
devido. Em 1700 determinava-se que a qualquer hora que o Senhor saísse
iriam acompanha-lo não somente os Mordomos dessa Confraria mas ainda
todos os
clérigos que morassem dentro de Águeda; e era tão grande
o cuidado posto neste caso, que se prescreviam os mais leves pormenores
para que nada faltasse para o melhor luzimento do acto. O Santíssimo
seria conduzido sob o pálio; o sacerdote que o levasse deveria ir
revestido de capa de asperges,
não esquecendo o turíbulo, a naveta com incenso e duas
lanternas erguidas junto da cruz, devendo esta ser de prata; em 1712
ainda se acrescentava a isto, que fosse sempre à frente do cortejo uma
pessoa tocando uma campainha. Por aqui se vê claramente o religioso
interesse que sempre despertou na nossa terra esta comovedora
solenidade do Senhor-Fora a que ainda hoje o bom povo de Águeda acorre
pressuroso e reverente.
PROCISSÃO A VIRGEM
Data de era bem recuada esta prática devota, que julgo ser de simples
culto interno. Tinha lugar no primeiro domingo de cada mês; na Visita Pastoral de 1689 era feita
censura expressa ao facto de nessa procissão tomar parte somente um
sacerdote cantando, o que era para estranhar numa terra onde havia
tantos e assim, sob «pena de desobediência» foi ordenado que na mesma procissão se
incorporassem todos
os que estivessem na terra nessa ocasião.
PROCISSÃO DOS SANTOS ÓLEOS
Muito simples, fazia-se quando iam à sede do Bispado buscar os óleos
bentos para os gastos litúrgicos do ano. Na visita de 1712, estabelecia-se
que fossem colocados numa capela da povoação e dali conduzidos
processionalmente até à igreja, acompanhados do Prior e outros
sacerdotes.
/
290 /
PROCISSÃO DO GUIÃO
DE SANTO ANTÓNIO
Era já prática antiga em 1719, levar a bandeira de Santo
António à sua capela do lugar da Gesteira no dia em que ali
:se festejava este Santo. Em Visita daquele ano foi censurado
o facto de ter caído isso em desuso, e o Visitador ordenava que não deixasse de continuar esse costume, determinando que lá fosse
nesse dia o pároco ou o seu cura acompanhar
o Guião.
AS LADAINHAS
Posto que não possam considerar-se procissões propriamente ditas, o povo da nossa terra dá-lhes esse carácter,
juncando até as testadas das suas moradias, à passagem deste
cortejo religioso. Em algumas épocas, como sucedeu nos
meados do século XVII, notou-se algum desinteresse por elas, o que levou
a autoridade eclesiástica, no ano de 1666, a determinar que fosse ao menos uma pessoa de cada casa naqueles
préstitos.
A VIA SACRA
Havia uma ermida da Via Sacra em
Águeda e algumas
cruzes no caminho dela, mas não consegui apurar onde ficavam; é possível
que em qualquer rua das que iam ter ao
Adro da Igreja, onde ainda existe o Cruzeiro e o Passo do Calvário.
Na Visita Pastoral do ano de 1719 apresentou-se queixa
de que muitas mulheres costumavam «correr as Cruzes da
Via Sacra» de noite e pela madrugada, e sendo isso considerado pouco próprio, logo foi proibido que tal se fizesse
depois do sol posto; e já no ano de 1704 tinham sido proibidos os
jogos da bola, da laranjinha e da cunca «ao pé da
ermida da Via Sacra».
Foram estas procissões e cortejos religiosos que encontrei mencionados,
mas outros se deveriam realizar, embora dos mesmos não conseguisse
apurar dados certos. Assim, havia desde datas muito antigas várias
Confrarias erectas
na nossa igreja, como a de Nossa Senhora do Rosário − Santa
Luzia, do Senhor e de S. Sebastião, − e todas elas deviam festejar os
seus Padroeiros, decerto não somente com actos de culto interno, mas
também com procissões. Na tradição ficou ainda a da
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291 /
SENHORA DA BOA-MORTE
Era a Padroeira dos
barqueiros e das sardinheiras e tinha a sua capela no lugar do
Barril. Ouvi dizer a pessoas idosas que era uma festa animada e
ruidosa; a capela ficava anexa ao Hospital, e já existia com esta
designação no ano de 1721, pois neste ano, estando o Visitador
eclesiástico em Águeda, impôs a multa de 500 reis para o Hospital às
pessoas que sacudissem esteiras, tapetes ou roupas para a frente da
capela, como costumava fazê-lo a gente do Barril; refere-se também a
esta capela o Dicionário Geográfico do P.e
LUÍS CARDOSO, e a memória paroquial de 1721 também a cita(12).
A imagem da Senhora da
Boa-Morte que se venerava na capelinha do velho Hospital transitou
para a igreja quando aquele foi demolido, indo para o novo quando
este abriu e ali se conserva figurada na sua cadeirinha na atitude
serena do seu passamento. |
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Nossa Senhora da Boa-Morte Imagem que se venerava no velho Hospital de
Águeda, e hoje exposta ao culto no actual |
Foi sempre muito venerada,
principalmente pela gente do bairro ribeirinho, onde
existia a antiga capela da sua invocação(13).
SOARES DA GRAÇA |