Representação de 1893 sobre dragagens, Vol. XIV, pp. 123-135

REPRESENTAÇÃO APROVADA NO COMÍCIO QUE

EM 3 DE ABRIL DE 1893 SE REALIZOU NA CIDADE DE AVEIRO

COM O FIM DE PEDIR O ESTABELECIMENTO DE UM SERVIÇO

DE DRAGAGENS NA RIA DA MESMA CIDADE

 

SENHOR!

EM nome de muitos cidadãos reunidos no dia de hoje num grande comício na cidade de Aveiro no exercício de um direito que lhes faculta a Constituição do Estado e cônscios de que cumprem um dever concorrendo, no modo como procedem, para o bem e o progresso do País, os abaixo assinados, presidente e secretários da mesa do mesmo comício, vêm respeitosamente submeter ao alto critério de Vossa Majestade a exposição do estado deplorável em que se encontra a grande superfície alagada que se chama a Ria de Aveiro.

É uma grande área deste distrito constituída por solo de aluvião recente e quem observar a carta geológica desta parte do País sem esforço concluirá que outrora os 50:150 hectares de terrenos de formação recente foram ocupados por uma grande baía que a acção geológica das correntes marítimas e das vagas pouco e pouco separou do Oceano por meio da extensa linha de dunas que vai desde o sul do ribeiro da Granja até às proximidades do norte do Cabo Mondego. Assim ficou rectificada a linha geral da costa e o aparelho litoral, formado pelo mar, ofereceu um ponto de apoio aos carrejos arrastados pelos rios e torrentes, que derramavam as suas águas nesta anfractuosidade da costa, colmatando e enateirando desta maneira a enorme superfície das águas, / 124 / que nesse tempo mal poderia distinguir-se da imensidade do Atlântico; porque decerto as areias, que mais tarde haviam de constituir as dunas, traíam apenas a sua existência pela arrebentação das vagas. Em suma, o Oceano juntou à superfície do País aquela orla já mencionada de 50:150 hectares; mas tendo que continuar a vazar-se no mar as águas que carrejavam e continuam ainda hoje a transportar os detritos, com que se constitui o solo desta região, começaram então de formar-se os deltas nas fozes dos rios que desaguavam na já aludida baía ou anfractuosidade do litoral e portanto a originarem-se desvios nas trajectórias das correntes, amortecendo-se-lhes as velocidades de vazão e originando-se represamentos de águas, que alagavam os campos marginais. Assim, por cima do tufo calcário que forma o subsolo desta região foram elevando-se gradualmente terrenos, cuja origem recente se justifica ainda pela quase ausência de fósseis.

Não parou contudo aí o trabalho das acções geológicas, pois ainda prossegue, devendo também acrescentar-se que predominando aqui os ventos mareiros, especialmente os do quadrante do noroeste, antes de atingirem a ria, eles encontram a linha das dunas já descrita e portanto assim arremessam muitos milhões de metros cúbicos de areia para os canais e terrenos alagados, que ocupam ainda hoje uma superfície de 6:270 hectares, medindo de norte a sul, desde Ovar até Mira, não menos de 50 quilómetros e servindo vinte e cinco freguesias, entre as quais se conta a da Murtosa que, sem contestação, é a mais populosa deste reino.

A duas causas de assoreamento está pois sujeita a ria de Aveiro. A contínua acção de transporte que determinam os rios e regatos do Carregal, Graça, Luzes, Puxadouros, Senhora de Entre Águas, Doce, Bico, Jardim, Antuã, Vouga, Rio Tinto, Palhal, Ribeiro, Pardelhas, Vilar e outros e o movimento das areias, que ocupam não menos de 29:480 hectares de terreno improdutivo e que, depois de arborizado e aplicado à cultura cerealífera, produziria resultados económicos verdadeiramente prodigiosos, como adiante se verá, sem contar que assim acabaria uma das causas mais sensíveis de empobrecimento desta ria e de tal modo importante que um distintíssimo engenheiro, que por largos anos exerceu aqui o lugar de director das Obras Públicas do distrito, o conselheiro Silvério Augusto Pereira da Silva, escreveu «A perda de fundo da Cale do Ouro, que corre paralela e junto à mesma duna até à barra pode reputar-se o médio por ano em 0,032 metros e a causa principal deste progressivo assoreamento é sem dúvida devida à proximidade de um semelhante areal, sem revestimento algum e do qual estão constantemente arrojando as areias para a ria os ventos reinantes, na direcção favorável a semelhante transporte». / 125 /

