J. J. Ferreira Baptista, De Macinhata do Vouga a Lisboa em 1848, Vol. XIV, pp. 108-118

MEMORIAS D'HUMA VIAGEM

DE MACINHATA DO VOUGA A LISBOA

E VOLTA, NO ANNO DE 1848

PARECE-NOS bastante interessante a descrição duma viagem feita a Lisboa, há um século, não só pelas dificuldades, morosidade, perigos e canseiras que ocasionava naquela época, mas também pelo seu, relativamente, minucioso relato, por vezes bastante elucidativo, sobretudo se o compararmos com a descrição de viagens recentemente feitas a países estrangeiros e que alguns jornais diários têm pretendido descrever.

O seu descritivo deixa transparecer uma cultura que não era vulgar naqueles velhos tempos, o que demonstra que a biblioteca que o seu autor possuía não tinha apenas efeitos decorativos, mas sim utilidade prática, e que a sua convivência com pessoas cultas e ilustradas como eram o Dr. Manuel da Fonseca Coelho(1); Dr. Manuel Pereira da Graça, médico muito distinto e a quem faremos referência em outra oportunidade; os frades do convento de Santo António de Serém; o primeiro visconde da Borralha − Francisco Caldeira Pinto Leitão de Albuquerque, etc., etc. − juntava o útil ao agradável.

*

«Parti da minha casa(2) em 20 de Agosto de 1848 em direcçaõ à Borralha(3) e dahi p.ª ValIe de Estevaõ e no / 109 / dia 22 parti p.ª Coimbra com o Rev.do Prior de Avellãs de Cima, sua mana Maria Joanna, e nos fomos encontrar na estrada no sitio da Ponte da pedra defronte da Graciosa com o Rev.do Prior de Aguada de Cima e com o Ricardo, indo todos até Coimbra, e ahi se demorou esta companhia jantando todos, depois partiraõ aquelles p.ª o S. da Serra, ficando eu em casa do meo A.º o S.r J.e Jacintho, esperando pelos companheiros da viagem Rev.do Prior de Sôsa, e Antonio Augusto, chegando logo aquelle, dando parte da chegada d'este no dia seg.te ao meio dia.

Tratamos de ajustar logo cavalgaduras, ja faladas pelo S.rJ.º Jacintho, e justas cada huma por 7200, com a obrigaçaõ do arrieiro nos dar de comer. Logo tratamos de pafsear; e ver os romeiros do S. da Serra, recolhendo-nos á hospedaria da Portagem, onde vieraõ ter os A.os Priores com sua mana e Ricardo onde este encontrou sua aflita mana Delfina já melhorada, pafseamos todos até á feira de S.ta Clara, feira de S. Bartholomeo, e até á Universi.de  ... recolhidos todos á hospedaria, tendo visto jogar o bilhar, ceamos todos: O A.º Reitor de Sôsa e eu fomos generosame.te tratados por aquelles Senhores, naõ querendo que nós pagafsemos p.ª a cêa.

Despedidos nós à noite fomos p.ª o nofso quarto, e no dia seg.te 24 partimos ás 4 oras da manhã por S.ta Clara pafsamos por Sernache e fornos almoçar a Condeixa.


CONDEIXA

Tem á intrada pela esquerda agua com a figura chamada o Calhedro (?) e deste lado tem duas insignes arvores chamadas ogreiros (?): mais adeante está a casa do Ramos, boa casa e quinta, tem mais algumas casas boas e outras queimadas pelos Franceses, como as que saõ hoje do Antonio Maximo de Vagos, ahi encontramos o Bispo de Vizeu vindo de Lisboa, e que se demorou em casa de Jeronimo Dias (?) antigos amigos.


REDINHA

He bem boa terra com abundancia de agua á entrada.


