SENHOR!
EM nome de muitos cidadãos reunidos no dia de hoje num grande comício na
cidade de Aveiro no exercício de um direito que lhes faculta a
Constituição do
Estado e cônscios de que cumprem um dever concorrendo, no modo como procedem, para o bem e o progresso do País, os
abaixo assinados, presidente e secretários da mesa do mesmo comício, vêm
respeitosamente submeter ao alto
critério de Vossa Majestade a exposição do estado deplorável em que
se encontra a grande superfície alagada que se chama a Ria de Aveiro.
É uma grande área deste
distrito constituída por solo de
aluvião recente e quem observar a carta geológica desta parte do País sem
esforço concluirá que outrora os 50:150 hectares de terrenos de formação
recente foram ocupados por uma grande baía que a acção geológica das
correntes marítimas
e das vagas pouco e pouco separou do Oceano por meio da extensa linha de
dunas que vai desde o sul do ribeiro da Granja até às proximidades do
norte do Cabo Mondego. Assim ficou rectificada a linha geral da costa e
o aparelho litoral, formado pelo mar, ofereceu um ponto de apoio aos carrejos arrastados pelos rios e torrentes, que derramavam
as suas águas nesta anfractuosidade da costa, colmatando e enateirando
desta maneira a enorme superfície das águas,
/
124 / que nesse tempo mal poderia distinguir-se da imensidade do Atlântico;
porque decerto as areias, que mais tarde haviam
de constituir as dunas, traíam apenas a sua existência pela arrebentação
das vagas. Em suma, o Oceano juntou à superfície do País aquela orla já
mencionada de 50:150 hectares;
mas tendo que continuar a vazar-se no mar as águas que
carrejavam e continuam ainda hoje a transportar os detritos, com que se
constitui o solo desta região, começaram então de formar-se os deltas
nas fozes dos rios que desaguavam na
já aludida baía ou anfractuosidade do litoral e portanto a originarem-se
desvios nas trajectórias das correntes, amortecendo-se-lhes as
velocidades de vazão e originando-se represamentos de águas, que
alagavam os campos marginais. Assim, por cima do tufo calcário que forma
o subsolo desta região foram elevando-se gradualmente terrenos, cuja
origem recente se justifica ainda pela quase ausência de fósseis.
Não parou contudo aí o trabalho das acções geológicas, pois ainda
prossegue, devendo também acrescentar-se que predominando aqui os ventos
mareiros, especialmente os do quadrante do noroeste, antes de atingirem
a ria, eles encontram a linha das dunas já descrita e portanto assim
arremessam muitos milhões de metros cúbicos de areia para os canais e
terrenos alagados, que ocupam ainda hoje uma superfície de 6:270
hectares, medindo de norte a sul, desde Ovar até
Mira, não menos de 50 quilómetros e servindo vinte e cinco freguesias,
entre as quais se conta a da Murtosa que, sem contestação, é a mais
populosa deste reino.
A duas causas de
assoreamento está pois sujeita a ria de Aveiro. A
contínua acção de transporte que determinam os rios e regatos do
Carregal, Graça, Luzes, Puxadouros, Senhora de Entre Águas, Doce, Bico,
Jardim, Antuã, Vouga, Rio Tinto, Palhal, Ribeiro, Pardelhas, Vilar e
outros e o movimento das areias, que ocupam não menos de 29:480 hectares de
terreno improdutivo e que, depois de arborizado e aplicado à cultura
cerealífera, produziria resultados económicos verdadeiramente
prodigiosos, como adiante se verá, sem contar que assim acabaria uma
das causas mais sensíveis de empobrecimento desta ria e de tal modo
importante que um distintíssimo engenheiro, que por largos anos exerceu
aqui
o lugar de director das Obras Públicas do distrito, o conselheiro
Silvério Augusto Pereira da Silva, escreveu «A perda
de fundo da Cale do Ouro, que corre paralela e junto à mesma duna até à
barra pode reputar-se o médio por ano em 0,032 metros e a causa principal
deste progressivo assoreamento é sem dúvida devida à proximidade de um
semelhante areal, sem
revestimento algum e do qual estão constantemente arrojando as areias
para a ria os ventos reinantes, na direcção favorável a semelhante
transporte».
