A
BATALHA de Alfarrobeira foi em 20 de Maio de 1449. Ali se encontraram o donatário das terras da Trofa,
Fernando Alves da Maia, por D. Pedro, e Martins
Gomes, filho de Martins Gomes, o Velho, senhor de
Góis, por D. Afonso V. Após a batalha, em que sucumbiu D. Pedro, logo
D. Afonso tirou as terras da Trofa a Fernando Alves da Maia para as dar
a Martins Gomes. A carta foi assinada em Lisboa a 13 de Novembro do
mesmo ano de 1449. Mas deu-lhe mais:
Na corte do duque D. Pedro, em Coimbra, vivia, como donzela da duquesa
D. Isabel, D. Maria de Azevedo, filha de Álvaro de Meira, com quem sua
mãe casara em segundas núpcias. Também esta se chamava Maria de Azevedo
e era filha de Lopo Dias de Azevedo, a quem D. João I fizera donatário
de Jales. Esta não teve filhos do primeiro matrimónio com Gonçalo Anes
da Nora, e por isso havia de pagar três mil dobras ao rei para poder
ficar com o senhorio de Jales. Não as pagou e ficou com as terras. Do
casamento com Álvaro de Meira vieram-lhe duas filhas. E como também
ficou viúva deste e não tinha quem requeresse por si, entregou as
terras de Jales a Martins Gomes, e pediu a D. Afonso V que confirmasse
a doação neste Martins Gomes, pois tinha ajustado com ele o casamento
da sua filha Maria, a donzela da duquesa Isabel. E D. Afonso V,
esquecendo o prejuízo das três mil dobras, que não foram pagas, logo
confirmou o senhorio de Jales a Martins Gomes, a 26 de Novembro de
1449. Esta doação foi feita sub conditione de se consumar o casamento.
E este deve ter-se realizado ainda em 1449 ou princípios do ano
seguinte.
A rapidez com que foram
processadas estas doações, o
casamento de Martins Gomes com aquela donzela da casa de D. Pedro que
ele ajudara a matar em Alfarrobeira, fizeram nascer no meu espírito a
suspeita de que talvez aquela donzelinha não fosse estranha aos
serviços de informação e intriga contra o seu amo, duque de Coimbra.
Deu-lhe Deus curta vida, pois logo a levou em 1453.
/
242 /
Seu filho João Gomes, que foi o segundo senhor da Trofa, deve, portanto,
ter nascido entre 1450 e 1453, e, se morreu
em 1515, viveu 62 a 65 anos. Este João Gomes não foi homem nem de mar
nem de guerras. Na sua mocidade
estava ainda distante a aventura da Índia. Ficou pelas suas
terras da Trofa, cuidando de suas rendas e arroteando os terrenos que
ainda hoje são a riqueza daquele lugar. Outro tanto não se deu com seus
filhos que, segundo creio, todos se finaram pela Índia e pelo Brasil.
Este João Gomes casou com D. Violante de Sequeira, irmã de Jorge de
Aguiar. Foi
este que levou consigo para a Índia, em 1508, o sobrinho
Duarte de Lemos, filho mais velho da D. Violante e depois terceiro
senhor da Trofa.
A doação de Afonso V a Martins Gomes foi confirmada a seu filho João
Gomes em 1497, Confirmada ao filho deste, Duarte de Lemos, em 1514. Há
um aparente anacronismo
nesta confirmação, que o respectivo despacho esclarece: João Gomes
morreu em 1515 e a confirmação é de 1514. Diz a confirmação: − «Pedindo-nos o dito Duarte de Lemos por
mercê que, por que o dito seu pai quisera (?) renunciar em
nossas mãos as cartas conteúdas em todas as ditas sete cartas para que
viessem e fossem logo repassadas e confirmadas nele, assim como as
haveria por seu falecimento por ser o filho mais velho e serem da coroa
do reino; segundo queremos por carta dele dito seu pai. Nós...
querendo-lhe fazer graça e mercê temos por bem de lhe confirmarmos,
aprovarmos (?) e trespassarmos nele dito Duarte de Lemos as sobreditas
cartas nas ditas cartas conteudas...
... Dada em cidade de Lisboa aos (?) de julho de 1514».