POMBAL

Nesta Villa jantamos; tem hum castello á esquerda em hum alto, tem hum convento á direita e á esquerda está a capella da S.ª do Cardal(a) feita por D. Maria Trugaça e á / 110 / esquerda está o tal forno que cosia o bolo de 20 alqueires de trigo depois de ter queimado tres carros de lenha e este bolo dividia a misericordia pelos moradores da Villa, esta romaria era notavel por entrar no forno hum homem a compor o bolo estando o forno quente e não se queimava do q. faz mensaõ o Arquivo... junto ao castello está huma capella com duas torres: a saida de Pombal he bonita pelos arvoredos que tem, bem semelhantes aos da estrada nova de Aveiro p.ª Arada, e no fim dos arvoredos está á esquerda a fonte, onde o grande Marquez(b) conversava com seus A.os (amigos): neste dia fui ficar aos Machados pequena povoaçaõ antes de Leiria, donde sai no dia seg.te, pelas 2 oras da manhaã.


LEIRIA

Tem hum castello á direita, e na entrada tem grandes arvoredos com pafseio pelo meio á direita da estrada, com a sua Sé Episcopal bem bonita; foi fundada sobre as ruinas da antiga Callipo perto do rio Liz, foi tomada aos Mouros pelo fio da espada em 1125.


BATALHA

Esta grande obra, que não tem madeira, nem talha tem um prospecto admiravel á entrada onde se veem os 12 Apostolos e o P.e Eterno em sima com muitos Anjos... apresentando huma vista encantadora: Tem boa Igreja com a capella do instituidor D. Joaõ 1.º á direita com os tumulos de D. Joaõ 1.º, D. Duarte, D, Affonso 5.º e outros: ao simo desta Igreja está a casa q. fôra destinada para jazigo dos Reis onde se acham lavores em pedra com a maior perfeiçaõ, e pena foi não se acabar esta linda obra, andei por sima do convento vendo e observando tudo: parte d'este edificio foi queimado pelos Franceses: na sacristia vi dois capacêtes de ferro, e a espada com q. D. Joaõ 1.º deo a grande batalha de Aljubarrota contra os Hespanhoes em 14 de Agosto de 1385 no mesmo anno, em q, tinha sido aclamado em 6 de Abril; e em egual dia a batalha morreo em 1423: junto desta grande obra está a capella em q. D. Joaõ 1.º fez voto de alli fazer aquella obra, que depois foi feita pelo mestre Matheus q. fez grandes doações ao m.mo Convento de predios delle unidos. / 111 /

Nesta obra brilhou o primor da arte he digna de se ver, pois q. nella tudo admira, como são vidros q. apresentaõ diversas e encantadoras vistas, e a entrada da porta principal.

Deixada a estrada real voltei p.ª a direita em direção a Aljubarrota onde vi em huma casa á direita pintada a pá com que a tal padeira(6) matou 7 Hespanhoes por ocasião da Batalha de Aljubarrota em 24 de Agosto de 1385: nesta terra nos cançou hum cavallo, e desta terra até Alcobaça he huma descida de pefsima calçada.


ALCOBAÇA

Chegamos a esta Villa ao meio dia, onde jantamos depois de ter visto o convento cabeça da ordem de S. Bernardo, tendo em sima e em frente do convento o seo fundador D. Affonso Henriques sendo e elle m.mo o p.ro que com a enxada na maõ abrio alicerces, e levou hum sesto de terra ás costas em 2 de Fev.º de 1148. Tem duas torres, grande Igreja com os tumulos de D. Affonso 2.º e 3.º, D. Pedro 1.º, D. Ignez sua m.er, D. Joaõ 2.º e outros: vi o altar da morte de S. Bernardo, o do S. dos Pafsos e muitos outros e me mostraram o altar em q. difse a p.ª mifsa o meo A.º Fr. Luis Pinto de saudosa memoria vi a casa dos Reis de Portugal até D. José, vi a coroaçaõ de D. Affonso Henriques pelo Papa e por S. Bernardo; neste real mosteiro viveo e foi Abbade o Cardeal D. Henrique que duas veses governou Portugal como regente, e depois foi Rei por morte de D. Sebastiaõ em 4 de Agosto de 1578; dista esta Villa de Lisboa 18 leguas: parte deste mosteiro foi queimado pelos Francezes, porem os frades reedificaraõ munto; mas em 1832 os constitucionaes com alguns estrangeiros acabáraõ de destruir: ha hum grande largo em frente da Igreja taõbem hum castello: tudo aqui era grandesa mas «campus ubi Troya fui!» a Villa he boa, ali se faz huma feira a 25, os habitantes lamentaõ a falta do convento, porq. d'ali eraõ sucorridos.