/
125 /
Se, a arborização das dunas atenua
o assoreamento desta ria, outro tanto
não sucede com o enlodamento determinado pelos rios, que nela desaguam.
Só as dragagens podem eficazmente lutar contra esse fenómeno, cujos danos os abaixo assinados
esperam mais adiante poder evidenciar, cumprindo ainda acrescentar que
os lodos tirados da ria e espalhados sobre as areias e dunas do litoral
conseguiriam, pelo poder fertilizante que se tem reconhecido naqueles
que a lavoura
tem empregado, conquistar para a agricultura pelo menos
7:370 hectares de terrenos que, além de serem agora sáfaros e
improdutivos, constituem uma causa de ameaça permanente para esta
região, sem contar que deixaria assim o Estado
de neles gastar em plantações e sementeiras, como está projectado e seria indispensável fazer-se, a importante quantia de
quatrocentos e quarenta e dois contos de reis, que, só passado grande
lapso de tempo, compensaria o capital empregado; enquanto que, pela
distribuição dos lodos sobre as dunas, em menos de dois anos aqueles
terrenos estariam não
só de posse de particulares, mas por eles cultivados, acrescentando a
riqueza pública com a soma colossal de 7:554 contos
de reis, como mais adiante se verá. A venda dos já referidos terrenos,
depois de recobertos de lodos e portanto aptos para fertilíssima
cultura, amplamente compensaria o Estado da despesa a fazer em dragagens
na ria.
Demais, Senhor, sem procurar justificar as dragagens com as frases que
na Grande Encyclopédie, actualmente em publicação, escreveu o Inspector
Geral de Pontes e Calçadas M-C. LÉCHALAS, que afirma que se consegue fazer muito bom trabalho com
engenhos que nem sempre representam um grande valor; sem ir buscar às
lições do engenheiro LAROCHE na Escola nacional de Pontes e Calçadas de
Paris a asserção de que «há unanimidade de opiniões a respeito da
necessidade de dragagens, acerca da sua eficácia em todos os casos,
relativamente à facilidade que oferecem em seguir-se-lhes os resultados
obtidos, em modificá-los quando seja precisa proporcionando-os aos
interesses que devem ter-se em vista»,
sem ainda lembrar que, contando os juros e amortização dos capitais
empregados, o inspector Eyriaud de Vergnes conseguiu realizar em Dunquerque dragagens, cujos preços variaram entre 37 e 54 centésimos de franco por metro cúbico ou sejam 67 a 96
reis com um transporte dos produtos da dragagem a cinco quilómetros, e
que na foz do Danúbio e rectificação do braço de Soulina se efectuou um desmonte, na maior parte
dragado, de 6.535:516 metros cúbicos; não podem os
abaixo assinados deixar de valer-se da incontestada autoridade de um dos
mais sábios membros do corpo de Engenheiros de Obras Públicas de
Portugal e que, nesta corporação,
em que não faltam ornamentos de subida ilustração, se
/
126 /
distingue entre os mais prestimosos, activos, experientes e
sabedores, para evidenciar desta arte o pedido respeitoso de um serviço
de dragagens para esta ria. De facto, o conselheiro ADOLFO FERREIRA DE LOUREIRO, no seu projecto do melhoramento do Porto de Macau, escreveu o
seguinte:
«Hoje as dragagens consideram-se um serviço inerente
a todos os portos, quer estas dragagens sejam exteriores para a
diminuição das barras, muito especialmente quando são de areia, quer interiormente para a remoção dos depósitos e
das vazas.
Não conheço porto algum em que este serviço não esteja
hoje montado e conservado com todo o cuidado. Em Inglaterra há portos, que por assim dizer foram abertos só por
meio das dragagens. No melhoramento do Clyde a criação do porto de Glasgow foi onde em 1824 se empregaram primeiro as dragas a vapor, e onde o rio e o porto foram todos
abertos artificialmente por estas máquinas, que baixavam
até 9m,5 de profundidade produzindo cada uma um trabalho de 200 m. c. por hora. Ainda hoje ali trabalham seis grandes dragas, que retiram do fundo um grande volume anual, que
se calcula em 1:000:000 m. c.