O pai, João Gomes de Lemos, morreu no ano seguinte. Como e
porque
renunciou às cartas de doação em favor de seu filho? Não é possível
dizê-lo, mas é legítima a suspeita de que
Duarte de Lemos, chegado da Índia em 1512, fizesse com o pai o que
fizera na Índia com Afonso de Albuquerque. Este
herói da Índia, que escreveu algumas das páginas mais gloriosas da História de Portugal, não encontrou em toda a sua vida quem
mais afrontasse os seus brios e contrariasse sua acção do que este
Duarte de Lemos, voluntarioso, assomadiço, arrogante e falso.
Entre a morte de Gomes Martins e a confirmação das cartas em seu filho
João Gomes de Lemos mediaram sete anos. Foi um processo demorado, porque
foi necessário processar sete cartas de doação para depois as incluir
numa.
A confirmação do terceiro senhor da Trofa, Duarte de Lemos, levou no
máximo dois anos, pois conseguiu a renúncia do pai certamente depois que
chegou da Ásia em 1512.
O herdeiro deste primeiro Duarte de Lemos, o 2.º João Gomes de Lemos, não
requereu a confirmação. Duarte de
/
243 / Lemos veio para o Brasil quando vieram os primeiros donatários
−
Vasco Fernandes Coutinho para o Espírito Santo; Francisco Pereira
Coutinho para a Baía; Duarte Coelho para Pernambuco; Martim Afonso de
Sousa para São Vicente; Pedro do Campo Tourinho para Porto Seguro, isto
é, entre 1534 e 1536.
Sabe-se que as circunstâncias a que se atendeu na escolha destes capitães foi a de serviços prestados, riqueza pessoal, e experiência das viagens da África,
Índia e mesmo do Brasil.
Duarte Coelho era homem de larga carreira de serviços e, além disso, de grande riqueza; serviu na
Índia de 1509
a 1527, onde também serviram Francisco Pereira e Vasco Fernandes
Coutinho. Estes dois últimos, porém, não tinham a fortuna de Duarte
Coelho e por isso tiveram de vender todos os seus bens e contrair
dívidas para as despesas da expedição e primeiros trabalhos de
exploração.
Estes homens não vieram sós para
o Brasil. Além dos criados e algumas
famílias, vieram consigo amigos fidalgos com quem eles prometeram
partilhar as terras da Capitania ou de algum modo interessá-los na
exploração dela. Estes fidalgos, por sua vez, vinham acompanhados da sua
criadagem e aparelhados com ferramentas e mais necessários para a
empresa. Com Vasco Fernandes Coutinho vieram D. Jorge de Meneses e
Simão de Castelo Branco.
Não há documento que mostre ter
Duarte de Lemos acompanhado Francisco
Pereira Coutinho, mas depreende-se isso do Alvará que Vasco Fernandes deu àquele pelo qual
lhe doou a Ilha
de Santo António, como já disse em artigo anterior. Diz o referido
Alvará de 15 de Julho de 1537: − «Eu Vasco Fernandes Coutinho digo que eu
dou ao senhor Duarte de Lemos a Ilha Grande que está da barra para
dentro, que se chama de Santo Antonio, a qual lha dou forra e isenta
para si e todos os seus herdeiros e descendentes enfatiota
para sempre e isto por virtude da minha doação que tenho para o poder
dar e fazer na qual Ilha poderá poer todos os oficiais e oficios della
e lhe pagarão a pensão a elle somente as apelações que virão a Mim todo
o mais lhe dou poder que elle possa fazer e mandar fazer e assim tambem
em sua vida lhe dou minha redizima que nella me poderá vir e assim
tambem terá as aguas e moendas para elle e sua casa forros e is'entos e
sendo caso que Nosso Senhor de Mim faça o que for seu serviço mando que
esta valha até que meus herdeiros ou herdeiro lhe fação della doação da
dita Ilha que ora lhe tenho dado por muito que lhe devo e por me vir
ajudar a suster a terra que sem sua ajuda o não fizera...»
E diz a escritura de confirmação deste Alvará, feita em Lisboa em 1540,
entre doador e donatário: «...e havendo respeito ao dito Duarte de Lemos
se vir da Capitania de
/
244 / Todos os Santos
onde estava na companhia de Francisco
Pereira para a sua Capitania e trouxe seus criados e outras
pessoas que por seu respeito vieram com elle e o ajudou
sempre a suster e fazer guerra contra os infieis e gente da
terra o que sem sua ajuda não podera fazer e por desejar que
elle em algũa maneira seja agalardoado de seu serviço, perigos e riscos de sua pessoa em que se muitas vezes com elle
Vasco Fernandes Coutinho viu e ao gasto que tem feito de
sua fazenda lhe fizera o Alvará da dita doação...»
