Mário Ramos, Dvisão de águas no conc. de Oliveira de Azeméis, Vol. XIV, pp. 93-98

DIVISÃO DE ÁGUAS NO CONCELHO

DE OLIVEIRA DE AZEMÉIS

SE a sucessiva divisão da propriedade levou os seus donos à consequente divisão de águas para rega, também a conveniência de se associarem na abertura de poços e minas deu lugar à respectiva divisão. Os contratos modernos são quase todos estabelecidos tendo por base da divisão os dias e horas (se bem que quase sempre seguindo as horas solares, ou seja, não tendo em conta os modernos avanços oficiais), mas nos contratos antigos há expressões e costumes muito curiosos.

Não posso, nem me proponho, fazer um estudo completo deste assunto.

Seria preciso percorrer os arquivos notariais, já demasiadamente extensos e ainda, infelizmente, por verbetar e classificar, e percorrer também, com paciência, as muitas localidades, para colher todos os elementos de estudo. O que aqui fica são pois muito ligeiras notas, prelúdio para trabalho mais completo que alguém queira tentar.

A água destinada a regas pode ter uma das seguintes origens:

a) de correntes de águas públicas (rios, ribeiros, sobras de fontes)

b) de minas ou de nascentes abertas; em propriedade individual ou colectiva

c) de poços, igualmente em propriedade individual ou colectiva.


As primeiras não necessitam, em geral, de empresamento, porque o seu caudal dá para a rega continua. Digo em geral, pois casos há em que, sendo a água pouca, se necessita, pelo menos em épocas de mais estiagem, de a juntar em «presas», ou tanques.

As de poços, também em geral, não necessitam de presa, porque engenhos são feitos com capacidade para tirarem / 94 / a água suficiente a regar-se «de pé»(1). Mas quanto às de
minas ou de nascentes é que precisam de se juntar, o que se faz nas «presas».

Ora desde que as águas se destinem a mais do que um proprietário (ou prédio) e há a consequente necessidade da sua divisão, estabelecem-se os «giros». O «giro» é pois a 'sucessão de regas pelos vários interessados ou «consortes», uma divisão dos vários quinhões na água.

Um mesmo proprietário, e até para o mesmo prédio, pode vir a reunir seguidamente mais do que um quinhão.

Por exemplo: duma água que pertencia a 8 «consortes», um dia para cada um, veio um deles a adquirir um dia de água desse giro (a outro que a dispensou por qualquer motivo) e assim reunir dois dias para o seu prédio.

O período dos «giros» varia muito: vão desde um dia (dividido por horas entre os vários consortes) até seis semanas (máximo na freguesia de Loureiro). Neste último caso, só, pois, de 6 em 6 semanas volta a água ao mesmo consorte.

Giros há em que só os primeiros regantes têm abundância de água, vindo os últimos do giro a pouca ter, pela estiagem que surge ou por deficiência da nascente, que não dá o caudal bastante. Chegam estes consortes, por vezes, a nem querer saber da água, não perdendo tempo em tapar a presa e tentar reunir o líquido. A estes giros chama-se (freguesia de Loureiro) «girotéus».

O giro da água pode ter o seu início em data certa, quer constante de documento quer de uso e costume(2). Pode ainda o giro ser iniciado por aquele a quem primeiro compete regar, seguindo-se os outros na respectiva altura do giro, ou pode ser iniciado por aquele que primeiro precisa da rega. Para isso há por vezes o juiz do rego (freg.ª de Loureiro) que é a pessoa entre os consortes escolhida para, na devida altura, ou quando para tal é requerido, ir avisar os outros interessados, dando-lhes conhecimento do início da rega ou mesmo convocá-los à limpeza do rego.

Se o início do giro não tem dia marcado, vai cada um regando «a môfo» até que aquele juiz (ou a combinação entre os consortes se não há juiz) marque o início da rega girada. «A môfo»(3) quer pois dizer em plena liberdade, / 95 / como cada um vai precisando. Claro que, se mais do que um a necessita e não chega sem divisão, entra em função o giro.