Esta Villa he atravefsada por um pequeno rio munto proveitosà á mesma Villa.

Partimos de Alcobaça ás 4 horas da tarde andando duas leguas por uma ribeira, que julguei naõ ter fim; a noite ao simo d'ella sem eu nem os companheiros sabermos a estrada d'aqui p.ª as Caldas, onde chegamos por 10 oras da noite com alguns sustos e receio de ladrões. / 111/

CALDAS DA RAINHA

Boa Villa distante d Lisboa = 14 leguas com grande largo e praça que he todos os dias abundante: tem hum banho respeitável e afseado d homens e mulheres = á entrada está hum repucho deitando agua sulfurosa por = 4 pequenas torneiras onde estão copos d varias medidas para serem distribuidos pelos doentes, e onde estava hum homem administrando isto; em frente do banho está um lindo pafseio com arvores p.ª pafsearem as aguas, ao pé do banho está o hospital, e a casa da guarda militar: o banho dos homens he m.to lindo, nasce dentro d'elle agua quente, tem duas bombas por onde se tira agua onde estavaõ dois homens promptos a tirar agua p.ª os doentes aproximassem a parte lesa: no banho estariaõ − 12 homêns, entre estes num celebre militar barbacêna. O banho tem afsentos de pedra, onde estavam os doentes afsentados, e d'ahi recolhiaõ p.ª huma casa vestirem-se, isto com todo o afseio. Tem boas hospedarias, mas caras, porq. por uma fraca cêa, mas bom almoço custou 1800.


OBIDOS

Tem dois castellos, he toda rodeada de muralhas munto altas, compridas, á entrada á direita tem huma linda capella chamada a S.ra da Pedra, e no fim tem um aqueduto de muntos arcos; de Obidos p.ª deante fracas terras, tudo saõ charnécas sem comodidades algumas até Torres.


TORRES VEDRAS

Esta Villa dista de Lisboa 7 leguas, perto d'esta está o convento do Varatojo q. não vi / tem num castello sito em num cabeço mui alto, que vi por dentro e por fora, e que não tem senaõ paredes; esta Villa tem = 4 freguesias, tem numa fonte pela p.te do Nascente feita no tempo dos Romanos com hum grande tanque, tem campos em num baixo com 4 entradas todas por pontes, ou pontilhões; observei como foi o combate dado pelo Duque de Saldanha em 22 de Dezembro de 1846 entrando pela m.ma estrada por onde elle deo principio á sua acçaõ.


MAFRA

He numa Villa munto notável pelo grande edificio q tem a que D. Joaõ 5.º (7) deo o seu principio em 16 de Novembro / 113 / [Vol. XIV - N.º 54 - 1948] de 1717, grande e sumptuosa obra distante de Lisboa − 6 leguas com 5200 portas e janellas: na sua fundaçaõ trabalharaõ dia diariam.te por muitos anos 14000 pefsoas e a despesa semanal era de − 15000000 r.s.

Tem uma larga e comprida escada na frente da Igreja com hum grande largo, tem duas torres, e a cada huma vi pela parte d fora − 11 sinos; tem dois grandes torriões nas pontas; as torres tem conductores p.ª os raios. À entrada da Igreja ha um cumprido corredor em travéz, onde estaõ munt.os e grandes Santos feitos d marmore. A Igreja está no meio da grande obra, tem seis capellas de órgaõs.

Tem hum grande zimbório em munta altura ao lado esquerdo da Igreja, que dá m.ta vista a todo o edificio, contendo em roda huma grade de ferro; tem muntas tribunas Reaes: ahi ouvimos mifsa do P.e Marcos capellão e Esmoler mor de S. Magestade, q. ahi encontrei e a EI-Rei com 3 filhos os mais velhos, o Duque de Saldanha vestido de casaca preta, a Rainha estava de vestido branco de manga curta e o Rei estava de casaco: ouvi boa musica e os musicos estavam vestidos no maior afseio tocando á mifsa, onde estava munta gente além do regimento−7 e alguma cavalaria e a companhia da familia Real; a Rainha he bastantemente gorda, naõ porem o marido, que he magro e alto, bem como os filhos.