Do Alvará e escritura de confirmação deduz-se
que
em 1537 Duarte de Lemos estava com Vasco Fernandes
Coutinho; que antes estivera na Baía com Francisco Pereira.
Se este veio para ali em 1536 é de crer que o Duarte de Lemos viesse
com ele. Deduz-se mais que Duarte de Lemos
se não entendera com Francisco Pereira e por isso o deixara
e fora servir Vasco Fernandes Coutinho, com a sua criadagem com a sua fazenda e levando
consigo outros por seu
respeito, isto é, outros acompanhantes de Francisco Pereira
que com ele se desavieram, certamente chefiados por Duarte
de Lemos; que Duarte de Lemos trouxera assim consigo criadagem e fazenda, viera aparelhado para os trabalhos de
cultura e colonização. Duarte de Lemos, viúvo pela morte
da mulher em 1529, teria concluído o seu panteão em 1534.
Só, com os filhos criados, talvez gasta a riqueza que trouxera
da Índia, e chamado pelos velhos companheiros das lutas da
Ásia, lançou-se na aventura do Brasil. − E terá feito o que
fizeram os outros, vendendo o que tinha e contraído empréstimos. Vasco Fernandes trocou até com D. João III a
tenção
a que tinha direito, por uma caravela. Não terá o Duarte de
Lemos feito o mesmo? Não poderá ter vendido os seus
direitos de donatário das terras da Trofa, ou garantido com
elas dívidas contraídas, para poder levar ao Brasil os criados e
fazendas, de que fala Fernandes Coutinho? Eu o creio.
E assim se explica que, por sua morte, o filho João Gomes
de Lemos, escudeiro fidalgo do rei, que deverá ter vivido
na corte, pois recebia dela 2160 de moradia por mês e um
alqueire de cevada por dia, não tivesse requerido a confirmação como filho mais velho de seu pai e viesse a requerê-la e
consegui-la em 1575 o neto, o Duarte de Lemos que foi
o 5.º senhor da Trofa. Não é natural que à data do falecimento do primeiro Duarte de Lemos em 1558, já o filho
fosse
falecido, pois assim teríamos a terra sem donatário durante
17 anos, situação que não consentiriam os interesses do rei.
Mas bem podia suceder que ele, o João Gomes, filho de
Duarte de Lemos, senhor de facto das terras e com o encargo
das dívidas, já velho, não quisesse pagar os direitos de confirmação, deixando que o seu filho, o segundo Duarte de
Lemos, o fizesse, por sua morte. Diz o despacho de confirmação
/
245 / deste: − «Pedindo-me o dito Duarte de Lemos que porquanto ele era
filho mais velho que ficava por falecimento de João Gomes seu pai a
quem directamente pertenciam as cartas conteúdas nesta carta houvesse
por bem de lha confirmar e visto seu requerimento e por ser filho mais
velho de João Gomes seu pai tenho por bem de lha confirmar e hei por
confirmada e assim e da maneira que se nela contem com a declaração que
o ouvidor que viver nestas terras sendo letrado será examinado pelos
meus desembargadores do Paço e não o sendo o examinará o corregedor da
Comarca e sem o tal exame não poderá servir e elle Duarte de Lemos
pagará em minha chancelaria o que for obrigado das cartas de confirmação de seu pai e avô que não tiveram além do que elle houver de
pagar deste. Ant.º Carvalho a fez em Lisboa no 4.º de Dezembro de 1576».
Por morte do 5.º senhor da Trofa, Duarte de Lemos, foi confirmado a seu
filho segundo, Diogo Gomes de Lemos, em 1617, porque o primogénito,
João, morrera sem descendência o que significa que o filho ou se finara
antes do pai
ou pouco depois, sem tempo para requerer a confirmação. Ora sendo a
confirmação do filho segundo de 1617, é de presumir que o pai, o
segundo Duarte de Lemos, tivesse morrido depois de 1610 e não em 1588,
como referi no artigo anterior.