Quanto à limpeza do rego, para o que todos os consortes são convocados com dia certo, também tem os seus preceitos. Em regra a limpeza começa-se pelo fim, ou seja pela parte mais distante da presa ou nascente, vindo-se seguidamente limpando e concertando até à presa, nascente ou tomadoiro. Todos procedem a esse trabalho, embora por vezes um ou outro, matreiramente, se entretenha a só o fazer na parte correspondente ao seu prédio.

A divisão dos giros faz-se de vários modos:

a) pode caber a cada consorte um dia inteiro (ou vários dias seguidos), quer contados da meia noite, do meio dia, do nascer ou do pôr do sol (quando ele está encoberto calcula-se aproximadamente), por ter dias certos da semana (por exemplo: todas as segundas-feiras de 15 em 15 dias ou de 3 em 3 semanas);

b) pode ter uma fracção de dia certo em cada semana, fracção que pode até contar-se por minutos (12 horas e 42 minutos);

c) pode ter um certo dia do giro (o 1.º, o 13.º, o 16.º, conforme o número de dias que o giro tem), ou uma fracção desse dia;

d) podem as regas calhar de dia ou de noite, quando o que lhes compete é uma fracção do dia.


As horas ou fracções de cada giro têm por vezes uma designação característica. Em Nogueira do Cravo há a seguinte classificação:

a hora do Galo − é da meia noite até ao nascer do sol

a hora da Terça − é do nascer do sol até «aos quatro pés de sombra na eira» (cerca das 9 ou 10 da manhã).

a hora da Sesta − é daqueles quatro pés de sombra até «aos dois pés»

a hora da Pròsesta − é daqueles dois pés até ao pôr do sol

a hora do Sol-posto − é do pôr do sol até «não se conhecer cruzes ao dinheiro».

a hora da meia noite − é desde «o não se conhecer cruzes ao dinheiro» até á meia noite.
 

As referências ao dinheiro são frequentes: de 15 em 15 dias ao sábado, desde o conhecer de um vintém até às cinco horas» (esc.ª de 16-4-1948, de Fajões). / 96 /

Por vezes é a água que se junta na presa que ali mesmo é dividida.

Para isso coloca-se na presa uma vara vertical(4), segura de qualquer modo, ou terminando em ponta voltada para se poder prender (nalgumas há uma pedra no fundo da presa a marcar o nível base) e nessa vara se marca, por alturas, meia presa, um quarto, um oitavo de presa. A múltipla divisão nestes casos chega a repartir «meio quarto» de presa ainda em 3 ou 4 consortes, e como a altura do líquido chega em tempos de estiagem a ser pouca, a rega de alguns reduz-se praticamente ao abaixamento de uns milímetros no nível da água. Se cada um não está atento à sua água, fica prejudicado, e não poucas vezes se suscitam ralhos, quando se não chega a «vias de facto».

Em Carregosa (Presa do Perrinho), além daquela divisão da presa, há consortes a quem compete uma «polegada» de água, sendo a polegada marcada não por essa verdadeira medida, mas pela largura do dedo polegar, o que portanto varia conforme o marcador tiver o dedo mais grosso ou mais fino.

A divisão das «presadas» de água também se faz, nalguns casos, à entrada dos próprios prédios (ou «campos»), sendo o rego subdividido em tantos outros quantos os regantes(5),
umas vezes por dispositivo fixo, que divide a água por igual, outras vezes um pouco a cálculo. A água corre, assim, ao mesmo tempo para todos os consortes e cada presada é por igual dividida.

Ainda há marcações, para divisão ou para tapagem e abertura de presas, baseadas no «pintar do sol», quando «a sombra for na Serra», e por meio de um prego espetado na presa e cuja sombra serve de regulador.

Dum modo geral, porém, como disse, todas estas formas tendem a desaparecer, dando lugar a tomar-se por base a hora e suas divisões. Nalgumas freguesias é já difícil saber-se a
antiga terminologia e costumes, que foram substituídos ou modificados pelo relógio.