No Tyne onde desde 1850 até hoje se despenderam mais de 15:000 contos de reis no porto de New Castle, de North
e South Shields, e em todos os outros daquele rio, têm sido
obtidos notáveis melhoramentos à custa de imensas dragagens, que ainda hoje montam a muito perto de 1.000:000 m. c.
por ano.
Passando a França, vê-se nos portos do norte, abertos em uma extensa
costa de areia, que o serviço das dragagens está montado com toda a
largueza, como em Boulogne,
Dunquerque, Calais, etc., enquanto que em todos outros
se mantém igual serviço, quer os portos sejam na costa marítima, como o
de Cette, quer na foz de um rio, como o de Saint Nazaire e do Havre,
quer no interior, como o de Rouen.
Na Holanda, não falando das dragagens do canal de Amsterdam, bastaria lembrar as da foz do Meuze que têm sido e são
extraordinárias, sem contar as que foi mister fazer em Rotterdam.
As bocas do Danúbio e a rectificação e melhoramento
da de Soulina, exigiram dragagens verdadeiramente excepcionais.
O canal de Suez empregou poderosíssimas máquinas de dragar e ainda hoje tanto no próprio canal, como em Port-Said e na entrada deste porto, trabalham constantemente fortes dragas,
que fazem um serviço que se calcula superior a 1.000:000 m. c. por
ano.
/
127 /
Nas índias inglesas, em Bombaim, draga-se incessantemente o canal que dá acesso à grande Prince's Dock, sendo mister fazê-lo
duas vezes no mesmo ano, tão consideráveis são os depósitos.
Em Colombo escava-se na areia o
porto, que em grande parte é aberto
artificialmente.
Em Calcutá recorre-se às mais poderosas máquinas de dragar e removem-se
massas enormes de lodo, tanto para aprofundar o seu porto, como para
abrir através do delta do Ganges, ou no interior das terras, largos e
profundos canais de navegação e docas.
Nas possessões holandesas de Java as dragagens de vaza e de coral
no porto de Batávia e no novo porto de Priok e as de coral e de areia
no de Surabaya, são imensas.
No porto de Saigon, no mar da China, acabam os franceses de montar o serviço das dragagens.
Em Hong-Kong vai recorrer-se ao trabalho das dragas
para remover alguns depósitos, que principiam a observar-se.
Na América, as dragagens efectuadas, e os aparelhos e máquinas enormes
que para esse fim foram construídas, excedem tudo quanto a Europa tem
realizado.
Enfim, as dragas constituem hoje um material indispensável
nos portos; e o seu serviço reputa-se impreterível.»
Depois de tão abalizada opinião, aos abaixo assinados resta investigar
se a importância desta região justifica o serviço que para ela pede o
actual documento.
O valor médio da produção das pescarias computa-se
aqui em mais de cem contos de reis e o dos vegetais aquáticos,
conhecidos pelo nome de moliços, que se empregam no adubo dos terrenos
marginais, é bastante valioso nestes sítios para tentar capitais que
construíram uma linha férrea, de via de 1 metro de largura, numa extensão
de cerca de 13 quilómetros, desde o Areão até Mira, contando a empresa
exploradora aproximar esta linha do caminho de ferro da Beira Alta,
junto da estação de Cantanhede, para o que necessitará prolongá-la numa
extensão não inferior a 15 quilómetros e ainda a mesma empresa tem
estudos adiantados para prolongar a via férrea cerca de uns 14
quilómetros, até ao local denominado a Costa Nova do Prado, junto à
barra deste porto, contando-se sem dúvida com o contínuo e de cada vez
mais pronunciado assoreamento do braço da ria, que vai até Mira e que
permite que mercadorias pesadas, volumosas e de pouco valor se utilizem
de um caminho de ferro, quando a poucos metros de distância e
paralelamente existe, num desenvolvimento de mais de 25 quilómetros, um
canal, em toda a sua extensão navegável ainda há poucos anos e hoje
de tal maneira assoreado que junto à Vagueira, a 6 quilómetros
/
128 /
para o sul da Costa Nova do Prado, só em preia-mar de águas vivas é que
passam os barcos com carga razoável e apenas em meia carga nas marés
de quadratura.
