Eduardo Cerqueira, Duas cartas do arcebispo Bilhano, Vol. XIV, pp. 103-107

DUAS CARTAS DO ARCEBISPO BILHANO

SOBRE A PROCISSÃO DE CORPUS

CHRISTI DE 1863, EM AVEIRO

UMA qualquer rebusca com muito diverso fito proporcionou-me a leitura de duas interessantes cartas do Arcebispo BILHANO, ainda então Vigário Geral da diocese de A veiro, suscitando-me a curiosidade para um incidente, a propósito da procissão de Corpus Christi, com a Câmara Municipal. Ainda que de restrito tomo se me prenunciasse, a curiosidade desperta levou-me à procura de algum pormenor complementar. A breve resenha das notícias que encontrei, se o caso em si pouco vale na realidade, serve de pretexto para a publicação das duas cartas do ilustre prelado ilhavense, pois raras serão as da sua pena que dessa época restem ainda.

Por alturas desse ano de 1863 faziam-se a expensas do erário municipal aveirense as duas procissões reais de Corpus Christi e de Santa Joana Princesa. A Câmara tivera por obrigação incorporar-se em vários dos préstitos religiosos que durante o ano se efectuavam na cidade. Até pelo menos ao primeiro terço do século passado eram as seguintes as procissões que os membros da vereação deviam acompanhar: a de S. Sebastião, a 20 de Janeiro; as dos três dias das Ladainhas de Maio; a de Santa Joana, a 12 do mesmo mês; a de Corpus Christi; a da Visitação de Nossa Senhora, a 2 de Julho; a do Anjo Custódio, na terceira dominga de Julho; a de S. Francisco de Borja, no dia 10 de Outubro; a do Patrocínio de Nossa Senhora, na dominga seguinte à Oitava de Todos os Santos; e a da Bula da Cruzada, no fim do ano. A procissão de Sant'Ana, padroeira da cidade, que tivera extraordinário luzimento em antigos tempos, já nessa época deixara de realizar-se e não sei se nesse tempo se faria a de Santa Isabel, na qual ignoro até que ponto iria a ingerência municipal.  / 104 /

A obrigação de tomar parte nessas procissões, para a vereação e outras entidades, devia observar-se com grande rigor. Por não ter assistido à da Visitação de Nossa Senhora, ao que estava «obrigado por antiquissimo e inalteravel uzo», reincidindo logo a seguir na mesma falta quando da do Anjo Custódio, foi, ainda em Julho de 1807, destituído do cargo de juiz-almotacé João Lício Barbosa. Era relapso este magistrado municipal. Não deixou só de comparecer às mencionadas procissões, mas «praticou o mesmo ou maior escândalo» deixando de assistir à missa solene que a Câmara fizera cantar, «com sua assistência, à Senhora Santa Anna sua Padroeira na Igreja Matris de S. Miguel», sendo certo que um alegado defluxo, com que pretendia cobrir a falta, o não impediu «de ouvir a missa publica do meio dia na Catedral desta Cidade, e de tarde foi visto vir para casa da sua May, e estar à janella della na Praça desta mesma Cidade». Por tão grave injúria aos rígidos costumes da época, sem detença o afastaram do lugar, nomeando Bento José Mendes Guimarães seu sucessor.

Todavia, a cargo da municipalidade estava apenas a organização das duas procissões primeiramente citadas. Com a constituição da irmandade de Santa Joana, em 1877, viria a ficar com a incumbência de promover somente a de Corpo de Deus, encargo que subsistiu até à implantação da República.

Competindo-lhe as despesas, a elaboração dos convites e a escolha das pessoas de condição social a quem se confiassem as varas do pálio, logicamente lhe cabia, dentro da observância das regras litúrgicas, a prerrogativa de determinar o que mais conveniente se lhe afigurasse para revestir a procissão da máxima solenidade e pompa, o giro a percorrer e a própria hora da saída.