Vamos a ver se para outra vez consigo dar mais detalhada notícia.

A escritura que abaixo parcialmente se transcreve (de 2 de Julho de 1903, entre proprietários de Nogueira do Cravo), permite avaliar de como as divisões de águas por vezes se complicam e como o precioso líquido é avaramente defendido / 97 / [Vol. XIV - N.º 54 - 1948] pelo lavrador, que conta cuidadosamente os escassos minutos em que o pode utilizar:


... Nos anos de terminação par, a água a dividir é a seguinte: das Cancelas, na segunda semana de cada giro a Sesta, na quarta semana a Pròsesta, na sexta semana a Terça e de Gaspar Pires na 3.ª semana de cada giro a Sesta e na 6.ª semana da Meia Noite, tudo dentro do mesmo giro, que é de 6 semanas. Desta água fica a pertencer aos 1.os outorgantes e dela regarão na 4.ª semana a Pròsesta, na 6.ª a Meia Noite; a 2.ª outorgante na 3.ª semana regará no principio da Sesta 18 minutos contados à Cancela dos 1.os outorgantes; em seguida a 3.ª outorgante regará da mesma Sesta 18 minutos; em seguida a 4.ª outorgante regará da mesma 36 minutos e os 5.os outorgantes regarão em seguida da mesma uma hora e 11 minutos e em seguida os 1.os outorgantes o resto; os 6.os outorgantes regarão na 2.ª semana da Sesta 2 horas e 7 minutos; os 7.os outorgantes regarão da mesma Sesta o resto calculado em 1 hora e 53 minutos; os 8.os outorgantes regarão da Terça, na 6.ª semana, no principio, 80 minutos, em seguida os 9.os outorgantes regarão da mesma terça 88 minutos, em seguida os 10.os outorgantes regarão da mesma Terça 64 minutos e os 11.os.outorgantes o resto da mesma Terça calculada em 21 minutos. Assim fica completo o 1.º giro, que é de 6 em 6 semanas e que se repete no tempo das regas nos anos de terminação par, à excepção do giro em que tenha de sair do Casal de Gaspar Pires a Terça mais próxima do dia de Santiago, que sai para Manuel Gomes Godinho de Resende, sendo uma Meia Noite ou uma Sesta, pois neste giro fica a água assim dividida, como se vai descrever: os 1.os outorgantes regarão uma das Terças de Gaspar Pires ou a Sesta na 3.ª semana ou a Meia Noite na 6.ª semana conforme a que sair para o dito Manuel Gomes Godinho de Resende e os mesmos 1.os outorgantes regarão mais na 4.ª semana a Pròsesta; a 4.ª outorgante regará na 2.ª semana da Sesta 29 minutos, a 2.ª outorgante regará em seguida 14 minutos, a 3.ª outorgante regará em seguida 14 minutos. Este tempo será contado desde o talhadouro do Adro da Igreja no caso que estas três últimas outorgantes queiram regar no Campo da Cainha; se porém a água não for regada naquele sitio será contado o tempo de outro qualquer ponto em que a cortar. Os 7.os outorgantes regarão na mesma semana e da mesma Sesta uma hora e 27 minutos e os 6.os outorgantes regarão o resto da mesma Sesta; os 9.os outorgantes regarão na 6.ª semana no principio da Terça 69 minutos, em seguida os 10.os outorgantes regarão da mesma Terça 58 minutos, em seguida os 11.os outorgantes regarão da mesma Terça 20 minutos, em seguida os seguintes outorgantes regarão da mesma Terça 65 minutos, e em seguida os 8.os outorgantes o resto. Este giro é só um em cada ano e todos os outros obedecem à partilha feita no 1.º giro aqui descrito, que se repetem de 6 em 6 semanas. Quanto o Manuel Gomes Godinho de Resende regar do Casal Gaspar Pires a Meia Noite receberá dos 1.os outorgantes 30 minutos de água em anos pares e ímpares e estes ficam sempre com o direito ao Sol Posto, mas se os 1.os outorgantes tiverem o Sol Posto junto com a Meia Noite de Manuel Gaspar Godinho de Resende, neste caso em lugar de darem os 30 minutos de água ao Resende darão o Sol Posto. Nos anos de terminação ímpar pertence a este casal em cada giro de 6 semanas na 2.