A. S. de Sousa Baptista, Duarte de Lemos, Vol. XIV, pp. 241-251

DUARTE DE LEMOS

A BATALHA de Alfarrobeira foi em 20 de Maio de 1449. Ali se encontraram o donatário das terras da Trofa, Fernando Alves da Maia, por D. Pedro, e Martins Gomes, filho de Martins Gomes, o Velho, senhor de Góis, por D. Afonso V. Após a batalha, em que sucumbiu D. Pedro, logo D. Afonso tirou as terras da Trofa a Fernando Alves da Maia para as dar a Martins Gomes. A carta foi assinada em Lisboa a 13 de Novembro do mesmo ano de 1449. Mas deu-lhe mais:

Na corte do duque D. Pedro, em Coimbra, vivia, como donzela da duquesa D. Isabel, D. Maria de Azevedo, filha de Álvaro de Meira, com quem sua mãe casara em segundas núpcias. Também esta se chamava Maria de Azevedo e era filha de Lopo Dias de Azevedo, a quem D. João I fizera donatário de Jales. Esta não teve filhos do primeiro matrimónio com Gonçalo Anes da Nora, e por isso havia de pagar três mil dobras ao rei para poder ficar com o senhorio de Jales. Não as pagou e ficou com as terras. Do casamento com Álvaro de Meira vieram-lhe duas filhas. E como também ficou viúva deste e não tinha quem requeresse por si, entregou as terras de Jales a Martins Gomes, e pediu a D. Afonso V que confirmasse a doação neste Martins Gomes, pois tinha ajustado com ele o casamento da sua filha Maria, a donzela da duquesa Isabel. E D. Afonso V, esquecendo o prejuízo das três mil dobras, que não foram pagas, logo confirmou o senhorio de Jales a Martins Gomes, a 26 de Novembro de 1449. Esta doação foi feita sub conditione de se consumar o casamento. E este deve ter-se realizado ainda em 1449 ou princípios do ano seguinte.

A rapidez com que foram processadas estas doações, o casamento de Martins Gomes com aquela donzela da casa de D. Pedro que ele ajudara a matar em Alfarrobeira, fizeram nascer no meu espírito a suspeita de que talvez aquela donzelinha não fosse estranha aos serviços de informação e intriga contra o seu amo, duque de Coimbra. Deu-lhe Deus curta vida, pois logo a levou em 1453. / 242 /

Seu filho João Gomes, que foi o segundo senhor da Trofa, deve, portanto, ter nascido entre 1450 e 1453, e, se morreu em 1515, viveu 62 a 65 anos. Este João Gomes não foi homem nem de mar nem de guerras. Na sua mocidade estava ainda distante a aventura da Índia. Ficou pelas suas terras da Trofa, cuidando de suas rendas e arroteando os terrenos que ainda hoje são a riqueza daquele lugar. Outro tanto não se deu com seus filhos que, segundo creio, todos se finaram pela Índia e pelo Brasil. Este João Gomes casou com D. Violante de Sequeira, irmã de Jorge de Aguiar. Foi este que levou consigo para a Índia, em 1508, o sobrinho Duarte de Lemos, filho mais velho da D. Violante e depois terceiro senhor da Trofa.

A doação de Afonso V a Martins Gomes foi confirmada a seu filho João Gomes em 1497, Confirmada ao filho deste, Duarte de Lemos, em 1514. Há um aparente anacronismo nesta confirmação, que o respectivo despacho esclarece: João Gomes morreu em 1515 e a confirmação é de 1514. Diz a confirmação: − «Pedindo-nos o dito Duarte de Lemos por mercê que, por que o dito seu pai quisera (?) renunciar em nossas mãos as cartas conteúdas em todas as ditas sete cartas para que viessem e fossem logo repassadas e confirmadas nele, assim como as haveria por seu falecimento por ser o filho mais velho e serem da coroa do reino; segundo queremos por carta dele dito seu pai. Nós... querendo-lhe fazer graça e mercê temos por bem de lhe confirmarmos, aprovarmos (?) e trespassarmos nele dito Duarte de Lemos as sobreditas cartas nas ditas cartas conteudas...

... Dada em cidade de Lisboa aos (?) de julho de 1514».