Usando desse direito, deliberou, pois, em 1863, sob proposta do vice-presidente em exercício Basílio Mateus de Lima, que o imponente e afamado cortejo, ao contrário dos anos precedentes, se realizasse logo em seguida à missa solene. A edilidade, para justificar a sua decisão, invocava os interesses municipais. Como, porém, não concretizava os benefícios que o seu zelo pressupunha, e me parece para o caso desnecessário, dispenso-me de investigar as ponderosas determinantes da deliberação. Não ouso, aliás, lançar a suposição gratuita de que pretendesse apenas despojar-se mais pressurosamente − a boa vereação de burgueses atormentados pela forçada violação da regularidade dos seus hábitos e comodidades − das gomas aperreantes, da hirta indumentária dos dias de gala, das faixas e varas simbólicas da dignidade municipal, e da correspondente atitude de emproado empertigamento. / 106 /

A deliberação, no entanto, fossem quais fossem os seus reais motivos, foi recebida com manifesto desagrado pelas entidades mais directamente interessadas. A primeira voz discordante foi a do capitão Francisco de Amaral, comandante do destacamento, de Caçadores 1, aquartelado na cidade. Lembrava que a Câmara de Lisboa transferira a procissão para de tarde, a horas de calor menos intenso, na intenção de poupar a saúde das tropas que nela se incorporavam, e evitar, assim, que, como havia sucedido anteriormente, baixassem ao hospital às dezenas de militares «e muitos a sepultura por effeito de congestões cerebrais». Porque o município de Aveiro, «seguindo os preceitos da cautelosa hygiene», também há alguns anos vinha procedendo analogamente, estranhou a resolução tomada e adiantou algumas considerações no propósito de «ponderar a predisposição para infermidades a que serão expostos pela sujeição sob a forma e armas, os militares do meu comando; e patentear que, prevenindo a saude dos meus soldados, me socorri a tempo dos pensados conselhos da hygiene militar, sendo solicito em rogar o bem da humanidade como a Deos é d'infinito agrado».

Por seu turno, o Vigário Geral da Diocese, Dr. José António Pereira Billhano, apressou-se também a manifestar a sua surpresa pela inesperada deliberação camarária, a qual vinha contrapor-se à prática dos últimos anos. Já tomara, demais, as necessárias disposições contando com a procissão à tarde, e não encontrava convincente motivo para se proceder de diferente modo. A Câmara não esteve de acordo e insistiu na sua resolução. A alteração da hora de saída do tradicional préstito religioso, segundo alegava, fora decidida por uma edilidade anterior, por circunstâncias ocasionais resultantes de excessivos calores, insubsistentes, portanto, em anos normais. Ter-se-ia, além disso verificado sem prévia anuência das autoridades civil e eclesiástica. O exemplo de Lisboa, invocado por algumas pessoas como argumento a favor da transferência para depois de meio da tarde, considera-o de somenos importância, pois não constituía norma a acatar, por qualquer título, e parecer-lhe-ia, porventura, um servil indício de imitação, deprimente para os seus pundonorosos sentimentos de independência. O dr. PEREIRA BILHANO, conforme se verifica na segunda das cartas adiante transcritas, rebate a argumentação da Câmara, ponto por ponto, mas, segundo tudo leva a supor, não logrou demover a obstinada vereação. Apenas lhe não ocorreu observar que se esquecera a Câmara desta vez − e desta com inteira verdade − de se premunir do assentimento das autoridades civil e eclesiástica ou de, ao menos, ter a cortesia de lho comunicar com antecedência bastante.

Os sinais de discordância não ficaram ainda por aqui. / 106 /

Também o governador civil do distrito, ao acusar a recepção do convite do vice-presidente do município, lhe fez sentir os inconvenientes de o desfile da procissão ser marcado para antes das quatro horas. A Câmara perseverou na sua intransigência, apesar mesmo da opinião e do desejo do chefe do distrito. Era uma teimosia inabalável, fechada a todas as razões, resistente a todas as influências e tentativas de persuasão. O governador civil não se conformou com a incompreensiva contumácia da edilidade e, quanto a si, porque não tinha a temer quaisquer consequências do género daquelas que haviam atingido ainda no princípio do século o juiz-almotacé, resolveu facilmente a desinteligência. No próprio dia da festividade do Corpus Christi, comunicou à Câmara que, por afazeres do seu cargo, não podia assistir à missa solene nem acompanhar a procissão. Esta, porém, pelo que permitem inferir os elementos de que disponho, saiu, e saiu mesmo à hora que a vereação tinha determinado.