Não é contudo só em peixes e moliços que se resume o rendimento desta
ria; pois que aos 107 contos, que em média rende o peixe, e aos 196
contos de reis de valor mínimo de moliços, há que juntar não menos de 97
contos de reis em
média, produzidos pelo sal e ainda uma grande cifra, que é difícil
calcular por falta de dados estatísticos, referentes aos juncos, bajunças (Juncus accutus) e outras plantas que se dão nos terrenos
alternadamente alagados e secos, e que constituem a matéria prima de
fertilizantes e indispensáveis adubos
agrícolas, não só para os concelhos ribeirinhos, como para
alguns do interior. Mas os 400 contos que somam as três verbas acabadas
de apontar, não limitam o valor que esta
ubérrima região seria susceptível de produzir se por acaso não estivesse
de há longos anos votada a um tal ostracismo,
que o exemplo acima apontado, para caracterizar o assoreamento da ria na
Vagueira, se topa em qualquer outro local que se examine.
Assim sucede que no ano passado entraram pela Barra desta cidade 3:013
toneladas de mercadorias que, na sua maior parte, não conseguiram chegar
até junto do porto de desembarque, estacionando nas proximidades de S.
Jacinto e das
Duas Águas, de 4 a 6 quilómetros de Aveiro, os navios, que as
transportaram, e aí mesmo se efectuou a carga de 8:337 toneladas de
mercadorias que daqui foram exportadas. Ora entre os pontos indicados e
Aveiro um barco não pode fazer mais que uma viagem diária,
transportando em média uma carga de doze toneladas, e portanto sucedeu
que no ano passado o comércio se viu obrigado a pagar mais de um conto
de reis de fretes, absolutamente dispensáveis, se as embarcações
viessem, como sucedia há menos de vinte anos, até junto dos cais da
cidade.
Da mesma forma entre Aveiro e o Porto do Bóco, ao
sul do braço da ria que passa por Ílhavo, há uma distância
aproximada de 15 quilómetros, que só em marés de sizígias pode
percorrer-se com barcos carregados; mas, ainda assim,
exige esse curto trajecto duas preia-mares para passar nos baixios que há nas proximidades de
Ílhavo e da Vista Alegre,
e, como só por excepção há duas preia-mares com luz de dia, gastam-se
quarenta e oito horas num barco que transporte mercadorias para a região
da Bairrada e dali traga ou os vinhos ou a cal, que se emprega, não só
nas construções do distrito, mas ainda no Porto e em muitas terras do
norte. Demais, é o porto do Bóco que fornece a argila com que Ovar fabrica a louça de uso comum que se gasta em quase
todo o norte, não só na beira-mar, mas ainda para o interior
/
129 /
[Vol. XlV -
N.º 54 - 1948]
e esse transporte, que é bastante importante para que diariamente se
contem pelo menos dez barcos à descarga no cais de Ovar, exige um lapso
de tempo não inferior a noventa e seis horas, quando facilmente se
conseguiria efectuá-lo em uma quarta parte daquele tempo e o mesmo
sucederia com o trajecto entre Aveiro e aquele porto. Assim
realizar-se-ia uma economia de 75 por cento do tempo gasto, o que
arrastaria como imediata consequência, uma igual diminuição do preço dos
fretes, cumprindo observar que muita cal e quase todo o vinho do
concelho de Anadia preferem às embarcações o caminho de ferro ou as
estradas ordinárias, evidenciando-se assim, ainda outra vez, o facto
deveras singular que mercadorias, que deveriam escolher a via fluvial,
preferem outros meios de comunicação, que se tornam mais baratos
atento o deplorável estado de assoreamento desta ria e ainda com
desproveito quase completo de cerca de 40 contos gastos
na estrada distrital n.º 75 das Quintãs por Ouca à estação de Mogofores
e estrada distrital n.º 73, via tão importante que, partindo das
Quintãs, passando por Ouca e ramificando-se para Amoreira da Gandra,
estação de Mogofores, Taboaço, Mesas, Covão do Lobo, Ancas e outras
povoações, termina no porto do Bóco, que assim se torna a via natural
para a vazão dos produtos do concelho de Anadia.