O pai, João Gomes de Lemos, morreu no ano seguinte. Como e porque renunciou às cartas de doação em favor de seu filho? Não é possível dizê-lo, mas é legítima a suspeita de que Duarte de Lemos, chegado da Índia em 1512, fizesse com o pai o que fizera na Índia com Afonso de Albuquerque. Este herói da Índia, que escreveu algumas das páginas mais gloriosas da História de Portugal, não encontrou em toda a sua vida quem mais afrontasse os seus brios e contrariasse sua acção do que este Duarte de Lemos, voluntarioso, assomadiço, arrogante e falso.

Entre a morte de Gomes Martins e a confirmação das cartas em seu filho João Gomes de Lemos mediaram sete anos. Foi um processo demorado, porque foi necessário processar sete cartas de doação para depois as incluir numa.

A confirmação do terceiro senhor da Trofa, Duarte de Lemos, levou no máximo dois anos, pois conseguiu a renúncia do pai certamente depois que chegou da Ásia em 1512.

O herdeiro deste primeiro Duarte de Lemos, o 2.º João Gomes de Lemos, não requereu a confirmação. Duarte de / 243 / Lemos veio para o Brasil quando vieram os primeiros donatários − Vasco Fernandes Coutinho para o Espírito Santo; Francisco Pereira Coutinho para a Baía; Duarte Coelho para Pernambuco; Martim Afonso de Sousa para São Vicente; Pedro do Campo Tourinho para Porto Seguro, isto é, entre 1534 e 1536.

Sabe-se que as circunstâncias a que se atendeu na escolha destes capitães foi a de serviços prestados, riqueza pessoal, e experiência das viagens da África, Índia e mesmo do Brasil.

Duarte Coelho era homem de larga carreira de serviços e, além disso, de grande riqueza; serviu na Índia de 1509 a 1527, onde também serviram Francisco Pereira e Vasco Fernandes Coutinho. Estes dois últimos, porém, não tinham a fortuna de Duarte Coelho e por isso tiveram de vender todos os seus bens e contrair dívidas para as despesas da expedição e primeiros trabalhos de exploração.

Estes homens não vieram sós para o Brasil. Além dos criados e algumas famílias, vieram consigo amigos fidalgos com quem eles prometeram partilhar as terras da Capitania ou de algum modo interessá-los na exploração dela. Estes fidalgos, por sua vez, vinham acompanhados da sua criadagem e aparelhados com ferramentas e mais necessários para a empresa. Com Vasco Fernandes Coutinho vieram D. Jorge de Meneses e Simão de Castelo Branco.

Não há documento que mostre ter Duarte de Lemos acompanhado Francisco Pereira Coutinho, mas depreende-se isso do Alvará que Vasco Fernandes deu àquele pelo qual lhe doou a Ilha de Santo António, como já disse em artigo anterior. Diz o referido Alvará de 15 de Julho de 1537: − «Eu Vasco Fernandes Coutinho digo que eu dou ao senhor Duarte de Lemos a Ilha Grande que está da barra para dentro, que se chama de Santo Antonio, a qual lha dou forra e isenta para si e todos os seus herdeiros e descendentes enfatiota para sempre e isto por virtude da minha doação que tenho para o poder dar e fazer na qual Ilha poderá poer todos os oficiais e oficios della e lhe pagarão a pensão a elle somente as apelações que virão a Mim todo o mais lhe dou poder que elle possa fazer e mandar fazer e assim tambem em sua vida lhe dou minha redizima que nella me poderá vir e assim tambem terá as aguas e moendas para elle e sua casa forros e is'entos e sendo caso que Nosso Senhor de Mim faça o que for seu serviço mando que esta valha até que meus herdeiros ou herdeiro lhe fação della doação da dita Ilha que ora lhe tenho dado por muito que lhe devo e por me vir ajudar a suster a terra que sem sua ajuda o não fizera...»

E diz a escritura de confirmação deste Alvará, feita em Lisboa em 1540, entre doador e donatário: «...e havendo respeito ao dito Duarte de Lemos se vir da Capitania de / 244 / Todos os Santos onde estava na companhia de Francisco Pereira para a sua Capitania e trouxe seus criados e outras pessoas que por seu respeito vieram com elle e o ajudou sempre a suster e fazer guerra contra os infieis e gente da terra o que sem sua ajuda não podera fazer e por desejar que elle em algũa maneira seja agalardoado de seu serviço, perigos e riscos de sua pessoa em que se muitas vezes com elle Vasco Fernandes Coutinho viu e ao gasto que tem feito de sua fazenda lhe fizera o Alvará da dita doação...»