Ao ilustre escritor e professor Dr. PEDRO CALMON, glória da oratória
brasileira, pareceu, porém, que talvez este Duarte de Lemos, do Brasil,
não fosse o da Índia, por que vivia em Janeiro de 1558 e, ainda que
tivesse morrido neste ano, era já em tal idade que lhe não permitia
andar pelo Brasil.
Com o maior respeito pelo sábio professor, penso que ele não tem razão: dando a Duarte de Lemos, em 1508, vinte e cinco
anos, vai o seu nascimento para 1483 e a sua idade em 1558 para 75
anos, idade que condiz com a dos seus companheiros da Ásia, que viveram
e morreram no Brasil. Francisco Pereira Coutinho veio em 1536, já a
entrar na velhice e foi morto pelos índios em 1546; Vasco Fernandes
Coutinho morreu velho de muita idade em 1561; Duarte Coelho morreu em
1554.
Não há, portanto, que estranhar que
Duarte de Lemos
por aqui andasse naquela idade.
Não podemos, como ainda lembra o Dr. PEDRO CALMON,
identificar o Duarte de Lemos do Brasil com o 5.º senhor da Trofa.
Teríamos de atribuir-lhe mais de cem anos à data do seu falecimento.
Todos os donatários, com excepção de Duarte Coelho, em Pernambuco,
faliram em suas empresas: Francisco Pereira morre tristemente às mãos
dos índios, expulso por eles da sua donataria; Pedro do Campo Tourinho
foi levado preso
/
246 /
para Lisboa, donde não mais voltou; Vasco Fernandes Coutinho morreu
quase na miséria amparado por amigos; Pedro
de Gois chegou aos mesmos extremos.
Duarte de Lemos não foi um donatário directo, pois
recebeu as suas
terras, Ilha de Santo António, da mão de Vasco Fernandes Coutinho. Esta
doação com quase todos os direitos de Vasco Fernandes foi-lhe confirmada
pelo rei. Qual foi a sorte deste donatário? Os elementos colhidos da
rara
documentação que resta, ou de que tenho conhecimento,
habilitam-me a concluir que a sorte deste foi igual à dos
outros.
Já vimos como ele deixou Francisco Pereira na Baía e se passou para
Vasco Fernandes Coutinho com criadagem,
armas, alfaias e mais fazenda; e como ele a 15 de Julho de 1537 recebeu
deste a Ilha de Santo António em troca dos muitos serviços prestados na
luta com o gentio e parte da
sua fazenda. Quer isto dizer que ele devia ter ido para o
Espírito Santo ou ainda em fins de 1536 ou princípios de 1537.
De 1537 a 1538, as culturas fizeram-se com algum sucesso;
em 1539, Vasco Coutinho parte com Duarte de Lemos para Lisboa, onde
vieram «a aviar-se para ir pelo sertão a conquistar minas de ouro e
prata, de que tinha nova» (Hist. da Col. Port., voI. IlI, pág. 243).
Foi ali que se fez a escritura de confirmação de Alvará
de doação em Agosto de 1540.
Vasco Fernandes Coutinho deixara a Capitania confiada a D. Jorge de
Meneses quando partiu para Lisboa. Este D. Jorge não soube tratar com os
índios, que se revoltaram,
mataram-no e destruíram as plantações. Simão de Castelo
Branco, que lhe sucedeu, teve a mesma sorte. Parece que os dois amigos,
Vasco Fernandes e Duarte de Lemos, se demoraram algum tempo em Lisboa. Quando voltaram ao Brasil, nada
encontraram da sua exploração agrícola., E o facto de se não lançarem
logo em novas explorações significa que não encontraram na metrópole os
recursos que tinham ido procurar, ou que os índios revoltados não consentiram novas
tentativas. Na verdade, Vasco Fernandes Coutinho refugiou-se na Ilha de Santo António, que havia dado a Duarte de Lemos e
este deixou-o ali e foi tentar a sorte junto de Campos Tourinho, em
Porto Seguro. Duarte de Lemos,
porém, não se demorou em Porto Seguro, pois em fins de 1548 já estava em
Lisboa, onde foi requerer a D. João III
que lhe confirmasse a doação da Ilha de Santo António feita
por Vasco Fernandes Coutinho, por seu Alvará de 1537,
ratificado pela escritura de 20 de Agosto de 1540. E D. João
confirmou esta doação por sua carta de 8 de Janeiro de 1549. Logo em 1
de Fevereiro do mesmo ano de 1549 parte Tomé de Sousa, primeiro
Governador Geral do Brasil, e leva
/
247 /
consigo Duarte de Lemos capitaneando a Nau Ajuda, e Pero
de Góis, que é donatário da Paraíba do Sul e vai agora como
capitão mór da Costa do Brasil − (P.e SERAFIM LElTE − Hist.
da Comp.ª de Jesus no Brasil, voI. I, pág. 18).