Ainda com risco de tornar enfadonha esta exposição, não podem os abaixo
assinados deixar de levar ao conhecimento de Vossa Majestade que há
próximo da freguesia de Canelas
umas pedreiras de xisto cuja exploração teve que ser abandonada, pois
que o esteiro que junto delas conduz, está de tal maneira assoreado que
impossível se torna o tráfego por ele e numa região em que a maior parte
das construções são feitas de madeira ou de adobos de cal e areia é
digno de reparo o abandono de um material que, embora fosse talvez pouco
apreciado noutras regiões, aqui seria vantajosamente empregado.
Do mesmo modo os canais que se denominam Cale da Carlota e Cale da Marta
estão de tal maneira abandonados que bom número de barqueiros desta
região os não conhece e em pouco tempo o mesmo sucederá com o esteiro de
Sama; e contudo o primeiro e o segundo reduzem a metade o tempo a
despender no trajecto entre Estarreja, Murtosa e Aveiro e o terceiro é o
caminho mais directo entre Aveiro e a Costa de S. Jacinto, tão importante pelas suas pescarias marítimas que aí
sustenta desde já não menos de quatro companhas de pesca que dão trabalho
a mais de 300 homens, pagando ainda
no ano passado a quantia de 3:084$507 reis de imposto de pescado.
No local em que o rio Vouga desagua na ria, no sítio
conhecido pelo nome de Boca do Rio Doce, o assoreamento
/
130 /
é de tal ordem que os barcos, que do norte seguem para Aveiro e os que,
carregados de lenha e outros materiais,
vêm de Águeda, S. Tiago, Angeja e demais portos fluviais
em direcção à mesma cidade, precisam de aguardar maré para poderem
seguir pelo canal de Bulhões; pois que, em vazante, correm o perigo de
ser arrastados ao longo da Cale do Espinheiro e, ainda quando consigam
governar, hão-de caminhar quase dois quilómetros, com a agravante de
que, em um percurso relativamente longo, que seria substituído por um
canal com trezentos metros o máximo, não podem utilizar-se do vento como
motor senão em uma parte da sua trajectória, pois que na outra o terão
pela proa.
À saída do porto da Ribeira de Ovar, um dos mais importantes desta
região, pois que não menos de cinquenta barcos o demandam diariamente,
fazendo aí transacções que sobem a muitos contos de reis, no sítio do
Cabo de Ovar os enlodamentos são de tal ordem que as fragatas construídas
no cais da Ribeira e que daí são enviadas para o Tejo, onde se conhecem
pelo nome de Varinas ou Ovarinas, só em marés de águas vivas conseguem
passar quase vazias sobre o baixio, completando junto de S. Jacinto a
carga de madeira, com que se fazem ao mar, em demanda de todos os
portos compreendidos entre Peniche, Setúbal e muito nomeadamente o de
Lisboa, onde ficam fazendo serviço.
Os abaixo assinados, respeitosamente entendem dever observar que a
madeira, com que se carregam aquelas embarcações, provém quase toda das
proximidades do local em que elas são construídas e portanto tem que
pagar-se o transporte em separado da fragata e da carga que lhe é
destinada, por isso que a falta de fundo da ria não consente que se
proceda de um modo mais económico.
Ainda há pouco os abaixo assinados se referiram a um lugar desta
região, conhecido pelo nome de Costa Nova do Prado, que fica a 3:350
metros para o sul da barra de Aveiro. Ali se encontram não menos de
cinco companhas de pesca marítima e uma praia de banhos com mais de
duzentas casas. Apesar, porém, da excelência da localidade, em tão
favoráveis condições de beleza, que ali construiu uma casa José Estêvão
Coelho de Magalhães, o maior tribuno do constitucionalismo português e
de quem esta terra se envaidece de ser a pátria apesar de todas as
vantagens da posição privilegiada da Costa Nova, pequeno é ali o
desenvolvimento das construções, porque o esteiro do Oudinot, que
comunica com segurança Aveiro com aquela praia, não oferece
profundidade bastante para que por ele se transite em toda a maré.