Do Alvará e escritura de confirmação deduz-se que em 1537 Duarte de Lemos estava com Vasco Fernandes Coutinho; que antes estivera na Baía com Francisco Pereira. Se este veio para ali em 1536 é de crer que o Duarte de Lemos viesse com ele. Deduz-se mais que Duarte de Lemos se não entendera com Francisco Pereira e por isso o deixara e fora servir Vasco Fernandes Coutinho, com a sua criadagem com a sua fazenda e levando consigo outros por seu respeito, isto é, outros acompanhantes de Francisco Pereira que com ele se desavieram, certamente chefiados por Duarte de Lemos; que Duarte de Lemos trouxera assim consigo criadagem e fazenda, viera aparelhado para os trabalhos de cultura e colonização. Duarte de Lemos, viúvo pela morte da mulher em 1529, teria concluído o seu panteão em 1534. Só, com os filhos criados, talvez gasta a riqueza que trouxera da Índia, e chamado pelos velhos companheiros das lutas da Ásia, lançou-se na aventura do Brasil. − E terá feito o que fizeram os outros, vendendo o que tinha e contraído empréstimos. Vasco Fernandes trocou até com D. João III a tenção a que tinha direito, por uma caravela. Não terá o Duarte de Lemos feito o mesmo? Não poderá ter vendido os seus direitos de donatário das terras da Trofa, ou garantido com elas dívidas contraídas, para poder levar ao Brasil os criados e fazendas, de que fala Fernandes Coutinho? Eu o creio. E assim se explica que, por sua morte, o filho João Gomes de Lemos, escudeiro fidalgo do rei, que deverá ter vivido na corte, pois recebia dela 2160 de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, não tivesse requerido a confirmação como filho mais velho de seu pai e viesse a requerê-la e consegui-la em 1575 o neto, o Duarte de Lemos que foi o 5.º senhor da Trofa. Não é natural que à data do falecimento do primeiro Duarte de Lemos em 1558, já o filho fosse falecido, pois assim teríamos a terra sem donatário durante 17 anos, situação que não consentiriam os interesses do rei. Mas bem podia suceder que ele, o João Gomes, filho de Duarte de Lemos, senhor de facto das terras e com o encargo das dívidas, já velho, não quisesse pagar os direitos de confirmação, deixando que o seu filho, o segundo Duarte de Lemos, o fizesse, por sua morte. Diz o despacho de confirmação / 245 / deste: − «Pedindo-me o dito Duarte de Lemos que porquanto ele era filho mais velho que ficava por falecimento de João Gomes seu pai a quem directamente pertenciam as cartas conteúdas nesta carta houvesse por bem de lha confirmar e visto seu requerimento e por ser filho mais velho de João Gomes seu pai tenho por bem de lha confirmar e hei por confirmada e assim e da maneira que se nela contem com a declaração que o ouvidor que viver nestas terras sendo letrado será examinado pelos meus desembargadores do Paço e não o sendo o examinará o corregedor da Comarca e sem o tal exame não poderá servir e elle Duarte de Lemos pagará em minha chancelaria o que for obrigado das cartas de confirmação de seu pai e avô que não tiveram além do que elle houver de pagar deste. Ant.º Carvalho a fez em Lisboa no 4.º de Dezembro de 1576».

Por morte do 5.º senhor da Trofa, Duarte de Lemos, foi confirmado a seu filho segundo, Diogo Gomes de Lemos, em 1617, porque o primogénito, João, morrera sem descendência o que significa que o filho ou se finara antes do pai ou pouco depois, sem tempo para requerer a confirmação. Ora sendo a confirmação do filho segundo de 1617, é de presumir que o pai, o segundo Duarte de Lemos, tivesse morrido depois de 1610 e não em 1588, como referi no artigo anterior.