Tomé de Sousa chega à Baía a 29 de Agosto de 1549 e
logo depois deu a Duarte de Lemos o governo da Capitania
de Porto Seguro, vago pela ausência em Lisboa do seu proprietário Pedro do Campo Tourinho.
É de lá que Duarte de
Lemos escreve a carta anteriormente referida, na qual previne
o rei de que o Vasco Fernandes Coutinho ali chegara e se
dispunha a seguir para Lisboa e depois para França a tratar
com os franceses a povoação da sua Capitania.
Em 1551 o P.e Braz Afonso, no Espírito Santo, deu início
à casa, que logo se chamou Colégio de S. Tiago. Na ano
seguinte o P.e Manuel de Paiva foi mandado da Baía ao Espírito Santo «com a incumbência de assegurar a situação económica do Colégio». Ali se encontraram os dois homens,
o P.e jesuíta Manuel de Paiva, de Aguada, e o Duarte de
Lemos, fidalgo, senhor da Trofa. Foi generoso o Duarte de Lemos, porque
deu ao Colégio, na sua Ilha, terras suficientes
para o seu sustento. Esta doação precisava, porém, de ser
confirmada pelo capitão Vasco Fernandes Coutinho, mas este, como vimos,
não estava ali nesta altura. Foi feita a confirmação pelo loco-tenente Bernardo Sanches Pimenta, que por
sua vez também fez doação dalgumas terras. (P.e SERAFIM LEITE
− Hist. da Comp.ª de Jesus, loc. cit. . . .).
Do período que vai de 1552 a 1558, não encontrámos
notícias de Duarte de Lemos mas é de presumir que se tivesse
conservado como capitão de Porto Seguro, durante todo o
governo de Tomé de Sousa e ainda no de Duarte da Costa,
até que o duque de Aveiro tomou conta daquela Capitania
que lhe venderam os filhos do Campo Tourinho, venda confirmada pelo rei em 1556.
Como disse, o Vasco Fernandes Coutinho deve ter partido para Lisboa, onde devia estar ainda em 1553, porque
Tomé de Sousa, na carta de 1 de Julho deste ano diz ao rei: − «O Espírito Santo é a melhor Capitania e mais abastada
que há nesta costa mas está tão perdida como o capitaõ dela
que é Vasco Fernandes Coutinho eu a provi o melhor que pude mas V. A.
deve mandar capitaõ ou Vasco Fernandes
Coutinho que se venha para ela e isto com brevidade». Mas
ele só deve ter vindo em fins de 1554 ou princípios de 1555 como
resulta da carta, ao rei, de D. Duarte da Costa, sucessor de Tomé de Sousa, em 20 de Maio de 1555:
− «Vasco Fernandes Coutinho chegou aqui velho, pobre e cansado, bem
injuriado do bispo, porque em Pernambuco lhe tolheu cadeira
de espaldar na igreja e apregoou-o de excomungado de mistura com homens baixos por beber fumo, segundo mo elle
/
248 /
disse eu o agasalhei em minha casa e com minha fazenda lhe socorria sua
pobreza para se poder ir para o Espírito Santo».