ª semana a Meia Noite e na 6.ª semana o Galo e do Gaspar Pires compreendido neste Casal na 3.ª semana a Meia Noite e na 6.ª semana a Sesta. Os 1.os outorgantes regarão na 2.ª semana a Meia Noite e na 6.ª semana tem a Sesta mas desta Sesta há-de sair no principio para a 2.ª outorgante 15 minutos, para a 3.ª 15 minutos e para a 4.ª 30 minutos com a condição de que se estas três últimas outorgantes regarem esta água nos seus Campos da Cainha de baixo só se começará a contar o tempo a partir da Cancela dos 1.os outorgantes. Se porém alguma destas outorgantes a regarem em outra propriedade o tempo é contado desde o corte em qualquer ponto;
/ 98 / os 1.os outorgantes regarão na 6.ª semana no principio do Galo 62 minutos, em seguida os 9.os outorgantes regarão do mesmo Galo 2 horas e 22 minutos, em seguida os 11.os regarão do mesmo Galo 22 minutos, em seguida os 6.os outorgantes regarão do mesmo uma hora e 44 minutos e em seguida os 6.os outorgantes regarão o resto do mesmo Galo e regarão mais os mesmos 6.os outorgantes na 3.ª semana da Meia Noite uma hora e em seguida os 7.os outorgantes regarão da mesma Meia Noite 1 hora e 33 minutos e os 5.os outorgantes regarão o resto desta Meia Noite. Esta água é a mesma em todos os giros dos anos de terminação ímpar excepto no giro em que tenha de sair do Casal de Gaspar Pires a Terça mais próxima do São Tiago para Manuel Gomes Godinho de Resende que é uma Meia Noite ou uma Sesta, pois desse giro se regará da seguinte forma: os 1.os outorgantes regarão na 6.ª semana o Galo, regarão mais na 2.ª da Meia Noite 57 minutos no principio; em seguida a 2.ª outorgante regará da mesma Meia Noite 12 minutos, em seguida a 3.ª da mesma outros 12 minutos e a 4.ª outorgante 22 minutos; os 6.os outorgantes regarão ainda da mesma Meia Noite 1 hora e 13 minutos e os 7.os Outorgantes regarão o resto da mesma Meia Noite calculada em 1 hora e 4 minutos. Como este é o giro do São Tiago e tem de sair para Manuel Gomes Godinho de Resende ou a Meia Noite na 3.ª semana ou a Sesta na 6.ª semana, isto é, destas a que for mais próxima do São Tiago, visto serem esta Meia Noite e Sesta calculadas em horas iguais, para o efeito da partilha, fica dividida a que não sair da seguinte forma: os 10.os outorgantes regarão dessa Meia Noite ou Sesta no principio 47 minutos; em seguida os 9.os outorgantes a seguir regarão 1 hora e 49 minutos, em seguida os 5.os regarão da mesma 67 minutos e os 11.os o resto calculado em 17 minutos. Este giro é o de São Tiago e todos os outros seguem a divisão já estabelecida. . . . . . . . .. . . . . . . . . .

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Oliveira de Azeméis, 1948.

MÁRIO RAMOS

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(1)Regar de pé. diz-se quando a água chega para manter a cor'rente num rego, sem necessidade de estar a juntá-la.

(2)«...começando os giros ao meio dia, hora legal ou normal, do primeiro domingo do mês de Maio de cada ano e terminando em vinte e nove de Setembro.» (Escritura de 13-4-1946, de Nogueira do Cravo). 

(3) − Também significa «sem pagar, de borla»: um indivíduo que apanha um transporte de graça (a môfo), que come pagando outros (come a môfo), que utiliza águas sem ter contribuído para as respectivas despesas (rega a môfo), etc.

(4) −  Carregosa e Ossela (águas de Bustelo).

(5)Macinhata.

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