Do mesmo modo o esteiro do Mourão está quase abandonado e contudo é ele
que mais facilmente põe a ria em contacto com o apeadeiro de Avanca,
que a Companhia Real
/
131 / dos Caminhos de Ferro há poucos anos construiu para vantagem própria e
comodidade dos povos de Pardilhó, Bunheiro, Avanca e outros, em cujas
freguesias o censo de 1878 acusava uma população de 10:498 habitantes,
devendo notar-se que o
concelho a que pertencem estas freguesias, segundo o anuário
estatístico de 1889, publicado no ano passado, mostra que o total dos
nascimentos foi de 1:152 almas, isto é, mais 37 do que em 1888, e mais
77 do que em 1887, mais 4 do que em 1886. Com relação aos casamentos
ali houve no dito ano de 1889 mais 10 do que no anterior, mais 1 do que
em 1887 e mais 24 do que em 1886; e em 1889 deram-se 629 óbitos, isto
é, menos 65 que no ano precedente, menos 34 do que em 1887 e menos 519
do que em 1886, sendo porém este, após os concelhos de Oliveira de
Azeméis, Feira e Anadia, aquele que neste distrito deu maior
contingente para a emigração, que continua crescendo; pois que já contou
em 1889 mais 23 indivíduos do que em 1888, mais 38 do que em 1887 e mais
62 do que em 1886.
O esteiro de Estarreja também merece especial menção, pois que a sua
foz, junto do Laranja, está de tal modo assoreada, em resultado dos
carrejos do rio Antuã, que os barcos por ali passam com dificuldade
extrema em preia-mar e contudo é este esteiro o que mais próximo se
encontra da linha do caminho de ferro e não pode tirar desta
circunstância tão
favorável o partido que devera esperar-se; porque sendo, em
resultado das obras que ali fez o serviço hidráulico, praticável em todo o seu percurso, apenas na foz é que exige que se espere pelas preia-mares, tornando-se já difícil o trânsito nas de quadratura.
O esteiro de Esgueira também está assoreadíssimo na sua maior parte e os
trabalhos que o governo de Vossa Majestade ali mandou executar
ultimamente a custo remedeiam numa via fluvial que merece especial
atenção, por isso que o tráfego que por ali se faz anualmente não é
inferior à quantia de 6:0008000 reis.
Embora pareça longa em demasia esta exposição do estado deplorável em
que se encontra esta ria, não podem os abaixo assinados deixar, pelo
menos, de enumerar entre dezenas de esteiros, todos mais ou menos inavegáveis: os do Gramato
e Ceboleira, S. Roque, Dobadoura, S. Gonçalo, Fonte Nova, Pega, Afogada,
S. Tiago, Corim, S. Pedro, Ourô, Sá, Redúlia, Maria Dias, Parda,
Doutores, Mouroas, Castanhos, Cascais, Leivas, Moinho, Enguieira,
Caixinhas, Romanos, Circea, Pinta, Moleira, Judenga, Cavalos, Novo,
Teixugueiras, Aldeia, Mancão, Bulhas, Póvoa, Veiros, Vacas, Carregal,
Cabeço das Pedras, Regateira, Palhas e Ilha, em que o enlodamento avulta
de tal maneira que muitas marinhas dificilmente fabricam o sal, pela
falta do acesso das águas salgadas e tão grande dificuldade
/
152 / experimentam na remoção dele para o mercado que os proprietários
se vêem obrigados a vendê-lo por quantidade muito sensivelmente inferior
à real, por isso que só assim tentam o comprador.
Em suma, Senhor, por esta exposição se conclui sem
custo que a ria de Aveiro não só se encontra num estado lastimoso de
navegabilidade, com tão pronunciadas tendências a aumentar numa
progressão assustadora, que não é exagero acrescentar-se que num futuro
muito próximo ficará transformada em praia e portanto completamente
inútil para
o único fim de que é susceptível de utilização, mas também
a este mal vem juntar-se iminente perigo para a saúde pública.