Se, a arborização das dunas atenua o assoreamento desta ria, outro tanto não sucede com o enlodamento determinado pelos rios, que nela desaguam. Só as dragagens podem eficazmente lutar contra esse fenómeno, cujos danos os abaixo assinados esperam mais adiante poder evidenciar, cumprindo ainda acrescentar que os lodos tirados da ria e espalhados sobre as areias e dunas do litoral conseguiriam, pelo poder fertilizante que se tem reconhecido naqueles que a lavoura tem empregado, conquistar para a agricultura pelo menos 7:370 hectares de terrenos que, além de serem agora sáfaros e improdutivos, constituem uma causa de ameaça permanente para esta região, sem contar que deixaria assim o Estado de neles gastar em plantações e sementeiras, como está projectado e seria indispensável fazer-se, a importante quantia de quatrocentos e quarenta e dois contos de reis, que, só passado grande lapso de tempo, compensaria o capital empregado; enquanto que, pela distribuição dos lodos sobre as dunas, em menos de dois anos aqueles terrenos estariam não só de posse de particulares, mas por eles cultivados, acrescentando a riqueza pública com a soma colossal de 7:554 contos de reis, como mais adiante se verá. A venda dos já referidos terrenos, depois de recobertos de lodos e portanto aptos para fertilíssima cultura, amplamente compensaria o Estado da despesa a fazer em dragagens na ria.

Demais, Senhor, sem procurar justificar as dragagens com as frases que na Grande Encyclopédie, actualmente em publicação, escreveu o Inspector Geral de Pontes e Calçadas M-C. LÉCHALAS, que afirma que se consegue fazer muito bom trabalho com engenhos que nem sempre representam um grande valor; sem ir buscar às lições do engenheiro LAROCHE na Escola nacional de Pontes e Calçadas de Paris a asserção de que «há unanimidade de opiniões a respeito da necessidade de dragagens, acerca da sua eficácia em todos os casos, relativamente à facilidade que oferecem em seguir-se-lhes os resultados obtidos, em modificá-los quando seja precisa proporcionando-os aos interesses que devem ter-se em vista», sem ainda lembrar que, contando os juros e amortização dos capitais empregados, o inspector Eyriaud de Vergnes conseguiu realizar em Dunquerque dragagens, cujos preços variaram entre 37 e 54 centésimos de franco por metro cúbico ou sejam 67 a 96 reis com um transporte dos produtos da dragagem a cinco quilómetros, e que na foz do Danúbio e rectificação do braço de Soulina se efectuou um desmonte, na maior parte dragado, de 6.535:516 metros cúbicos; não podem os abaixo assinados deixar de valer-se da incontestada autoridade de um dos mais sábios membros do corpo de Engenheiros de Obras Públicas de Portugal e que, nesta corporação, em que não faltam ornamentos de subida ilustração, se / 126 / distingue entre os mais prestimosos, activos, experientes e sabedores, para evidenciar desta arte o pedido respeitoso de um serviço de dragagens para esta ria. De facto, o conselheiro ADOLFO FERREIRA DE LOUREIRO, no seu projecto do melhoramento do Porto de Macau, escreveu o seguinte:

«Hoje as dragagens consideram-se um serviço inerente a todos os portos, quer estas dragagens sejam exteriores para a diminuição das barras, muito especialmente quando são de areia, quer interiormente para a remoção dos depósitos e das vazas.