Ao ilustre escritor e professor Dr. PEDRO CALMON, glória da oratória brasileira, pareceu, porém, que talvez este Duarte de Lemos, do Brasil, não fosse o da Índia, por que vivia em Janeiro de 1558 e, ainda que tivesse morrido neste ano, era já em tal idade que lhe não permitia andar pelo Brasil.

Com o maior respeito pelo sábio professor, penso que ele não tem razão: dando a Duarte de Lemos, em 1508, vinte e cinco anos, vai o seu nascimento para 1483 e a sua idade em 1558 para 75 anos, idade que condiz com a dos seus companheiros da Ásia, que viveram e morreram no Brasil. Francisco Pereira Coutinho veio em 1536, já a entrar na velhice e foi morto pelos índios em 1546; Vasco Fernandes Coutinho morreu velho de muita idade em 1561; Duarte Coelho morreu em 1554.

Não há, portanto, que estranhar que Duarte de Lemos por aqui andasse naquela idade.

Não podemos, como ainda lembra o Dr. PEDRO CALMON, identificar o Duarte de Lemos do Brasil com o 5.º senhor da Trofa. Teríamos de atribuir-lhe mais de cem anos à data do seu falecimento.

Todos os donatários, com excepção de Duarte Coelho, em Pernambuco, faliram em suas empresas: Francisco Pereira morre tristemente às mãos dos índios, expulso por eles da sua donataria; Pedro do Campo Tourinho foi levado preso / 246 / para Lisboa, donde não mais voltou; Vasco Fernandes Coutinho morreu quase na miséria amparado por amigos; Pedro de Gois chegou aos mesmos extremos.

Duarte de Lemos não foi um donatário directo, pois recebeu as suas terras, Ilha de Santo António, da mão de Vasco Fernandes Coutinho. Esta doação com quase todos os direitos de Vasco Fernandes foi-lhe confirmada pelo rei. Qual foi a sorte deste donatário? Os elementos colhidos da rara documentação que resta, ou de que tenho conhecimento, habilitam-me a concluir que a sorte deste foi igual à dos outros.

Já vimos como ele deixou Francisco Pereira na Baía e se passou para Vasco Fernandes Coutinho com criadagem, armas, alfaias e mais fazenda; e como ele a 15 de Julho de 1537 recebeu deste a Ilha de Santo António em troca dos muitos serviços prestados na luta com o gentio e parte da sua fazenda. Quer isto dizer que ele devia ter ido para o Espírito Santo ou ainda em fins de 1536 ou princípios de 1537. De 1537 a 1538, as culturas fizeram-se com algum sucesso; em 1539, Vasco Coutinho parte com Duarte de Lemos para Lisboa, onde vieram «a aviar-se para ir pelo sertão a conquistar minas de ouro e prata, de que tinha nova» (Hist. da Col. Port., voI. IlI, pág. 243).

Foi ali que se fez a escritura de confirmação de Alvará de doação em Agosto de 1540.

Vasco Fernandes Coutinho deixara a Capitania confiada a D. Jorge de Meneses quando partiu para Lisboa. Este D. Jorge não soube tratar com os índios, que se revoltaram, mataram-no e destruíram as plantações. Simão de Castelo Branco, que lhe sucedeu, teve a mesma sorte. Parece que os dois amigos, Vasco Fernandes e Duarte de Lemos, se demoraram algum tempo em Lisboa. Quando voltaram ao Brasil, nada encontraram da sua exploração agrícola., E o facto de se não lançarem logo em novas explorações significa que não encontraram na metrópole os recursos que tinham ido procurar, ou que os índios revoltados não consentiram novas tentativas. Na verdade, Vasco Fernandes Coutinho refugiou-se na Ilha de Santo António, que havia dado a Duarte de Lemos e este deixou-o ali e foi tentar a sorte junto de Campos Tourinho, em Porto Seguro. Duarte de Lemos, porém, não se demorou em Porto Seguro, pois em fins de 1548 já estava em Lisboa, onde foi requerer a D. João III que lhe confirmasse a doação da Ilha de Santo António feita por Vasco Fernandes Coutinho, por seu Alvará de 1537, ratificado pela escritura de 20 de Agosto de 1540. E D. João confirmou esta doação por sua carta de 8 de Janeiro de 1549. Logo em 1 de Fevereiro do mesmo ano de 1549 parte Tomé de Sousa, primeiro Governador Geral do Brasil, e leva / 247 / consigo Duarte de Lemos capitaneando a Nau Ajuda, e Pero de Góis, que é donatário da Paraíba do Sul e vai agora como capitão mór da Costa do Brasil − (P.e SERAFIM LElTE − Hist. da Comp.ª de Jesus no Brasil, voI. I, pág. 18).