Em 1558 Duarte de Lemos encontra-se novamente no Espírito Santo,
onde estava Vasco Fernandes Coutinho. Diz a carta do P.e FRANCISCO PIRES
da Comp.ª de Jesus: − «Aos 20 de Janeiro, baptizei o filho do Gato e
casei-o com a sua
Negra; foram seus padrinhos Duarte de Lemos, Bernardo Pimenta e André
Simão. Foi feito esse ofício com pouca solenidade, porquanto o Índio
estava doente e mal pôde vir à igreja. Mas se foi pouco falado o seu novo
nascimento,
foi muito falada a sua morte, como em seu lugar direi». Foram, este
assento de 1558, e o facto de 1549 o Duarte de Lemos ter capitaneado uma
Nau da Armada de Tomé de Sousa, que levaram o Dr. PEDRO CALMON a pensar
que este Duarte de Lemos não era da Ásia. Se, como atrás disse, ele em
1558 poderia ter 75 anos, em 1549 teria 66, idade já um pouco avançada
para comando de naus. E na verdade o seria se Duarte de Lemos começasse
então a sua carreira. Não era a um homem de tal idade que se ia cometer
empresa nova nem cooperação fora de suas forças. Mas Duarte de Lemos
voltava ao Brasil, onde tinha já vivido longos anos, e voltava ao posto
que deixara, isto é, ao governo precário da capitania de Pedro do Campo Tourinho, a braços com a Inquisição em Lisboa. Em iguais circunstâncias
voltava Pedro de Góis. Também este deixara a sua Capitania da Paraíba do
Sul, para vir a Lisboa cuidar dos seus negócios e falar com o rei sobre
as necessidades do Brasil. E ele lá volta também com Tomé de Sousa,
capitão de uma caravela, para ir ser o capitão-mor dos mares do Brasil.
Ainda que mais novo do que Duarte de Lemos, também o Pedro de Góis era
já o homem feito e cansado nas lutas e desastres sucessivos
da sua Capitania.
Este Duarte de Lemos do Brasil era sem dúvida o Duarte
de Lemos da Índia.
Em 20 de Janeiro de 1558 estava, portanto, no Espírito Santo. Morreu aos
27 de Junho do mesmo ano. Onde? No Brasil, em Portugal? Como e quando
foi para lá? Neste
pequeno período que vai de 20 de Janeiro a 27 de Junho não encontrei
nenhuma referência ao seu nome. Presumo, por vagas deduções, que morreu
no Brasil, como quase todos os seus companheiros de luta.
A carta do P.e jesuíta FRANCISCO PIRES, atrás referida, conta o caso do
baptizado do filho do Gato, de que foi padrinho o Duarte de Lemos. Diz
que este acto foi pouco falado e feito com pouca solenidade. Mas sobre o
enterro diz o mesmo padre: − «Aos 2 do mês de Abril morreu Sebastião de
Lemos, o filho do Gato... fomos buscá-lo com grande pompa e
solenidade; primeiramente o Padre Vigário levava um crucifixo
/
249 / nas mãos coberto de luto, como ás sextas feiras na
Quaresma se costuma fazer, e a sua cruz adiante e a dos
meninos e o Governador» (Vasco Fernandes Coutinho) «na
procissão com toda a demais gente da terra, e assim nós cantando e elles pranteando, o trouxemos à nossa Igreja... dias
depois do seu enterramento, lhe fizemos um ofício cantado,
ao qual esteve presente o pai? (pai do Gato) «e alguns dos
seus e o Governador o assentou entre si e o seu filho Vasco
Fernandes (filho natural)... «para lhe dizer» que para de
todo ser nosso irmão... já não lhe faltava senão ser baptizado e
casado com sua mulher, dizendo-lhe assim o língua, respondeu que muito queria a sua mulher que estava presente;
o mesmo disse o senhor Governador que, porquanto a amava muito lhe
queria fazer uma grande festa no dia do seu baptismo e por este amor queria que tomasse o seu nome e sua mulher o de
sua mãe e seus filhos os nomes dos seus, e
assim os pôs cada um e assim assentámos em baptizá-lo para a festa do
Espírito Santo».
E continua:
«Umas das coisas que nesta villa me alegrou foi o senhor Governador fazer um grande milagre. Estavam os moradores desta vilIa
muito desgostosos, e com elIe mui differentes
por coisas que lhes elIe fazia: quis Nosso Senhor movê-lo e
mandou chamar a todos aqueles que lhe parecia estarem escandalizados e
com boas palavras e mostra de sentimento
lhes pediu a todos perdão com protestação que, se alguem havia danificado, o satisfazia e dali por diante queria estar bem com
todos; Etiam, uma Negra de quem havia alguma suspeita pôs fora e quer
casá-la.»
Temos assim três factos:
1.º − Baptismo do filho do Gato de 20 Janeiro de 1558
− Padrinho Duarte de Lemos − sem solenidade − o Governador não assiste.
2.º − Morte, a 2 de Abril, do baptizado Sebastião de Lemos e seu enterro
com toda a solenidade, assistência do Governador e sua família, e todo
o povo. Não há referência a Duarte de Lemos.
