L. de Miranda Melo, Três quadros da nossa terra, Vol. XIV, pp. 264-266

TRÊS QUADROS DE NOSSA TERRA

(do livro a publicar Nossa Terra, Nossa Gente)

ALMINHAS DAS ENCRUZILHADAS

SEMPRE para mim tiveram um encanto especial essas «alminhas» das encruzilhadas dos nossos caminhos rurais.

Retábulos ingénuos de humildes pintores anónimos, simples curiosos de aldeia sem mestres e sem escola, esses retábulos ora se erguem ao alto de cruzes de madeira ora para ali estão quase esquecidos a dormir o sono dos séculos em nichos de pedra rústica ou em capelinhas com pequenas grades de ferro que a crença popular das gentes de outrora ergueu e construiu com devoto enternecimento.

Ainda hoje, quando adrego de passar por algumas, avizinho-me logo e quase sempre encontro figuras bíblicas diferentes ou interpretadas de modo diverso ao redor da figura principal do quadrinho místico, modesto símbolo de religiosidade.

Nesta, que agora vejo, ao lado de santos e santas da corte do céu, com carões medonhos e muito cómicos, voam almas errantes e anjinhos de asas brancas num firmamento azul-cinza com uma estrela prateada.

Naquela, que vi há pouco, em rudes alegorias, com S. José e a Virgem Maria, aparecem também labaredas do fogo do Purgatório a castigar, para exemplo, grandes pecadores.

E naquela outra, muito mais completa, de mistura com santos, com almas errantes e com o fogo do Purgatório, estão uma vaquinha, um burrinho, ovelhas e cordeirinhos brancos ao lado de bons pastores de bordão ao alto e chapéus nas mãos, respeitosos − bíblicos pegureiros de olhar parado e manso que parecem dormir de olhos abertos na grande noite dos tempos. / 265 /

E Herodes? E Pôncio Pilatos? E Caifaz? E os outros que colaboraram na tragédia ou que, por qualquer razão, nela foram envolvidos, como, por exemplo, os dois ladrões?

− Também às vezes lá estão pintados, com barbas ou como calha.

Todas essas «alminhas», bem observadas, têm, para certas pessoas, qualquer coisa de tragi-cómico. O «pintor-artista» não teve, para as figuras, o sentido das proporções, o equilíbrio das linhas e das formas e, via de regra, as feições dessas figuras bíblicas são medonhas, com os olhos fora do lugar, a boca de esguelha, por vezes os pés virados ao contrário! E há cordeirinhos tão mal pintados que até parecem cães... ou outros bichos!

Contudo esses símbolos rudes de modestos pintores anó'nimos ao serviço da crença popular emprestam ao cenário rural o encanto que toca a nossa sensibilidade.

Ao redor, o silêncio tem qualquer coisa de místico e de lendário a envolver a paisagem aliciante. E, dentro, nos nichos das «alminhas», o pó dos séculos, só o pó dos séculos, de mistura com o silêncio inspirador das grandes lendas a recordarem grandes tragédias na história da humanidade... povos que lutam e sofrem, poderosos que mandam, prepotentes, almas errantes, fogo do Purgatório, anjinhos de asas brancas, santos e santas da corte do céu, uma vaquinha, um burrinho, ovelhas e cordeirinhos, pegureiros bíblicos de olhos mansos, cândidos pescadores das margens do lago de Tiberíade, S. José e a Virgem Maria... e Jesus de Nazaret pregado numa cruz − naquele trágico monte Gólgota − a cabeça pendida sobre o magro peito e entre dois ladrões, a sofrer, a sofrer... quase há dois mil anos!...

ERMIDAS

Mas nem só as «alminhas» tocam a nossa sensibilidade e são motivo do nosso enternecimento. Também as velhas ermidas − capelinhas aninhadas nos povoados da província ou encaixilhadas no pitoresco da paisagem −, velhinhas de séculos... umas de construção simples, outras de linhas artísticas, algumas branquinhas de cal, a luzir, e outras de paredes sem caliça e as pedras à mostra, musgosas... heras a trepar até o telhado, lá em riba a sineta de bronze e, aos lados da secular e modesta porta de castanho ou carvalho − que já foi nova e pintada − dois buracos com um grotesco ferro em cruz por onde a nossa curiosidade costuma espreitar lá para dentro a mirar o altar − o céu dos humildes −, os santinhos e o púlpito... que, via de regra, assenta sobre um grande pedregulho de granito no chão da capelinha. / 266 /

Tudo muito simples. Muito simpático. Muito enternecedor.

Ermidas!... Poesia do céu plantada na terra. Pingos de fé a luzir na paisagem. Luz mística a embalar os corações, a erguer-se nos espíritos dos crentes genuflexados, a aureolar de santidade as almas boas, a orvalhar de doçura, os lares dos humildes.

Ermidas!... Capelinhas de S. Caetano, de Santa Luzia, da Senhora do Rosário, de S. Braz, da Senhora das Dores, da Senhora de Almieira, de S. Sebastião, da Senhora da Saúde, de S. Gonçalinho, da Senhora do Amparo, do Senhor Bom Jesus, das Almas d'Ariosa, da Senhora dos Remédios, do Senhor da Pedra, da Senhora do Monte... e muitas mais com seus padroeiros − ídolos, todos, das multidões sofredoras e crentes desta linda terra portuguesa.

CRUZEIROS

E então os cruzeiros?! Colunas ao alto com braços de granito abertos em meio dos adros... São os cruzeiros da nossa terra. Cruzeiros das nossas aldeias e das nossas vilas. Cruzeiros das nossas vidas...

Sombras esguias a projectarem-se, adro além, sobre o arrelvado ou o pó dos caminhos, ao cair suave e nostálgico das tardes de Outono, à hora melancólica das avé-marias... Sons metálicos a cantar no espaço. Cabeças descobertas. Corações a rezar.

E do poente multicor e sanguíneo vêm as derradeiras fímbrias de sol − luz a alumiar a vida − reticências cósmicas do dia a findar...

Então, sim, as místicas silhuetas dos cruzeiros rurais, − cruzeiros das nossas aldeias − cruzeiros de pedra de braços abertos, feitos de sonho, de fé, de tragédia e de lenda... são bem o símbolo do sofrimento e da resignação. Sublime resignação!

Braços abertos a implorar perdão aos céus! Aquele bom e digno perdão nazarénico do grande Sacrificado de uma causa santa, a bem da Humanidade, de que nos fala a Bíblia...

Aveiro, Novembro de 1948.

LAUDELINO DE MIRANDA MELO

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