Tomé de Sousa chega à Baía a 29 de Agosto de 1549 e logo depois deu a Duarte de Lemos o governo da Capitania de Porto Seguro, vago pela ausência em Lisboa do seu proprietário Pedro do Campo Tourinho. É de lá que Duarte de Lemos escreve a carta anteriormente referida, na qual previne o rei de que o Vasco Fernandes Coutinho ali chegara e se dispunha a seguir para Lisboa e depois para França a tratar com os franceses a povoação da sua Capitania.

Em 1551 o P.e Braz Afonso, no Espírito Santo, deu início à casa, que logo se chamou Colégio de S. Tiago. Na ano seguinte o P.e Manuel de Paiva foi mandado da Baía ao Espírito Santo «com a incumbência de assegurar a situação económica do Colégio». Ali se encontraram os dois homens, o P.e jesuíta Manuel de Paiva, de Aguada, e o Duarte de Lemos, fidalgo, senhor da Trofa. Foi generoso o Duarte de Lemos, porque deu ao Colégio, na sua Ilha, terras suficientes para o seu sustento. Esta doação precisava, porém, de ser confirmada pelo capitão Vasco Fernandes Coutinho, mas este, como vimos, não estava ali nesta altura. Foi feita a confirmação pelo loco-tenente Bernardo Sanches Pimenta, que por sua vez também fez doação dalgumas terras. (P.e SERAFIM LEITE − Hist. da Comp.ª de Jesus, loc. cit. . . .).

Do período que vai de 1552 a 1558, não encontrámos notícias de Duarte de Lemos mas é de presumir que se tivesse conservado como capitão de Porto Seguro, durante todo o governo de Tomé de Sousa e ainda no de Duarte da Costa, até que o duque de Aveiro tomou conta daquela Capitania que lhe venderam os filhos do Campo Tourinho, venda confirmada pelo rei em 1556.

Como disse, o Vasco Fernandes Coutinho deve ter partido para Lisboa, onde devia estar ainda em 1553, porque Tomé de Sousa, na carta de 1 de Julho deste ano diz ao rei: − «O Espírito Santo é a melhor Capitania e mais abastada que há nesta costa mas está tão perdida como o capitaõ dela que é Vasco Fernandes Coutinho eu a provi o melhor que pude mas V. A. deve mandar capitaõ ou Vasco Fernandes Coutinho que se venha para ela e isto com brevidade». Mas ele só deve ter vindo em fins de 1554 ou princípios de 1555 como resulta da carta, ao rei, de D. Duarte da Costa, sucessor de Tomé de Sousa, em 20 de Maio de 1555: − «Vasco Fernandes Coutinho chegou aqui velho, pobre e cansado, bem injuriado do bispo, porque em Pernambuco lhe tolheu cadeira de espaldar na igreja e apregoou-o de excomungado de mistura com homens baixos por beber fumo, segundo mo elle / 248 / disse eu o agasalhei em minha casa e com minha fazenda lhe socorria sua pobreza para se poder ir para o Espírito Santo».