Na entrada da Igreja estão columnas de munta altura e grofsura, q. admiraõ como fofsem p.ª ali conduzidas e levantadas.

Esta Villa não he má, mas o terreno he árido e seco, a quinta he toda tapada d muro contando-3 leguas em redondo, a qual se avista em grande distancia indo d Torres, abrange
esta tapada grandes montes e valles, e junto do muro andei mais de legua p.ª a chegar a Mafra, onde chegamos por 8 horas da manhãa no dia 27 de Agosto; neste dia pelas 3 horas da tarde pegou o fogo nos palheiros e cavalhariças Reais q. debrazou tudo com grande estrago, causando grande barulho, e fazendo tirar todo o trem e carruagens riaes a toda a preça p.ª o meio daquelle grande terreiro, não se queimando bestas nem gente; foi hum espetacolo horroroso, tocando sinos e cornetas p.ª acudirem o fogo, o m.mo. Rei andava por sima dos telhados a dar providencias.

Parti d'esta Villa depois de 4 horas da tarde por boa estrada toda de calçáda, indo ficar ao lugar do Sabugo, onde dormi com os companheiros = «tabualitos» por estar tudo cheio de cavalaria n'esta terra.

No seg.te dia partimos cêdo pafsando por Béllas, já terra melhor com huma linda quinta de m.to arvoredo à direita que he do Marquez do m.mo nome, e continuando entramos em Bemfica q. parecia já cidade ficando á esquerda a quinta / 114 / das Larangeiras, que depois vimos, e fomos entrar em Lisboa(8) pelas portas de S. Sebastião indo-se recolher as bestas junto a S. Vicente de Fora e os viajantes a huma hospedaria no cáis d Santarem.

Recolhi a huma hospedaria no cáes de Santarem perto do palacio do Duque da Terceira e junto ao Terreiro do trigo, linda hospedaria, porq. d'ella se viaõ todas as embarcaçoes que estavaõ no Tejo e por elle pafsavaõ como os vapores... a agua lhe banhava as paredes, e ahi estive 4 dias; depois a instancias de A.os pafsamos p.ª a rua dos Fanqueiros para o Hotel União Comercial de António Joaquim Crujo onde estive até ao dia 7 de 7.bro munto bem tratado a = 360 por dia cama e mesa.

No p.ro dia depois d dar descanço fomos ver a estatua equestre de El Rei D. José (nasceu a 6 de Maio de 1714, morreo em 1777), feita por Machado de Castro erécta em 6 (?) de Junho de 1775 na praça do comercio, a que hoje se chama a memoria no Terreiro do Paço, a casa da Alfandega grande, menisterios...

Fui com os meus companheiros ver Belém; vimos o Palacio Real com grande afseio por dentro, bellos espelhos, lindo jardim em frente do Palacio, grande quinta com arvoredos, bons pafseios, com varias figuras, onde vi algumas aves como a aguia...

Depois fomos ver ahi perto o convento dos Jeronimos, coisa p.ª admirar tanto a Igreja como o estabelecim.to que tem da educaçaõ da mocid.e (hoje casa Pia) tem muntos meninos todos estavam vestidos de azul claro e da m.ma côr são as camas muntas em grandes corredores, tem grande refeitorio, em huma sala estavaõ os Reis de Portugal em quadros e em hum só á entrada da porta estava D. Pedro e a rainha filha. Este convento foi feito por D. Manuel.

Na entrada do convento estava hum homem q. tinha dois livros, hlim em q. afsinavam todos os que ali entravaõ e outro era p.ª lhe escrever as reflecções q. alguem apontafse em utilidade deste estabelecim.to, que munto me agradou.

Vi o Palacio da Ajuda grande obra, mas incompleta, tem huma grande escada de = 180 degraus, que parece um poço, m.to direita; tem grandes salas, m.tos paineis, onde ha hum com D. Joaõ 6.º e toda a Familia Real vindo do Brazil; ha outro painel com D. Joaõ 4.º sendo aclamado pela Nobresa, e povo e os Hespanhoes fugindo deixando Portugal: tem / 115 / mais paineis e figuras abandonados e pelos cantos com pouco arranjo: este he o maior palacio que há em Portugal.

Perto d'este está o Palacio das Necessidades de cor avermelhada, mas lindo na sua frente.


ARCOS DAS AGUAS LIVRES

Teve o seo principio em 1729 pelo mestre M.el Maia e findou em 1748. Vi esta grande obra, na mãi da agua tem hum grande tanque alto com munta agua e olhando-se p.ª o fundo faz respeito: a agua desce por huma cascata em grande altura. Este tanque he coberto de Abobada, tem por sima hum eirado ou terraço d'onde tem grande e boa vista: seguem-se os arcos em grande distancia, fui por dentro d'elles até o sitio da maior altura, e no mais alto arco que tem 214 pés de altura, bebi agua em sima d'elle e os meus companheiros, e d'aqui m.to bem se avistava Bellas e seos laranjais; depois retrocedemos e saimos fóra e pafsamos por baixo do maior arco, indo d'ahi ver o semiterio dos Praseres em hum grande largo de monte com muntos mausolêos ou tumulos com disticos, onde estavaõ a faser com grande extensaõ o do Duque de Palmela e ha ali muntos cyprestes.

O aqueducto das aguas he a melhor e mais proveitosa obra de Lisboa, q D. Joaõ 5.º mandou fazer.

Vi o convento de S. Vicente de Fora, donde ha grande vista sobre a ci.de e Tejo, ahi ouvi mifsa do Patriarca Guilherme 1.º em 3 de 7.bro, vimos a Igreja com duas torres, a capella do Sant.mo tem humas portas de ferro m.to lindas, tem os tumulos Reaes ao simo da Igreja, o claustro he grande e as paredes vestidas de axulejos; foi fundado este convento por D. Affonso Henriques em 21 de Novembro de 1147; perto d'este convento está a sé, erecta em Patriarcal em 24 de Dezembro de 1711, e teve o seo p.ro cardial de jure a D. Thomaz de Alm.da em 1737.

Hum pouco mais abaixo está a capella de S.to Antonio à direita onde elle nasceo em 15 de Agosto de 1195.

Vi a historia natural, e livraria, onde vi hum peixe saido em Vianna que teria mais de 20 palmos de comprido e a grofsura seria de 10.

Vi o matadouro dos bois, e casa de arrobaçaõ, vi matar bois a portugueza, e à Judia, ou Marroquina em sitio separado por homem d'elles com faca sem bico, e saõ as reses deguladas, tem hum grande largo rodeado de alpendres com todos os arranjos precisos, o matador das reses tinge a maõ esquerda no sangue das m.mas isto he o matador Mouro.

Tem hoje novo matadouro.

Vi o Pala cio do Marquez de Vianna ao Rato m.to afseado e rico com boas pinturas, vi o fardam.to rico e ordinario dos / 116 / criados do trono, e vi a capella rica e afseada toda adamascada, onde elle manda fazer semana Santa e ahi vi muntos pafsaros.

Vi o Jardim de D. Pedro em huma altura immensa donde se vê o Pafseio Publico, e fica sobre o Palacio do Marquez de Castellomelhor: taõbem vi e estive dentro do Palacio do Marquez de Francos.

Vi o Theatro de D. Maria 1.ª ao Rocio coberto de asfalto com duas entradas; he munto lindo, e de bom gosto, ahi fui no dia 29 ver representar a peça = «O Alcaide de Faro»(9) boa peça com canto e dança e q foi repetida − 15 vezes sempre com aplauso.

Taõbem vi o grande Theatro de S. Carlos, e andei por sima d'elle, e taõbem vi a linda, e rica Igreja de S. Rocke.

Vi a mesquita de hum Mouro ou Judêo sacerdote com humas grandes suices brancas, tinha a Biblia fechada, trez alampadas, e lume em hum copo g.re, e tinha outro apagado tinha no meio da casa hum altar coberto de damasco vermelho.

Vi o Hospital de S. José (fundada por D. Joaõ 2.º em 1477) cosinha, jardim, casas de aulas, e operações, vi esqueletos, varias abortos com 4 pés, 4 braços, duas cabeças: vi a caveira do Mattos Lobo, do Diogo Alves e seos socios.

Vi e pafsiei no Pafseio Publico, tem muitas arvores, e todo gradeado de ferro em roda.

Vi a praça da Figueira já com bonitas arvores, tinha m.tas frutas, mas caras, pecegos não m.to bons a 30 r.s cada hum, grandes meloes e melancias.

Vi o Castello de S. Jorge m.to afseado e com arvores, as peças estavaõ em roda da muralha e d'ahi ha grande vista sobre a Cid.e Tejo, e tem lindas ruas com calçada de diversas côres.

Fui a Bemfica ver a quinta das Laranjeiras em 3 de 7.bro, onde vi o leaõ, e leôa, a onça, o lôvo marinho... duas segonhas, com pernas m.to altas, dois patos g.res e outras áves como a aguia..., vi 3 porcos hum branco, outro preto, e hum mais pequenito taõbem preto: tem hum laberinto onde está huma especie de guardaçol com muntos carreiros por onde a gente se perde, tem ahi huma boa casa, e junto a ella hum theatro, e fundições de gaz, e ahi um tanque e ha mais hum lago com huma ponte por sima, e tem hum bóte no lago: tem muntas arvores, he arido, e toda a quinta morada com grade de ferro em sima do muro, nenhuma arvore de fruto tinha, nem horta alguma, tinha hum lindo portão de ferro na entrada com duas especies de torriões. / 117 /

Ahi perto está o Palacio em que reside a Sr.ra D. IsabeI Maria.

Fui ver o meo patricio Desembargador Bastos (antigo Intendente G. da Policia) que morava a S.ta Isabel, e indo p.ª lá pafsei junto da casa do Conde das Antas, e no m.mo dia vi a casa dos Giraldes na quinta dos Cyprestes; taõbem fui a S. Bento onde se fazem as cortes.

Lisboa se chamou Elifsoa por ser fundada por Elisa neto de Noé, foi amplificada por Ulifses, e por isso se chamou Olissipo, emquanto Elisea he 220 anos mais antiga q. Niniv capital dos Afsirios, emquanto Olyssipo he 425 annos mais antiga que Roma.

Fui a AldeagalIega do Riba Tejo por agua − 3 leguas, − estive em casa de Ant.º dos S.tos CalIado, onde vi 18 pipas de azeite em 6 pótes de barro, comprou o anno passado 6000 porcos, teve inumeros porcos não falIando em pás e presuntos − 4000 arrobas de carne, e ainda então q.do lá estive em 4 de 7.bro tinha 2678 arrobas, e tinha panellas de unto de pingue − 608 arrobas: mataõ-se ordinariam.te em Aldea galIega por dia − 600 porcos no tempo das matanças: havia lá outro negociante que tinha feito − 5.000 arrobas de carne.

Esta Villa he boa m.to semelhante a Ilhavo, tem hum lindo cáes, onde estaõ as falúas com hum canal p.ª se embarcarem os porcos q veem do Alemtejo p.ª Lisboa, andava n'esta Villa hum homem dando agua em hum carro às canadas por hum tanto, isto por arrematação; tem marinhas de sal e grande negocio em porcos do Alentejo p.ª Lisboa; fica-lhe ao sul a Villa da Mouta, e entre estas duas Villas, fica Sarilhos Grandes com huma linda Igreja em hum campo; as roupas vaõ lavar-se na distancia de uma legua.

Fui de Aldeagallega a Setubal em direcçaõ a PalmelIa 3 leguas de charneca por montes sem povo até PalmelIa, edificada em hum cabeço com hum castello, que se vê de Lisboa 6 leguas distante munto alto, e junto ou dentro d'elle está hum convento da ordem de Christo ou antes de S. Thiago feito no tempo de ElRei D. Diniz (morreo em 7 de Jan.º de 1325), e d'aqui p.ª Setubal he huma legua a descer, e se vê Setubal, indo por entre boas quintas e laranjais: à entrada tem hum grande largo, onde chamaõ S.º do Bom Fim, onde está huma capelIa, tem hum aqueducto por esta estrada. Setubal tem 15200 habitantes em − 5 freguesias; tem huma praça no largo chamado o Çapal, tem hum grande cáes com muntas embarcações no mar, e outras se estavaõ fazendo e compondo, tem hum grande largo entre as casas da Villa e o cáes em grande' comprimento, não podendo ver-se bem as embarcações por causa de huma dença nevoa sobre o mar. Nesta Villa matou D. João 2.º o seo primo Duque de Vizeu ás punhaladas / 118 / em 23 de Agosto de 1484. Tem bom vinho em especial o moscatel, mas a − 120 o q.tro − 480 a canada. Depois de vista a Villa e suas ruas estreitas, e pouco decentes, observamos o forte onde esteve o Conde de Vinhaes combatendo do alto de hum cabeço; depois jantamos do q nos levaraõ −1300, e voltamos p.ª Aldeagallega onde chegamos já de noite, e tivemos pequena demora partindo de noite p.ª Lisboa.

Tratada a viagem por vapor intramos n'elle no dia 7 de 7.bro por 8 horas da manhaã e na saida concluimos aboa vista de Lisboa observada do vapor, indo este ainda manço e agradável; porem depois que deixamos a torre de S. Juliaõ á direita, e a do Bugio á esquerda entramos no mar algum tanto agitado, e começou este cavalinho com as suas tremuras a meio galope e galope inteiro fez com que todos tomafsem o seo lugar = et temerunt omnes = pafsando em frente de Peniche que nos ficava à direita notei as Berlengas, que saõ huns penêdos no meio do mar q admiraõ e ficaÕ na esquerda.

No dia 8 por 9 horas entramos na Barra do Porto, e feitas as revistas, e vistos pafsaportes saimos com bagagem p.ª a estalagem Real, onde depois de dar descanço e jantar (porq. no espaço de 26 horas q. estive no vapor nada comi nem bebi) tratamos de pafsear de tarde, indo a S. Lazaro ver o jardim, do que gostei pelo afseio em que está, contendo alguma pequenas laranjeiras, flores... depois fomos á rua das Flores e outras mais tratamos de ajustar cavalgaduras p.ª Albergaria a = 2400 cada huma e partimos nó dia seg.te pafsando pela ponte nova q. ainda naõ tinha visto, e da qual gostei, viemos descanfar a Oliveira onde tivemos fraco jantar só sardinha e pouca, e nem mais havia. Viemos todos até Albergaria onde ficaraõ os dois companheiros d'ahi, e eu o meo A.º Pimentel viemos até Serem onde elle ficou, e eu atravefsando o rio Vouga me dirigi a minha casa com saude, e gosando d'este bem achei a minha saudosa família sem me esperar taõbem. Difse».

Em 6 de Outubro de 1848.

José Bap.ta d'Oliveira

JOAQUIM JOSÉ FERREIRA BAPTISTA

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(1) Natural de Macinhata do Vouga, onde nasceu em data que ignoramos e que morreu cerca do ano de 1831. Foi casado com D. Ana de Gusmão, da Casa de Castendo. Exerceu vários cargos de confiança dos governos desse tempo e dentre eles o de Corregedor de Ourém. Foi um dos mais ricos proprietários do concelho de Águeda. Não deixou descendentes.

(2) Carvalhal de Macinhata do Vouga.  

(3) −  Solar do Visconde da Borralha.

(a) Antigamente se chamava da S.ª de Jerusalem.

(b) Morreo em 1783 em Pombal.  

(6) Chamava-se Brites d'Almeida.

(7) Morreo D. Joaõ 5.º em 31 de Julho de 1750.

(8) Foi fundada por Elisa neto de Noé amplificada por Ulifses e por ifso se chamou Ulifsipo com este nome mais antiga q. Roma 425 annos e como Elisea−320 annos mais antiga q. Ninive . 

(9) Faro, ou Toro?  

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