Não conheço porto algum em que este serviço não esteja hoje montado e conservado com todo o cuidado. Em Inglaterra há portos, que por assim dizer foram abertos só por meio das dragagens. No melhoramento do Clyde a criação do porto de Glasgow foi onde em 1824 se empregaram primeiro as dragas a vapor, e onde o rio e o porto foram todos abertos artificialmente por estas máquinas, que baixavam até 9m,5 de profundidade produzindo cada uma um trabalho de 200 m. c. por hora. Ainda hoje ali trabalham seis grandes dragas, que retiram do fundo um grande volume anual, que se calcula em 1:000:000 m. c.

No Tyne onde desde 1850 até hoje se despenderam mais de 15:000 contos de reis no porto de New Castle, de North e South Shields, e em todos os outros daquele rio, têm sido obtidos notáveis melhoramentos à custa de imensas dragagens, que ainda hoje montam a muito perto de 1.000:000 m. c. por ano.

Passando a França, vê-se nos portos do norte, abertos em uma extensa costa de areia, que o serviço das dragagens está montado com toda a largueza, como em Boulogne, Dunquerque, Calais, etc., enquanto que em todos outros se mantém igual serviço, quer os portos sejam na costa marítima, como o de Cette, quer na foz de um rio, como o de Saint Nazaire e do Havre, quer no interior, como o de Rouen.

Na Holanda, não falando das dragagens do canal de Amsterdam, bastaria lembrar as da foz do Meuze que têm sido e são extraordinárias, sem contar as que foi mister fazer em Rotterdam.

As bocas do Danúbio e a rectificação e melhoramento da de Soulina, exigiram dragagens verdadeiramente excepcionais.

O canal de Suez empregou poderosíssimas máquinas de dragar e ainda hoje tanto no próprio canal, como em Port-Said e na entrada deste porto, trabalham constantemente fortes dragas, que fazem um serviço que se calcula superior a 1.000:000 m. c. por ano. / 127 /

Nas índias inglesas, em Bombaim, draga-se incessantemente o canal que dá acesso à grande Prince's Dock, sendo mister fazê-lo duas vezes no mesmo ano, tão consideráveis são os depósitos.

Em Colombo escava-se na areia o porto, que em grande parte é aberto artificialmente.

Em Calcutá recorre-se às mais poderosas máquinas de dragar e removem-se massas enormes de lodo, tanto para aprofundar o seu porto, como para abrir através do delta do Ganges, ou no interior das terras, largos e profundos canais de navegação e docas.

Nas possessões holandesas de Java as dragagens de vaza e de coral no porto de Batávia e no novo porto de Priok e as de coral e de areia no de Surabaya, são imensas.

No porto de Saigon, no mar da China, acabam os franceses de montar o serviço das dragagens.

Em Hong-Kong vai recorrer-se ao trabalho das dragas para remover alguns depósitos, que principiam a observar-se.

Na América, as dragagens efectuadas, e os aparelhos e máquinas enormes que para esse fim foram construídas, excedem tudo quanto a Europa tem realizado.

Enfim, as dragas constituem hoje um material indispensável nos portos; e o seu serviço reputa-se impreterível

Depois de tão abalizada opinião, aos abaixo assinados resta investigar se a importância desta região justifica o serviço que para ela pede o actual documento.

O valor médio da produção das pescarias computa-se aqui em mais de cem contos de reis e o dos vegetais aquáticos, conhecidos pelo nome de moliços, que se empregam no adubo dos terrenos marginais, é bastante valioso nestes sítios para tentar capitais que construíram uma linha férrea, de via de 1 metro de largura, numa extensão de cerca de 13 quilómetros, desde o Areão até Mira, contando a empresa exploradora aproximar esta linha do caminho de ferro da Beira Alta, junto da estação de Cantanhede, para o que necessitará prolongá-la numa extensão não inferior a 15 quilómetros e ainda a mesma empresa tem estudos adiantados para prolongar a via férrea cerca de uns 14 quilómetros, até ao local denominado a Costa Nova do Prado, junto à barra deste porto, contando-se sem dúvida com o contínuo e de cada vez mais pronunciado assoreamento do braço da ria, que vai até Mira e que permite que mercadorias pesadas, volumosas e de pouco valor se utilizem de um caminho de ferro, quando a poucos metros de distância e paralelamente existe, num desenvolvimento de mais de 25 quilómetros, um canal, em toda a sua extensão navegável ainda há poucos anos e hoje de tal maneira assoreado que junto à Vagueira, a 6 quilómetros / 128 / para o sul da Costa Nova do Prado, só em preia-mar de águas vivas é que passam os barcos com carga razoável e apenas em meia carga nas marés de quadratura.