Em 1558 Duarte de Lemos encontra-se novamente no Espírito Santo, onde estava Vasco Fernandes Coutinho. Diz a carta do P.e FRANCISCO PIRES da Comp.ª de Jesus: − «Aos 20 de Janeiro, baptizei o filho do Gato e casei-o com a sua Negra; foram seus padrinhos Duarte de Lemos, Bernardo Pimenta e André Simão. Foi feito esse ofício com pouca solenidade, porquanto o Índio estava doente e mal pôde vir à igreja. Mas se foi pouco falado o seu novo nascimento, foi muito falada a sua morte, como em seu lugar direi». Foram, este assento de 1558, e o facto de 1549 o Duarte de Lemos ter capitaneado uma Nau da Armada de Tomé de Sousa, que levaram o Dr. PEDRO CALMON a pensar que este Duarte de Lemos não era da Ásia. Se, como atrás disse, ele em 1558 poderia ter 75 anos, em 1549 teria 66, idade já um pouco avançada para comando de naus. E na verdade o seria se Duarte de Lemos começasse então a sua carreira. Não era a um homem de tal idade que se ia cometer empresa nova nem cooperação fora de suas forças. Mas Duarte de Lemos voltava ao Brasil, onde tinha já vivido longos anos, e voltava ao posto que deixara, isto é, ao governo precário da capitania de Pedro do Campo Tourinho, a braços com a Inquisição em Lisboa. Em iguais circunstâncias voltava Pedro de Góis. Também este deixara a sua Capitania da Paraíba do Sul, para vir a Lisboa cuidar dos seus negócios e falar com o rei sobre as necessidades do Brasil. E ele lá volta também com Tomé de Sousa, capitão de uma caravela, para ir ser o capitão-mor dos mares do Brasil. Ainda que mais novo do que Duarte de Lemos, também o Pedro de Góis era já o homem feito e cansado nas lutas e desastres sucessivos da sua Capitania.

Este Duarte de Lemos do Brasil era sem dúvida o Duarte de Lemos da Índia.

Em 20 de Janeiro de 1558 estava, portanto, no Espírito Santo. Morreu aos 27 de Junho do mesmo ano. Onde? No Brasil, em Portugal? Como e quando foi para lá? Neste pequeno período que vai de 20 de Janeiro a 27 de Junho não encontrei nenhuma referência ao seu nome. Presumo, por vagas deduções, que morreu no Brasil, como quase todos os seus companheiros de luta.

A carta do P.e jesuíta FRANCISCO PIRES, atrás referida, conta o caso do baptizado do filho do Gato, de que foi padrinho o Duarte de Lemos. Diz que este acto foi pouco falado e feito com pouca solenidade. Mas sobre o enterro diz o mesmo padre: − «Aos 2 do mês de Abril morreu Sebastião de Lemos, o filho do Gato... fomos buscá-lo com grande pompa e solenidade; primeiramente o Padre Vigário levava um crucifixo / 249 / nas mãos coberto de luto, como ás sextas feiras na Quaresma se costuma fazer, e a sua cruz adiante e a dos meninos e o Governador» (Vasco Fernandes Coutinho) «na procissão com toda a demais gente da terra, e assim nós cantando e elles pranteando, o trouxemos à nossa Igreja... dias depois do seu enterramento, lhe fizemos um ofício cantado, ao qual esteve presente o pai? (pai do Gato) «e alguns dos seus e o Governador o assentou entre si e o seu filho Vasco Fernandes (filho natural)... «para lhe dizer» que para de todo ser nosso irmão... já não lhe faltava senão ser baptizado e casado com sua mulher, dizendo-lhe assim o língua, respondeu que muito queria a sua mulher que estava presente; o mesmo disse o senhor Governador que, porquanto a amava muito lhe queria fazer uma grande festa no dia do seu baptismo e por este amor queria que tomasse o seu nome e sua mulher o de sua mãe e seus filhos os nomes dos seus, e assim os pôs cada um e assim assentámos em baptizá-lo para a festa do Espírito Santo».

E continua:

«Umas das coisas que nesta villa me alegrou foi o senhor Governador fazer um grande milagre. Estavam os moradores desta vilIa muito desgostosos, e com elIe mui differentes por coisas que lhes elIe fazia: quis Nosso Senhor movê-lo e mandou chamar a todos aqueles que lhe parecia estarem escandalizados e com boas palavras e mostra de sentimento lhes pediu a todos perdão com protestação que, se alguem havia danificado, o satisfazia e dali por diante queria estar bem com todos; Etiam, uma Negra de quem havia alguma suspeita pôs fora e quer casá-la.»

Temos assim três factos:

1.º − Baptismo do filho do Gato de 20 Janeiro de 1558 − Padrinho Duarte de Lemos − sem solenidade − o Governador não assiste.

2.º − Morte, a 2 de Abril, do baptizado Sebastião de Lemos e seu enterro com toda a solenidade, assistência do Governador e sua família, e todo o povo. Não há referência a Duarte de Lemos.