Com efeito, o represamento das águas já tornou endémicas em Vagos as
febres intermitentes, e aí ocorreram em 1888 mais 16 óbitos do que em
1887 e em 1889 mais 5 do que em 1887 também. Nos campos de Estarreja e
Veiros fazem aquelas febres muitas vítimas, sendo para lamentar que as
estatísticas não designem especialmente aquela causa de mortalidade
para se justificar que, sendo Estarreja um dos concelhos mais populosos
deste distrito, possui contudo freguesias como Avanca que, pelo censo
de 1864 contava 4:074 almas e em 1878 apenas possuía 3:921 e veiros que,
em 1864 tinha 2:217 habitantes e em 1878 tão somente 2:290. Na
primeira portanto, em 14 anos, a diferença para menos na população foi
de 153 almas e na segunda, durante o mesmo
lapso de tempo, o crescimento anual da população foi apenas de 5
pessoas. Na Marinha de Ovar não raro prostram as intermitentes aqueles
que ali vivem e os tifos ali vitimaram
no ano passado muitas pessoas, cumprindo notar que nesse concelho é
constante o aumento de mortalidade por isso que
em 1889 morreram mais 141 pessoas que em 1888 e mais 71
do que em 1887. O mesmo sucede no concelho de Ílhavo,
em que houve em 1889 mais 16 óbitos do que no ano anterior, mais 45 do
que em 1887 e mais 19 do que em 1886.
Apesar de se observar no concelho de
Aveiro um decrescimento na
mortalidade para os mesmos anos por isso que em 1889 ocorreram menos 61
defunções do que em 1888 e menos 2 do que em 1887, embora mais 23 do
que em 1886,
convém, ainda, por meio de dragagens, arredar do centro da cidade uma
causa de insalubridade determinada pelo canal que separa as duas
freguesias da Vera-Cruz e de Nossa Senhora da Glória. É nesse canal, que
atravessa a cidade, que descarregam os colectores dela e ainda aí se
vazam muitos canos de esgoto das casas que marginam o referido canal,
pejando-o assim com imundícies que, em quase todas as baixas-marés e
especialmente nas de Agosto, ficam a descoberto e sob a incidência
directa dos raios solares, com grande perigo para a saúde pública e
tanto maior actualmente quanto é para
/
133 / supor que a epidemia do cólera asiático parece não só não abandonar a
Europa mas até continuar as suas devastações em todos os países desta
parte do mundo.
Não prosseguiriam os abaixo assinados na exposição dos danos que para esta região determina o assoreamento da ria, se não
entendessem que calar os benefícios de um serviço de dragagens era acção indigna de povos que se comprazem em afirmar que
sempre deram provas de civismo e portanto não devem, nesta hora em que
o País carece de lançar mão de todos os recursos, que lhe oferece o seu
quase inexplorado solo, deixar de ponderar diante de Vossa Majestade o
quanto o bem de Portugal exige os trabalhos de dragagens aqui pedidos.
Há, como acima se disse, neste distrito e ainda no de Coimbra, uma
vasta superfície de 29:480 hectares de areais e mèdões que agora nada
produzem e que em menos de dois
anos seriam susceptíveis de cultura se sobre eles se espalhassem os
lodos da ria, tão fertilizantes como os moliços, que já transformaram em
terras aráveis uma orla de trinta e três quilómetros de areias
conquistando assim para a cultura cerealífera 1:625 hectares de
terrenos improdutivos há cerca de meio século. Este trabalho colossal
efectuado por beneméritos camponeses, quase na sua totalidade
analfabetos e desajudados dos incentivos a que teriam direito
incontestado, se não fosse quase desconhecido o seu rude, embora
profícuo, labutar; pois que ainda muitas pessoas se contam neste
distrito que viram a Gafanha árida e despida de vegetação, como a maior
parte dos areais do litoral, este trabalho, Senhor, foi tão proveitoso
que é a Gafanha talvez um dos lugares deste distrito em que haja mais
ouro amoedado, sem contar que liberalmente fornece sustentação e
trabalho a mais de oito mil pessoas sendo, por assim dizer, o celeiro e
a horta dos concelhos de Aveiro, de Ílhavo e ainda da maior parte do
de Vagos.