Não é contudo só em peixes e moliços que se resume o rendimento desta ria; pois que aos 107 contos, que em média rende o peixe, e aos 196 contos de reis de valor mínimo de moliços, há que juntar não menos de 97 contos de reis em média, produzidos pelo sal e ainda uma grande cifra, que é difícil calcular por falta de dados estatísticos, referentes aos juncos, bajunças (Juncus accutus) e outras plantas que se dão nos terrenos alternadamente alagados e secos, e que constituem a matéria prima de fertilizantes e indispensáveis adubos
agrícolas, não só para os concelhos ribeirinhos, como para alguns do interior. Mas os 400 contos que somam as três verbas acabadas de apontar, não limitam o valor que esta ubérrima região seria susceptível de produzir se por acaso não estivesse de há longos anos votada a um tal ostracismo, que o exemplo acima apontado, para caracterizar o assoreamento da ria na Vagueira, se topa em qualquer outro local que se examine.

Assim sucede que no ano passado entraram pela Barra desta cidade 3:013 toneladas de mercadorias que, na sua maior parte, não conseguiram chegar até junto do porto de desembarque, estacionando nas proximidades de S. Jacinto e das Duas Águas, de 4 a 6 quilómetros de Aveiro, os navios, que as transportaram, e aí mesmo se efectuou a carga de 8:337 toneladas de mercadorias que daqui foram exportadas. Ora entre os pontos indicados e Aveiro um barco não pode fazer mais que uma viagem diária, transportando em média uma carga de doze toneladas, e portanto sucedeu que no ano passado o comércio se viu obrigado a pagar mais de um conto de reis de fretes, absolutamente dispensáveis, se as embarcações viessem, como sucedia há menos de vinte anos, até junto dos cais da cidade.

Da mesma forma entre Aveiro e o Porto do Bóco, ao sul do braço da ria que passa por Ílhavo, há uma distância aproximada de 15 quilómetros, que só em marés de sizígias pode percorrer-se com barcos carregados; mas, ainda assim, exige esse curto trajecto duas preia-mares para passar nos baixios que há nas proximidades de Ílhavo e da Vista Alegre, e, como só por excepção há duas preia-mares com luz de dia, gastam-se quarenta e oito horas num barco que transporte mercadorias para a região da Bairrada e dali traga ou os vinhos ou a cal, que se emprega, não só nas construções do distrito, mas ainda no Porto e em muitas terras do norte. Demais, é o porto do Bóco que fornece a argila com que Ovar fabrica a louça de uso comum que se gasta em quase todo o norte, não só na beira-mar, mas ainda para o interior / 129 / [Vol. XlV - N.º 54 - 1948] e esse transporte, que é bastante importante para que diariamente se contem pelo menos dez barcos à descarga no cais de Ovar, exige um lapso de tempo não inferior a noventa e seis horas, quando facilmente se conseguiria efectuá-lo em uma quarta parte daquele tempo e o mesmo sucederia com o trajecto entre Aveiro e aquele porto. Assim realizar-se-ia uma economia de 75 por cento do tempo gasto, o que arrastaria como imediata consequência, uma igual diminuição do preço dos fretes, cumprindo observar que muita cal e quase todo o vinho do concelho de Anadia preferem às embarcações o caminho de ferro ou as estradas ordinárias, evidenciando-se assim, ainda outra vez, o facto deveras singular que mercadorias, que deveriam escolher a via fluvial, preferem outros meios de comunicação, que se tornam mais baratos atento o deplorável estado de assoreamento desta ria e ainda com desproveito quase completo de cerca de 40 contos gastos na estrada distrital n.º 75 das Quintãs por Ouca à estação de Mogofores e estrada distrital n.º 73, via tão importante que, partindo das Quintãs, passando por Ouca e ramificando-se para Amoreira da Gandra, estação de Mogofores, Taboaço, Mesas, Covão do Lobo, Ancas e outras povoações, termina no porto do Bóco, que assim se torna a via natural para a vazão dos produtos do concelho de Anadia.