No ano imediato, Basílio Mateus de Lima, de novo em exercício do cargo de vice-presidente da Câmara, reincidiu na pretensão de fazer sair a procissão logo após a missa. A reacção deve ter tomado dessa vez maior latitude porque a vereação, apesar de ter anuído unanimemente a essa proposta, reconsiderou oito dias depois, e anulou a decisão que nesse sentido tomara. A razão e o bom senso acabaram, assim, por triunfar e impor-se ao próprio causador deste incidente, o qual, certamente, apenas andaria movido pelo intuito acanhado de reatar uma tradição, desaconselhada por evidentes motivos, e que só teria justificação no gosto de manter inalteráveis os rotineiros costumes.

Seguem-se as duas cartas inéditas do Arcebispo BILHANO.

 

I

lll.mo Sñr. − Acabo de receber o officio de V. S.ª do 1.º' deste mes que diz respeito à festividade de Corpus Christi que deve celebrar-se no dia 4, declarando que a porcissão daquella solemnidade deve ter lugar em seguida à celebração da Missa.

Surprehendeu me esta parcipação, (sic) porque à annos que a porcissão do Corpus Christi em vista do m.to ponderosos motivos, que é escuzado agora expendere atendendo ao que a semelhante respeito se pratica principalmente na Capital da Monarchia, de combinação com a Autoridade Superior do Distrito e a Eclesiastica do Bispado, foi resolvido, que se fisesse sempre na tarde do dia da festividade pelas quatro horas.

Está assim em pratica e tenho dado nesse sentido as ordens convenientes na parte que me respeita, e não encontro motivo porque deva praticar se o contrario.

Deus Garde a V. S.ª.  Aveiro 2.º de Junho de 1863.  / 107 /

Ill.mo Sñr. Vice Presidente da Camara Municipal desta Cidade

O Vigário Geral − Jose Antonio Pereira Bilhano


II

lll.mo Sñr. − Accuso a recepção do oficio de V. S.ª datado de hoje. E permita me V. S.ª responder lhe que não é exacto o que diz no mesmo officio «que a transferencia da porcissão do Corpo de Deus para de tarde fora feita pela Camara Municipal sem o concurso do voto das Authoridades Civil e Eclesiastica» = porquanto fui eu q. em 1860 tomei a iniciativa neste negocio, de que dei conhecimento ao Ex.mo Governador Civil do Distrito, o qual aprovou o meu pensamento, e encarregou-se de assim o participar à Ill.ma Camara deste Concelho, como sei que partecipou, para que ella desse naquella conformidade as providencias que lhe competião.

Diz V. S.ª que forão os excessivos calores o motivo da transferencia da porcissão. Seja − esse motivo continua, deve continuar a alteração, que se fez.

E não era dos pouco fortes, porque nesta porcissão já foi causa da morte de um ordinando de muitas esperanças, e a vida do homem não à preço que a pague, e eu não posso, nem devo obrigar o Clero a incommodos de tal natureza. Diz tambem V. S.ª que o exemplo da capital não procede porque os usos da corte não é costume reflectirem nas provincias, sendo certo que em concelhos desta Diocese costumão ter lugar de manhaã as porcissões do Corpo de Deus, como acontece em llhavo. = Devo dizer, que nunca vi dezatender as boas praticas e costumes da Capital, nem deixar de as aplicar nas terras das provincias, quando são de conveniencia e proveito; estam os neste caso − uma pratica tal nenhum homem de senso podera deixar de a ter como util e da maxima conveniencia, ella tende a evitar m.os prejuisos, e incomodos às pessoas principalmente q. devem assistir a porcissão, e é por isso que tem sido adorada em muitas terras do Reino; e o exemplo d'Ilhavo adduzido por V. S.ª é contraproducente − porque ali à muitos annos que se usa o contrario; a porcissão de Corpus Christi faz-se de tarde, e eu sou disso testemunha presencial, porque assisto a essa festividade todos os annos. Entendo portanto que deve continuar o que se tem observado desde 1860. Deus Guarde a V. S.ª Avr.º 2 de Junho de 1863.

Ill..mo Senhor Vice Presidente da Camara Municipal deste Concelho

O Vigario Geral − Jose Antonio Pereira Bilhano.

EDUARDO CERQUEIRA

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