3.º − Baptismo em Maio, pela festa do Espírito Santo, do Gato, mulher e filhos, recebendo o pai o nome de Vasco Fernandes, a mulher o da mãe do Governador e os filhos os dos filhos do mesmo Governador. O Padre FRANCISCO PIRES não nos descreve este acto.

A morte do filho do Gato foi um acontecimento de grande repercussão, informa o padre FRANCISCO PIRES. Tendo o Duarte de Lemos feito o baptismo dele e sendo pessoa de importância, fidalgo do rei, é natural que fosse mencionada a sua presença neste acto. Já teria saído do Espírito Santo? Penso que não. O padre Francisco Pires conta com tanta / 250 / satisfação e espanto as pazes que Vasco Fernandes fez com os moradores da vila «mui desgostosos e com elle mui diferentes por coisas que lhes elle fazia» que não teve outra explicação para a atitude de humildade de Vasco Fernandes senão atribuí-la a um grande milagre deste. Para o padre assim se exprimir era preciso que a indisposição dos moradores fosse realmente grande. E que de facto assim era mostra-o a carta de Vasco Fernandes Coutinho, escrita de Ilheus, logo a 23 de Maio seguinte, ao Governador Geral na Baia:

«Senhor: − É a minha obrigação tanta em que lhe são pela mercê que me fez e no socorro que me mandou e dado o caso que sua pessoa e quem elle é e para o que era obrigado a fazer o que fez e fora eu assim doente e aleijado como estava me embarquei a vir visitar e beijar as mãos e com o mao tempo e má vida do barco, já quando aqui foi dita chegar vivo da maneira que vim pela qual razão e minha doença não vou...

«Peço a Vossa Senhoria que pois já que ganhou aquela terra e consigo usou tanta fidalguia e tanta virtude que em tudo o faça como eu delle desespero em o favorecer nas coisas que for necessário para paz e socego da gente porque esta é a que mais pode fazer entre uns e os outros porque dos índios já fica segura louvores a Deos e a terra despovoada delles, peço a Vossa Senhoria que me proteja com justiça dalgumas desordens que lá ha entre nós e que os moradores tem contra mim por onde se tem causado muitos ódios e muitos desmandos entre elles e o começo de se os índios alevantarem foi esta que lhe direi huma postura que lá está em que houvesse um compadre, tomaram-se tanto em gozo que teimam os que querem e isto causou se alevantarem os negros com os resgates que levaram...»

Ora esta carta é de 22 de Maio, isto é, de antes da festa do Espírito Santo, pois, salvo erro, a Páscoa foi a 6 de Abril. E era nesta festa que havia de fazer-se, e parece que se fez, o baptismo do Gato e da família. Os desmandos e ódios a que se refere Vasco Fernandes Coutinho devem ter-se desenvolvido sobretudo depois do baptismo do filho do Gato, a 20 de Janeiro, e antes do baptismo do pai. Vasco Fernandes foi o padrinho deste, tinha-lhe dado o seu nome, mas não podia ter assistido ao baptismo, por que se foi a caminho da Baía, a pedir providências ao Governador. Não podendo, por doença, chegar até lá, escreveu-lhe de Ilheus. Ora pergunto, não estará naquela «postura em que houvesse um  compadre» a chave de toda esta questão? Não será este compadre o Duarte de Lemos, que na verdade o era do Gato, por lhe ter baptizado o filho? Assim o penso. Mas Duarte de Lemos morre em Junho e certamente, depois da sua morte é que Vasco Fernandes resolve reconciliar-se com todos, / 251 / fazendo o tal grande milagre a que se refere o padre FRANCISCO PIRES. Conjecturo assim que Duarte de Lemos morreu no Brasil. Mas, se assim foi, quem recolheu os seus restos ao túmulo, que na Capela da Trofa lhe estava reservado, e mandou gravar a inscrição tumular? Quem mandou fazer e colocar a estátua orante? Será esta do 3.º senhor ou do 5.º que porventura terá os seus ossos também depositados no mesmo túmulo? Não terá o povo razão quando atribui aquela estátua àquele que se deitou abaixo da Ponte de Coimbra e que pegou na rabiça do arado para apontar o caminho aos que iam prendê-lo?

Temas a desafiar os curiosos.

A eles voltarei.

AUGUSTO SOARES DE SOUSA BAPTISTA

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