Ainda com risco de tornar enfadonha esta exposição, não podem os abaixo assinados deixar de levar ao conhecimento de Vossa Majestade que há próximo da freguesia de Canelas umas pedreiras de xisto cuja exploração teve que ser abandonada, pois que o esteiro que junto delas conduz, está de tal maneira assoreado que impossível se torna o tráfego por ele e numa região em que a maior parte das construções são feitas de madeira ou de adobos de cal e areia é digno de reparo o abandono de um material que, embora fosse talvez pouco apreciado noutras regiões, aqui seria vantajosamente empregado.

Do mesmo modo os canais que se denominam Cale da Carlota e Cale da Marta estão de tal maneira abandonados que bom número de barqueiros desta região os não conhece e em pouco tempo o mesmo sucederá com o esteiro de Sama; e contudo o primeiro e o segundo reduzem a metade o tempo a despender no trajecto entre Estarreja, Murtosa e Aveiro e o terceiro é o caminho mais directo entre Aveiro e a Costa de S. Jacinto, tão importante pelas suas pescarias marítimas que aí sustenta desde já não menos de quatro companhas de pesca que dão trabalho a mais de 300 homens, pagando ainda no ano passado a quantia de 3:084$507 reis de imposto de pescado.

No local em que o rio Vouga desagua na ria, no sítio conhecido pelo nome de Boca do Rio Doce, o assoreamento / 130 / é de tal ordem que os barcos, que do norte seguem para Aveiro e os que, carregados de lenha e outros materiais, vêm de Águeda, S. Tiago, Angeja e demais portos fluviais em direcção à mesma cidade, precisam de aguardar maré para poderem seguir pelo canal de Bulhões; pois que, em vazante, correm o perigo de ser arrastados ao longo da Cale do Espinheiro e, ainda quando consigam governar, hão-de caminhar quase dois quilómetros, com a agravante de que, em um percurso relativamente longo, que seria substituído por um canal com trezentos metros o máximo, não podem utilizar-se do vento como motor senão em uma parte da sua trajectória, pois que na outra o terão pela proa.

À saída do porto da Ribeira de Ovar, um dos mais importantes desta região, pois que não menos de cinquenta barcos o demandam diariamente, fazendo aí transacções que sobem a muitos contos de reis, no sítio do Cabo de Ovar os enlodamentos são de tal ordem que as fragatas construídas no cais da Ribeira e que daí são enviadas para o Tejo, onde se conhecem pelo nome de Varinas ou Ovarinas, só em marés de águas vivas conseguem passar quase vazias sobre o baixio, completando junto de S. Jacinto a carga de madeira, com que se fazem ao mar, em demanda de todos os portos compreendidos entre Peniche, Setúbal e muito nomeadamente o de Lisboa, onde ficam fazendo serviço.

Os abaixo assinados, respeitosamente entendem dever observar que a madeira, com que se carregam aquelas embarcações, provém quase toda das proximidades do local em que elas são construídas e portanto tem que pagar-se o transporte em separado da fragata e da carga que lhe é destinada, por isso que a falta de fundo da ria não consente que se proceda de um modo mais económico.

Ainda há pouco os abaixo assinados se referiram a um lugar desta região, conhecido pelo nome de Costa Nova do Prado, que fica a 3:350 metros para o sul da barra de Aveiro. Ali se encontram não menos de cinco companhas de pesca marítima e uma praia de banhos com mais de duzentas casas. Apesar, porém, da excelência da localidade, em tão favoráveis condições de beleza, que ali construiu uma casa José Estêvão Coelho de Magalhães, o maior tribuno do constitucionalismo português e de quem esta terra se envaidece de ser a pátria apesar de todas as vantagens da posição privilegiada da Costa Nova, pequeno é ali o desenvolvimento das construções, porque o esteiro do Oudinot, que comunica com segurança Aveiro com aquela praia, não oferece profundidade bastante para que por ele se transite em toda a maré.