Ora como o hectare de areal precisa de quinhentos metros cúbicos de
vasa para correctivo, a fim de se tornar proficuamente agricultável e
imaginando que o metro cúbico de lodo
dragado custe 100 reis, preço superior ao máximo obtido para dragagem e
transporte pelo engenheiro de Vergnes acima referido, e mais 50 reis
para a espalhação, cada hectare de terreno, apto para a cultura, ficaria
por 75$000 reis.
Avaliando-se por outro lado em 800$000 reis o hectare de terreno igual ao da Gafanha, o que é para aquele lugar um preço inferior à
realidade, e imaginando que apenas se cultive a quarta parte do areal
já indicado, conforme acima se disse, criar-se-ia um capital de mais de 5:300 contos de reis e, sendo de supor que os cultivadores praticassem no resto
das areias, como fazem na Gafanha, a cultura do pinheiro
/
134 /
marítimo, avaliando o hectare de pinhal em 100$000 reis, preço porque
se não obtém aqui nem aquele que é mal ordenado; dentro de poucos anos,
um terreno que nada produz
terá atingido o valor de 7:554 contos de reis; enquanto que, se
continuar na posse do Estado, que só o pode aplicar à silvicultura, ali
terá o país que despender com certeza mais de mil e quinhentos contos de
reis, que só no fim de vinte anos, pelo menos, compensarão o capital
gasto, que será o triplo daquele que aplicaria nas dragagens aqui
pedidas e que empregado deste modo com a mesma verba presta dois
serviços de primeira ordem: um à agricultura e outro à navegação.
Ainda nesta ria se contam em ilhas 1:711 hectares de terrenos invadidos
pelas águas das marés. Aí poderia fazer-se a cultura em polders como na
Holanda, aplicando nos diques os lodos argilosos da ria. Embora dessa
aplicação resultasse uma perda de terras para a cultura hortense e
cerealífera, atento o perfil a adoptar para esses diques, nem por isso
se
perderia o terreno; por isso que sobre aquelas vedações se
disporiam pastagens, em que se criassem carneiros, como os pré-salés tão
apreciados em França, e vacas como as da Holanda, desenvolvendo-se assim
não só as indústrias dos lacticínios, mas ainda a da engorda e criação
dos gados; e desta maneira, calculando o valor do hectare de polder em
1:500$000 reis acrescentar-se-ia à riqueza pública pelo menos 855 contos
de reis.
A melhor e mais fácil renovação das águas nesta ria ofereceria melhores
condições mezológicas ao peixe, de maneira que os 6:270 hectares de
canais e terrenos alagados, impróprios para a agricultura, mas aplicados à aquicultura, produziriam
anualmente 1:881 toneladas de peixe, o que, ao
preço médio de 150 reis por quilograma, atingiria a soma
de 282:150$000 reis, isto é, mais de duas vezes e meia o que agora
produz a ria em peixe.
Ainda um sem número de indústrias, tais como as fábricas de conservas
alimentícias e de produtos químicos, poderia com vantagem estabelecer-se
aqui, pois que a umas e outras a ria de Aveiro liberalmente forneceria
a matéria prima para os seus trabalhos.
Julgam os abaixo assinados ter justificado amplamente
o pedido que os fez reunir nesta cidade de Aveiro e portanto
Respeitosamente vêm perante Vossa
Majestade solicitar que, em prol dos interesses não só do distrito mas
do país inteiro, Haja por bem ordenar que sem demora se organize na ria
de Aveiro
/
135 / o serviço de dragagens que, a par do desenvolvimento do comércio,
agricultura e indústria da região, conseguirá pôr termo
às más condições higiénicas que já se notam com intensidade nalguns
concelhos limítrofes da ria, criando por meio
do mesmo serviço de dragagens a imensa riqueza acabada de indicar.
Aveiro, 3 de Abril de 1893.
E. R. M.
Presidente,
CASIMIRO BARRETO FERRAZ SACCHETTI
Secretários,
EDMUNDO DE MAGALHÃES MACHADO
JOSÉ MARIA DE MELO DE MATOS
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