AINDA
vem longe o Astro-Rei que há-de vir iluminar e aquecer a Terra naquele
dia caloroso de 25 de Agosto de 1947, já os habitantes das terras
ribeirinhas da Pateira de Fermentelos vêm convergindo em massa para os
seus portos marginais.
Entre aqueles povos, trabalhadores da terra, vai travar-se naquele vasto
campo aquático uma das maiores competições do trabalho da região − a
abertura solene da Pateira de Fermentelos à apanha do moliço, fechada do
primeiro de Janeiro a 10 de Março e de 8 de Julho a 25 de Agosto.
Uma nuvem de barquitos regionais, moliceiros e caçadeiras, ancorados às
margens, aguardava desde a véspera a chegada de seus proprietários,
armados das alfaias próprias {ancinho, vara e pá) para a faina do
moliço.
Poucos momentos antes do
sinal convencional para a
largada, cada homem toma o seu pequeno moliceiro e com o pé no bordo e
ancinho em punho, parece um soldado em posição de sentido, à espera da
ordem do começar da batalha.
Dá, por fim, sinal de largar, o sino de Fermentelos, freguesia mais
próxima e titular da Pateira.
Num instante, como por encanto, esta fica invadida e coalhada de
minúsculos barquitos, que, movimentando-se dum lado para o outro e
vistos ainda à luz ténue do romper da madrugada, mais parece um jogo de
bonecos animados num fundo escuro, que uma parada de laboriosos homens
destros para a luta pela vida. Ao mesmo tempo, gritos de
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incitamento, vindos da multidão trabalhadora do interior das águas e da
multidão espectadora que se aglomera nas margens, ressoam por aquela
imensa massa líquida, onde disputam a flora que lhe atapeta o fundo as
povoações marginais de Fermentelos, Ois da Ribeira e Espinhel,
freguesias usuárias e frutuárias daquele baldio de água. E a luz do sol
que até aí tinha faltado para iluminar o grandioso quadro de beleza, que
é a Pateira de Fermentelos neste seu dia festivo,
começa também a enviar por detrás das colinas que a muralham pelo
nascente, os primeiros arrebóis matutinos que vêm saudar aquela gente
trabalhadora, cuja algazarra se transforma, naquele instante, num hino
de saudação ao sol e ao Trabalho.
E agora já nada falta ao artista para pintar aquela tela maravilhosa:
luz, movimento, som e cor combinam-se ali tão harmoniosamente que o
pintor lá encontra a fonte de inspiração mais bela que imaginar se
pode.
Até o poeta, esse constante enamorado da Beleza, pode ali abrir
largamente as portas à Poesia, cujo manto diáfano cobre, àquela hora,
toda a Pateira de Fermentelos.
Homem e Natureza formam, naquele momento, um conjunto tão cheio de
encanto e tão belo, que ANTÓNIO NOBRE,
que tanto se inspirara na edénica paisagem do Águeda, poderia novamente
cantar:
«Que ilusão viajar! Todo o planeta é zero.
Por toda a parte é mau o homem e bom o céu.
Américas! Japão I Índias! Calvário... Quero
Mas é ir à Ilha orar sobre a cova do Antero
E a Águeda beber a água do Botaréu»...
Assim NOBRE exclamaria ainda outra vez, se ressuscitasse e voltasse a passar as férias em
Águeda, concelho a que
pertence esta fonte de riqueza e beleza que é a Pateira de Fermentelos.
Como a nós lhe apeteceria dizer, naquela serena manhã de Agosto:
«Que é dos pintores da minha terra
Que não vêm pintar?»...
Mas, se lá não estavam pintores para pintar, não lhe faltaram até
turistas estrangeiros (americanos e ingleses), que, trazidos pela fama
da Pateira de Fermentelos naquele seu dia festivo, a fixaram em todos
os seus mais lindos aspectos
com as objectivas das máquinas fotográficas de que vinham munidos.
E não há dúvida de que, depois de a percorrerem de lés
a lés num barco de passeio, iam maravilhados com aquela
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quase totalmente as águas tranquilas e doces, onde aqueles, quase
inteiramente mergulhados, deixavam
apenas emergir os inúmeros montículos de estrume, dando-nos, à
vista, a impressão dum vasto arquipélago de ilhotazinhas, constantemente a deslocarem-se e a reflectirem-se sobre o espelho
cristalino das paradas águas da Pateira. E, a pouco e a pouco, se viam
aumentar os montes de moliço
nos portos marginais, onde os moliceiros. depois de cheios, eram
despejados, voltando novamente para o interior a recolher mais estrume,
que os pachorrentos carros de bois transportarão das margens directamente para as terras, que, assim
adubadas, se irão desentranhar em cereais, frutos e hortaliças com que
se abastecem os mercados circunvizinhos.
Quem poderá, pois, pensar, como alguém já pensou, em secar e destruir a Pateira de Fermentelos, uma das maiores
fontes de riqueza e beleza das regiões do Vouga, Águeda e
Cértoma?