Do mesmo modo o esteiro do Mourão está quase abandonado e contudo é ele que mais facilmente põe a ria em contacto com o apeadeiro de Avanca, que a Companhia Real / 131 / dos Caminhos de Ferro há poucos anos construiu para vantagem própria e comodidade dos povos de Pardilhó, Bunheiro, Avanca e outros, em cujas freguesias o censo de 1878 acusava uma população de 10:498 habitantes, devendo notar-se que o concelho a que pertencem estas freguesias, segundo o anuário estatístico de 1889, publicado no ano passado, mostra que o total dos nascimentos foi de 1:152 almas, isto é, mais 37 do que em 1888, e mais 77 do que em 1887, mais 4 do que em 1886. Com relação aos casamentos ali houve no dito ano de 1889 mais 10 do que no anterior, mais 1 do que em 1887 e mais 24 do que em 1886; e em 1889 deram-se 629 óbitos, isto é, menos 65 que no ano precedente, menos 34 do que em 1887 e menos 519 do que em 1886, sendo porém este, após os concelhos de Oliveira de Azeméis, Feira e Anadia, aquele que neste distrito deu maior contingente para a emigração, que continua crescendo; pois que já contou em 1889 mais 23 indivíduos do que em 1888, mais 38 do que em 1887 e mais 62 do que em 1886.

O esteiro de Estarreja também merece especial menção, pois que a sua foz, junto do Laranja, está de tal modo assoreada, em resultado dos carrejos do rio Antuã, que os barcos por ali passam com dificuldade extrema em preia-mar e contudo é este esteiro o que mais próximo se encontra da linha do caminho de ferro e não pode tirar desta circunstância tão favorável o partido que devera esperar-se; porque sendo, em resultado das obras que ali fez o serviço hidráulico, praticável em todo o seu percurso, apenas na foz é que exige que se espere pelas preia-mares, tornando-se já difícil o trânsito nas de quadratura.

O esteiro de Esgueira também está assoreadíssimo na sua maior parte e os trabalhos que o governo de Vossa Majestade ali mandou executar ultimamente a custo remedeiam numa via fluvial que merece especial atenção, por isso que o tráfego que por ali se faz anualmente não é inferior à quantia de 6:0008000 reis.

Embora pareça longa em demasia esta exposição do estado deplorável em que se encontra esta ria, não podem os abaixo assinados deixar, pelo menos, de enumerar entre dezenas de esteiros, todos mais ou menos inavegáveis: os do Gramato e Ceboleira, S. Roque, Dobadoura, S. Gonçalo, Fonte Nova, Pega, Afogada, S. Tiago, Corim, S. Pedro, Ourô, Sá, Redúlia, Maria Dias, Parda, Doutores, Mouroas, Castanhos, Cascais, Leivas, Moinho, Enguieira, Caixinhas, Romanos, Circea, Pinta, Moleira, Judenga, Cavalos, Novo, Teixugueiras, Aldeia, Mancão, Bulhas, Póvoa, Veiros, Vacas, Carregal, Cabeço das Pedras, Regateira, Palhas e Ilha, em que o enlodamento avulta de tal maneira que muitas marinhas dificilmente fabricam o sal, pela falta do acesso das águas salgadas e tão grande dificuldade / 152 / experimentam na remoção dele para o mercado que os proprietários se vêem obrigados a vendê-lo por quantidade muito sensivelmente inferior à real, por isso que só assim tentam o comprador.

Em suma, Senhor, por esta exposição se conclui sem custo que a ria de Aveiro não só se encontra num estado lastimoso de navegabilidade, com tão pronunciadas tendências a aumentar numa progressão assustadora, que não é exagero acrescentar-se que num futuro muito próximo ficará transformada em praia e portanto completamente inútil para o único fim de que é susceptível de utilização, mas também a este mal vem juntar-se iminente perigo para a saúde pública.

Com efeito, o represamento das águas já tornou endémicas em Vagos as febres intermitentes, e aí ocorreram em 1888 mais 16 óbitos do que em 1887 e em 1889 mais 5 do que em 1887 também. Nos campos de Estarreja e Veiros fazem aquelas febres muitas vítimas, sendo para lamentar que as estatísticas não designem especialmente aquela causa de mortalidade para se justificar que, sendo Estarreja um dos concelhos mais populosos deste distrito, possui contudo freguesias como Avanca que, pelo censo de 1864 contava 4:074 almas e em 1878 apenas possuía 3:921 e veiros que, em 1864 tinha 2:217 habitantes e em 1878 tão somente 2:290. Na primeira portanto, em 14 anos, a diferença para menos na população foi de 153 almas e na segunda, durante o mesmo lapso de tempo, o crescimento anual da população foi apenas de 5 pessoas. Na Marinha de Ovar não raro prostram as intermitentes aqueles que ali vivem e os tifos ali vitimaram no ano passado muitas pessoas, cumprindo notar que nesse concelho é constante o aumento de mortalidade por isso que em 1889 morreram mais 141 pessoas que em 1888 e mais 71 do que em 1887. O mesmo sucede no concelho de Ílhavo, em que houve em 1889 mais 16 óbitos do que no ano anterior, mais 45 do que em 1887 e mais 19 do que em 1886.

Apesar de se observar no concelho de Aveiro um decrescimento na mortalidade para os mesmos anos por isso que em 1889 ocorreram menos 61 defunções do que em 1888 e menos 2 do que em 1887, embora mais 23 do que em 1886, convém, ainda, por meio de dragagens, arredar do centro da cidade uma causa de insalubridade determinada pelo canal que separa as duas freguesias da Vera-Cruz e de Nossa Senhora da Glória. É nesse canal, que atravessa a cidade, que descarregam os colectores dela e ainda aí se vazam muitos canos de esgoto das casas que marginam o referido canal, pejando-o assim com imundícies que, em quase todas as baixas-marés e especialmente nas de Agosto, ficam a descoberto e sob a incidência directa dos raios solares, com grande perigo para a saúde pública e tanto maior actualmente quanto é para / 133 / supor que a epidemia do cólera asiático parece não só não abandonar a Europa mas até continuar as suas devastações em todos os países desta parte do mundo.

Não prosseguiriam os abaixo assinados na exposição dos danos que para esta região determina o assoreamento da ria, se não entendessem que calar os benefícios de um serviço de dragagens era acção indigna de povos que se comprazem em afirmar que sempre deram provas de civismo e portanto não devem, nesta hora em que o País carece de lançar mão de todos os recursos, que lhe oferece o seu quase inexplorado solo, deixar de ponderar diante de Vossa Majestade o quanto o bem de Portugal exige os trabalhos de dragagens aqui pedidos.

Há, como acima se disse, neste distrito e ainda no de Coimbra, uma vasta superfície de 29:480 hectares de areais e mèdões que agora nada produzem e que em menos de dois anos seriam susceptíveis de cultura se sobre eles se espalhassem os lodos da ria, tão fertilizantes como os moliços, que já transformaram em terras aráveis uma orla de trinta e três quilómetros de areias conquistando assim para a cultura cerealífera 1:625 hectares de terrenos improdutivos há cerca de meio século. Este trabalho colossal efectuado por beneméritos camponeses, quase na sua totalidade analfabetos e desajudados dos incentivos a que teriam direito incontestado, se não fosse quase desconhecido o seu rude, embora profícuo, labutar; pois que ainda muitas pessoas se contam neste distrito que viram a Gafanha árida e despida de vegetação, como a maior parte dos areais do litoral, este trabalho, Senhor, foi tão proveitoso que é a Gafanha talvez um dos lugares deste distrito em que haja mais ouro amoedado, sem contar que liberalmente fornece sustentação e trabalho a mais de oito mil pessoas sendo, por assim dizer, o celeiro e a horta dos concelhos de Aveiro, de Ílhavo e ainda da maior parte do de Vagos.

Ora como o hectare de areal precisa de quinhentos metros cúbicos de vasa para correctivo, a fim de se tornar proficuamente agricultável e imaginando que o metro cúbico de lodo dragado custe 100 reis, preço superior ao máximo obtido para dragagem e transporte pelo engenheiro de Vergnes acima referido, e mais 50 reis para a espalhação, cada hectare de terreno, apto para a cultura, ficaria por 75$000 reis.

Avaliando-se por outro lado em 800$000 reis o hectare de terreno igual ao da Gafanha, o que é para aquele lugar um preço inferior à realidade, e imaginando que apenas se cultive a quarta parte do areal já indicado, conforme acima se disse, criar-se-ia um capital de mais de 5:300 contos de reis e, sendo de supor que os cultivadores praticassem no resto das areias, como fazem na Gafanha, a cultura do pinheiro / 134 / marítimo, avaliando o hectare de pinhal em 100$000 reis, preço porque se não obtém aqui nem aquele que é mal ordenado; dentro de poucos anos, um terreno que nada produz terá atingido o valor de 7:554 contos de reis; enquanto que, se continuar na posse do Estado, que só o pode aplicar à silvicultura, ali terá o país que despender com certeza mais de mil e quinhentos contos de reis, que só no fim de vinte anos, pelo menos, compensarão o capital gasto, que será o triplo daquele que aplicaria nas dragagens aqui pedidas e que empregado deste modo com a mesma verba presta dois serviços de primeira ordem: um à agricultura e outro à navegação.

Ainda nesta ria se contam em ilhas 1:711 hectares de terrenos invadidos pelas águas das marés. Aí poderia fazer-se a cultura em polders como na Holanda, aplicando nos diques os lodos argilosos da ria. Embora dessa aplicação resultasse uma perda de terras para a cultura hortense e cerealífera, atento o perfil a adoptar para esses diques, nem por isso se perderia o terreno; por isso que sobre aquelas vedações se disporiam pastagens, em que se criassem carneiros, como os pré-salés tão apreciados em França, e vacas como as da Holanda, desenvolvendo-se assim não só as indústrias dos lacticínios, mas ainda a da engorda e criação dos gados; e desta maneira, calculando o valor do hectare de polder em 1:500$000 reis acrescentar-se-ia à riqueza pública pelo menos 855 contos de reis.

A melhor e mais fácil renovação das águas nesta ria ofereceria melhores condições mezológicas ao peixe, de maneira que os 6:270 hectares de canais e terrenos alagados, impróprios para a agricultura, mas aplicados à aquicultura, produziriam anualmente 1:881 toneladas de peixe, o que, ao preço médio de 150 reis por quilograma, atingiria a soma de 282:150$000 reis, isto é, mais de duas vezes e meia o que agora produz a ria em peixe.

Ainda um sem número de indústrias, tais como as fábricas de conservas alimentícias e de produtos químicos, poderia com vantagem estabelecer-se aqui, pois que a umas e outras a ria de Aveiro liberalmente forneceria a matéria prima para os seus trabalhos.

Julgam os abaixo assinados ter justificado amplamente o pedido que os fez reunir nesta cidade de Aveiro e portanto

Respeitosamente vêm perante Vossa Majestade solicitar que, em prol dos interesses não só do distrito mas do país inteiro, Haja por bem ordenar que sem demora se organize na ria de Aveiro / 135 / o serviço de dragagens que, a par do desenvolvimento do comércio, agricultura e indústria da região, conseguirá pôr termo às más condições higiénicas que já se notam com intensidade nalguns concelhos limítrofes da ria, criando por meio do mesmo serviço de dragagens a imensa riqueza acabada de indicar.


Aveiro, 3 de Abril de 1893.

E. R. M.

Presidente,

CASIMIRO BARRETO FERRAZ SACCHETTI

Secretários,
EDMUNDO DE MAGALHÃES MACHADO

JOSÉ MARIA DE MELO DE MATOS

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