3.º − Baptismo em Maio, pela festa do Espírito Santo,
do Gato, mulher e filhos, recebendo o pai o nome de Vasco Fernandes, a
mulher o da mãe do Governador e os filhos os dos filhos do mesmo
Governador. O Padre FRANCISCO PIRES
não nos descreve este acto.
A morte do filho do Gato foi um acontecimento de
grande repercussão, informa o padre FRANCISCO PIRES. Tendo o Duarte de Lemos feito o baptismo dele e sendo pessoa de
importância, fidalgo do rei, é natural que fosse mencionada a sua presença neste acto. Já teria saído do Espírito Santo?
Penso que não. O padre Francisco Pires conta com tanta
/
250 /
satisfação e espanto as pazes que Vasco Fernandes fez com
os moradores da vila «mui desgostosos e com elle mui diferentes por
coisas que lhes elle fazia» que não teve outra explicação para a
atitude de humildade de Vasco Fernandes senão atribuí-la a um grande
milagre deste. Para o padre assim se exprimir era preciso que a
indisposição dos moradores fosse realmente grande. E que de facto assim
era mostra-o a carta de Vasco Fernandes Coutinho, escrita de Ilheus,
logo a 23 de Maio seguinte, ao Governador Geral na Baia:
«Senhor: − É a minha obrigação tanta em que lhe são pela mercê que me
fez e no socorro que me mandou e dado o caso que sua pessoa e quem elle
é e para o que era obrigado a fazer o que fez e fora eu assim doente e
aleijado como estava me embarquei a vir visitar e beijar as mãos e com o mao tempo e
má vida do barco, já quando aqui foi dita chegar vivo da maneira que vim
pela qual razão e minha doença não vou...
«Peço a Vossa Senhoria que pois já que ganhou aquela terra e consigo
usou tanta fidalguia e tanta virtude que em tudo o faça como eu delle
desespero em o favorecer nas coisas
que for necessário para paz e socego da gente porque esta é a que mais
pode fazer entre uns e os outros porque dos índios já fica segura
louvores a Deos e a terra despovoada delles,
peço a Vossa Senhoria que me proteja com justiça dalgumas
desordens que lá ha entre nós e que os moradores tem contra
mim por onde se tem causado muitos ódios e muitos desmandos entre elles e o começo de se os índios alevantarem foi esta que lhe direi huma
postura que lá está em que houvesse um compadre, tomaram-se tanto em
gozo que teimam os que querem e isto causou se alevantarem os negros com
os resgates que levaram...»
Ora esta carta é de 22 de
Maio, isto é, de antes da festa
do Espírito Santo, pois, salvo erro, a Páscoa foi a 6 de Abril. E era
nesta festa que havia de fazer-se, e parece que se fez, o baptismo do
Gato e da família. Os desmandos e ódios a que se refere Vasco Fernandes
Coutinho devem ter-se desenvolvido sobretudo depois do baptismo do filho
do Gato, a 20 de Janeiro, e antes do baptismo do pai. Vasco Fernandes foi
o padrinho deste, tinha-lhe dado o seu nome, mas não podia ter assistido
ao baptismo, por que se foi a caminho da Baía, a pedir providências ao
Governador. Não podendo, por doença, chegar até lá, escreveu-lhe de Ilheus. Ora pergunto,
não estará naquela «postura em que houvesse um
compadre» a chave de toda esta questão? Não será este compadre o Duarte
de Lemos, que na verdade o era do Gato, por lhe ter baptizado o filho?
Assim o penso. Mas Duarte de Lemos morre em Junho e certamente, depois
da sua morte é que Vasco Fernandes resolve reconciliar-se com todos,
/
251 /
fazendo o tal grande milagre a que se refere o padre FRANCISCO PIRES. Conjecturo assim que Duarte de Lemos morreu no Brasil.
Mas, se assim foi, quem recolheu os seus restos
ao túmulo, que na Capela da Trofa lhe estava reservado, e
mandou gravar a inscrição tumular? Quem mandou fazer
e colocar a estátua orante? Será esta do 3.º senhor ou do 5.º
que porventura terá os seus ossos também depositados no
mesmo túmulo? Não terá o povo razão quando atribui aquela
estátua àquele que se deitou abaixo da Ponte de Coimbra e que pegou na
rabiça do arado para apontar o caminho aos
que iam prendê-lo?
Temas a desafiar os curiosos.
A eles voltarei.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |