UMA
qualquer rebusca com muito diverso fito proporcionou-me a leitura de duas interessantes cartas do
Arcebispo BILHANO, ainda então Vigário Geral da
diocese de A veiro, suscitando-me a curiosidade para
um incidente, a propósito da procissão de Corpus Christi,
com a Câmara Municipal. Ainda que de restrito tomo se
me prenunciasse, a curiosidade desperta levou-me à procura de algum
pormenor complementar. A breve resenha das
notícias que encontrei, se o caso em si pouco vale na realidade, serve de pretexto para a publicação das duas cartas do ilustre prelado ilhavense, pois raras serão as da sua pena que
dessa época restem ainda.
Por alturas desse ano de 1863 faziam-se a expensas do
erário municipal aveirense as duas procissões reais de Corpus Christi e de Santa
Joana Princesa. A Câmara tivera por
obrigação incorporar-se em vários dos préstitos religiosos
que durante o ano se efectuavam na cidade. Até pelo menos
ao primeiro terço do século passado eram as seguintes as
procissões que os membros da vereação deviam acompanhar:
a de S. Sebastião, a 20 de Janeiro; as dos três dias das Ladainhas de Maio; a de Santa Joana, a 12 do mesmo mês; a de
Corpus Christi; a da Visitação de Nossa Senhora, a 2 de Julho; a do Anjo
Custódio, na terceira dominga de Julho; a
de S. Francisco de Borja, no dia 10 de Outubro; a do Patrocínio de Nossa Senhora, na dominga seguinte à Oitava de
Todos os Santos; e a da Bula da Cruzada, no fim do ano.
A procissão de Sant'Ana, padroeira da cidade, que tivera
extraordinário luzimento em antigos tempos, já nessa época
deixara de realizar-se e não sei se nesse tempo se faria a de
Santa Isabel, na qual ignoro até que ponto iria a ingerência
municipal.
/
104 /
A obrigação de tomar parte nessas procissões, para a vereação e outras
entidades, devia observar-se com grande rigor. Por não ter assistido à
da Visitação de Nossa Senhora, ao que estava «obrigado por antiquissimo
e inalteravel uzo», reincidindo logo a seguir na mesma falta quando da
do Anjo Custódio, foi, ainda em Julho de 1807, destituído do cargo de juiz-almotacé João Lício Barbosa. Era relapso este magistrado municipal.
Não deixou só de comparecer às mencionadas procissões, mas «praticou o
mesmo ou maior escândalo» deixando de assistir à missa solene que a
Câmara fizera cantar, «com sua assistência, à Senhora Santa Anna sua
Padroeira na Igreja Matris de S. Miguel», sendo certo que um alegado
defluxo, com que pretendia cobrir a falta, o não impediu «de ouvir a
missa publica do meio dia na Catedral desta Cidade, e de tarde foi visto
vir para casa da sua May, e estar à janella della na Praça desta mesma
Cidade». Por tão grave injúria aos rígidos costumes da época, sem
detença o afastaram do lugar, nomeando Bento José Mendes Guimarães seu
sucessor.
Todavia, a cargo da municipalidade estava apenas a organização das duas
procissões primeiramente citadas. Com a constituição da irmandade de
Santa Joana, em 1877, viria a ficar com a incumbência de promover
somente a de Corpo de Deus, encargo que subsistiu até à implantação da
República.
Competindo-lhe as despesas, a elaboração dos convites
e a escolha das pessoas de condição social a quem se confiassem as
varas do pálio, logicamente lhe cabia, dentro da observância das regras
litúrgicas, a prerrogativa de determinar o que mais conveniente se lhe
afigurasse para revestir a procissão da máxima solenidade e pompa, o
giro a percorrer e a própria hora da saída.
Usando desse direito, deliberou, pois, em 1863, sob proposta do
vice-presidente em exercício Basílio Mateus de Lima, que o imponente e
afamado cortejo, ao contrário dos anos precedentes, se realizasse logo
em seguida à missa solene. A edilidade, para justificar a sua decisão,
invocava os interesses municipais. Como, porém, não concretizava os
benefícios que o seu zelo pressupunha, e me parece para o caso
desnecessário, dispenso-me de investigar as ponderosas determinantes da
deliberação. Não ouso, aliás, lançar a suposição gratuita de que
pretendesse apenas despojar-se mais pressurosamente − a boa vereação de
burgueses atormentados pela forçada violação da regularidade dos seus
hábitos e comodidades − das gomas aperreantes, da hirta indumentária
dos dias de gala, das faixas e varas simbólicas da dignidade municipal,
e da correspondente atitude de emproado empertigamento.
/
106 /
A deliberação, no entanto, fossem quais fossem os seus reais motivos,
foi recebida com manifesto desagrado pelas entidades mais directamente
interessadas. A primeira voz discordante foi a do capitão Francisco de
Amaral, comandante do destacamento, de Caçadores 1, aquartelado na
cidade. Lembrava que a Câmara de Lisboa transferira a procissão
para de tarde, a horas de calor menos intenso, na intenção
de poupar a saúde das tropas que nela se incorporavam, e
evitar, assim, que, como havia sucedido anteriormente, baixassem ao hospital às dezenas de militares «e muitos a sepultura por effeito de congestões cerebrais». Porque o município
de Aveiro, «seguindo os preceitos da cautelosa hygiene»,
também há alguns anos vinha procedendo analogamente, estranhou a resolução tomada e adiantou algumas considerações no propósito de «ponderar a predisposição para infermidades a que serão expostos pela sujeição sob a forma e armas, os
militares do meu comando; e patentear que, prevenindo a saude dos meus
soldados, me socorri a tempo dos
pensados conselhos da hygiene militar, sendo solicito em rogar o bem da
humanidade como a Deos é d'infinito agrado».
Por seu turno, o Vigário Geral da Diocese, Dr. José António Pereira
Billhano, apressou-se também a manifestar
a sua surpresa pela inesperada deliberação camarária, a qual
vinha contrapor-se à prática dos últimos anos. Já tomara, demais, as
necessárias disposições contando com a procissão à tarde, e não
encontrava convincente motivo para se proceder de diferente modo. A
Câmara não esteve de acordo e
insistiu na sua resolução. A alteração da hora de saída do tradicional
préstito religioso, segundo alegava, fora decidida
por uma edilidade anterior, por circunstâncias ocasionais
resultantes de excessivos calores, insubsistentes, portanto, em anos
normais. Ter-se-ia, além disso verificado sem prévia anuência das
autoridades civil e eclesiástica. O exemplo de Lisboa, invocado por
algumas pessoas como argumento a favor da transferência para depois de
meio da tarde, considera-o de somenos importância, pois não constituía
norma a acatar, por qualquer título, e parecer-lhe-ia, porventura, um
servil indício de imitação, deprimente para os seus pundonorosos sentimentos de independência. O dr. PEREIRA BILHANO,
conforme se verifica na segunda das cartas adiante transcritas, rebate a
argumentação da Câmara, ponto por ponto, mas, segundo tudo leva a
supor, não logrou demover a obstinada vereação. Apenas lhe não ocorreu
observar que se esquecera a Câmara desta vez − e desta com inteira
verdade − de se premunir do assentimento das autoridades civil e
eclesiástica ou de, ao menos, ter a cortesia de lho comunicar com
antecedência bastante.
Os sinais de discordância não ficaram ainda por aqui.
/
106 /
Também o governador civil do distrito, ao acusar a recepção do convite
do vice-presidente do município, lhe fez sentir os inconvenientes de o
desfile da procissão ser marcado para antes das quatro horas. A Câmara
perseverou na sua intransigência, apesar mesmo da opinião e do desejo
do chefe do distrito. Era uma teimosia inabalável, fechada a todas as
razões, resistente a todas as influências e tentativas de persuasão. O
governador civil não se conformou com a incompreensiva contumácia da edilidade e, quanto a si, porque não tinha a
temer quaisquer consequências do género daquelas que haviam atingido
ainda no princípio do século o juiz-almotacé, resolveu facilmente a
desinteligência. No próprio dia da festividade do Corpus Christi,
comunicou à Câmara que, por afazeres do seu cargo, não podia assistir
à missa solene nem acompanhar a procissão. Esta, porém,
pelo que permitem inferir os elementos de que disponho, saiu, e saiu
mesmo à hora que a vereação tinha determinado.
No ano imediato, Basílio Mateus de Lima, de novo em
exercício do cargo de vice-presidente da Câmara, reincidiu na pretensão
de fazer sair a procissão logo após a missa. A reacção deve ter tomado
dessa vez maior latitude porque a vereação, apesar de ter anuído
unanimemente a essa proposta, reconsiderou oito dias depois, e anulou a decisão que nesse
sentido tomara. A razão e o bom senso acabaram,
assim, por triunfar e impor-se ao próprio causador deste incidente, o
qual, certamente, apenas andaria movido pelo intuito acanhado de reatar
uma tradição, desaconselhada por evidentes motivos, e que só teria
justificação no gosto de manter inalteráveis os rotineiros costumes.
Seguem-se as duas cartas inéditas do Arcebispo BILHANO.
I
lll.mo
Sñr. − Acabo de receber o officio de V. S.ª do 1.º' deste mes que
diz respeito à festividade de Corpus Christi que deve celebrar-se no
dia 4, declarando que a porcissão daquella
solemnidade deve ter lugar em seguida à celebração da Missa.
Surprehendeu me esta parcipação, (sic) porque à annos que a porcissão
do Corpus Christi em vista do m.to ponderosos motivos, que é escuzado
agora expendere atendendo ao que a semelhante respeito se pratica principalmente na Capital da Monarchia, de combinação com a Autoridade
Superior do Distrito e a Eclesiastica do Bispado, foi resolvido, que se
fisesse sempre na tarde do dia da festividade pelas quatro horas.
Está assim em pratica e tenho dado nesse sentido as ordens convenientes
na parte que me respeita, e não encontro motivo porque deva praticar se
o contrario.
Deus Garde a V. S.ª. Aveiro
2.º de Junho de 1863.
/
107 /
Ill.mo Sñr. Vice Presidente da Camara Municipal desta
Cidade
O Vigário Geral − Jose Antonio Pereira Bilhano
II
lll.mo Sñr. − Accuso a recepção do oficio de V. S.ª datado
de hoje. E permita me V. S.ª responder lhe que não é exacto o que diz no
mesmo officio «que a transferencia da porcissão do
Corpo de Deus para de tarde fora feita pela Camara Municipal sem o concurso do voto das Authoridades Civil e Eclesiastica» =
porquanto fui eu q. em 1860 tomei a iniciativa neste negocio, de que dei
conhecimento ao Ex.mo Governador Civil
do Distrito, o qual aprovou o meu pensamento, e encarregou-se
de assim o participar à Ill.ma Camara deste Concelho, como
sei que partecipou, para que ella desse naquella conformidade
as providencias que lhe competião.
Diz V. S.ª que forão os excessivos calores o motivo da transferencia da
porcissão. Seja − esse motivo continua, deve continuar a alteração, que
se fez.
E não era dos pouco fortes, porque nesta porcissão já foi
causa da morte de um ordinando de muitas esperanças, e a vida
do homem não à preço que a pague, e eu não posso, nem devo
obrigar o Clero a incommodos de tal natureza. Diz tambem
V. S.ª que o exemplo da capital não procede porque os usos da corte
não é costume reflectirem nas provincias, sendo certo que em concelhos
desta Diocese costumão ter lugar de manhaã as porcissões do Corpo de Deus, como acontece em llhavo. =
Devo dizer, que nunca vi dezatender as boas praticas e
costumes da Capital, nem deixar de as aplicar nas terras das provincias,
quando são de conveniencia e proveito; estam os neste
caso − uma pratica tal nenhum homem de senso podera deixar de a ter
como util e da maxima conveniencia, ella tende a evitar m.os prejuisos, e incomodos às pessoas principalmente
q.
devem assistir a porcissão, e é por isso que tem sido adorada
em muitas terras do Reino; e o exemplo d'Ilhavo adduzido por
V. S.ª é contraproducente − porque ali à muitos annos que se
usa o contrario; a porcissão de Corpus Christi faz-se de tarde,
e eu sou disso testemunha presencial, porque assisto a essa festividade
todos os annos. Entendo portanto que deve continuar o que se tem observado desde
1860. Deus Guarde a V. S.ª Avr.º 2 de Junho de 1863.
Ill..mo Senhor Vice Presidente da Camara Municipal deste
Concelho
O Vigario Geral − Jose Antonio Pereira Bilhano.
EDUARDO CERQUEIRA |