Bem haja o povo de Fermentelos que a defende de alma e coração, como defende a própria vida.
Se o homem é, em parte, produto do meio geográfico em que vive, a gente
de Fermentelos está incluída nesse número. Ela traz na menina dos olhos
a cor das mansas águas da Pateira, onde se reflecte, como em superfície
lisa de cristal, a luz aurifulgente do sol. Se é a Pateira que lhe
fertiliza os fartos milharais, batatais, feijoais, nabais, enfim,
toda aquela densa folhagem que lhe afoga as casas e os campos num mar de
verdura; se é dela que eles tiram o saboroso peixe com que se alimentam e ainda abastecem as terras
vizinhas, ninguém poderá ignorar que o povo de Fermentelos defenderá a
sua Pateira com armas na mão e até ao sacrifício da própria vida, o que
ainda se deu no verão de 1944.
Continuava a desenrolar-se em morticínio e fome a sangrenta guerra
mundial.
Entre os víveres que rareavam no mercado e atingiam o preço do ouro,
destacava-se o arroz, cereal bastante cultivado nas margens do Cértoma,
especialmente na povoação de Perrães, vizinha da Pateira de Fermentelos.
A estiagem canicular, parece que mais intensa nesses anos de guerra,
teimava em deixar morrer à sede este precioso alimento. Então, os
habitantes de Perrães, proprietários das marinhas do arroz, tentados
pela abundância das águas da Pateira que ao lado brilhavam e lhe
aguçavam o apetite, e, sabendo que elas se encontravam a um nível
superior e apenas separadas daquelas pela estrada municipal que liga
esta povoação a Águeda, abrem uma enorme vala por onde se começa a
escoar a Pateira de Fermentelos para as marinhas do arroz de Perrães.
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Não se faz esperar muito a reacção do povo de Fermentelos,
que manda logo tocar o sino a rebate.
Rápida como o fumo, uma multidão armada de varapaus,
pistolas e outras armas, começa a correr de Fermentelos para o local do conflito onde se
entrincheiram, dispostos a uma
luta de morte.
Valeu, porém, ali, a serenidade e pacatez do povo de
Perrães, que, retraindo-se, fora obrigado a jurar solenemente
perante a população levantada de Fermentelos que nunca
mais voltaria a tocar nas águas da Pateira, tudo acabando, finalmente, em paz e sem vítimas.
É assim que a Pateira é defendida pela laboriosa e unida
gente de Fermentelos que tem naquela o seu laço de união
e até a sua escola de educação.
A Pateira é quem lhe dá o pão. Por isso os fermentelenses
lhe têm um
amor de mãe, mãe de fartura e de beleza
que eles contemplam desde o nascimento à morte, nela trabalhando,
nadando, cantando, sofrendo, amando e por vezes
até, nela se sepultam, parecendo amá-la ainda mais quando
se afogam nas suas águas.
Depois, é ainda a Pateira que lhes dá o nome e a fama à
sua terra natal. Se não fosse aquela, Fermentelos não seria conhecida
em Portugal e até no mundo, se é que pudesse
existir sem ela. Sem aquele interessante acidente geográfico, ali à beira, Fermentelos não .passaria de uma insignificante freguesia do concelho de
Águeda como o fora, em
tempo, do concelho de Oliveira do Bairro, para o qual uma
grande parte da freguesia, por motivos de ordem política,
desejaria voltar.
Quanto a nós, baseando-nos apenas em razões de ordem
geográfica e psicológica, cremos, com a maior imparcialidade, que Fermentelos deverá continuar a pertencer ao concelho de Águeda. E as nossas razões são as seguintes:
Toda a paisagem verde e húmida da freguesia de Fermentelos é de tipo Águeda e não Cértoma.
A paisagem, típica deste, parece acabar em Perrães.
Esta é a paisagem do vinho maduro da Bairrada dos vinhedos de cepa baixa e gorda,
dos terrenos amarelentos do calcário e da argila.
Ora Fermentelos, por forma alguma pode estar incluída
nesta espécie de terreno; a terra aqui é preta, areenta, maleável; o
vinho quase verde, de menor grau, de cepa alta é cultivado em corrimão e latada em terrenos baixos.
Quanto à psicologia do povo de Fermentelos, nota-se-lhe
uma tendência acentuada para a religião predominando neles
as tendências espirituais, enquanto nos povos da Bairrada
propriamente ditos, predominam as sensuais. Até no corpo,
a gente de Fermentelos, homens e mulheres, apresenta uma
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cor de pele mais branca e acetinada, isto é, mimosa como a paisagem do
Águeda.
Portanto, ainda que a distância de Fermentelos a Oliveira do Bairro seja
menor que a Águeda, a geografia e psicologia daquela freguesia contrasta
muito com a geografia e psicologia da Bairrada.
Eis os motivos que nos levam a dizer que Fermentelos, regional e
administrativamente, deve pertencer ao concelho
de Águeda e não ao de Oliveira do Bairro, como alguns pretendem.
ERCÍLIA PINTO |