Exposição alusiva à Ria de Aveiro, Vol. XIII, pp. 245-250

A «EXPOSIÇÃO ALUSIVA À RIA DE AVEIRO»

PROJECTADA EM 1896 PELO BARÃO DE

CADORO E PELO ENGENHEIRO

MELO DE MATOS

O BALANÇO exaustivo e a história pormenorizada do que foi a actividade local dessa extraordinária geração de aveirenses − aveirenses pelo nascimento, mas aveirenses também pela sua leal integração no meio, que inteligente e devotadamente serviram − vinda do penúltimo quartel do século XIX até nossos dias, não tentou ainda, talvez por demasiado próxima da actualidade, nenhum historiador contemporâneo.

E todavia, sobre os aveirenses de hoje se estende, benéfico, o seu potente reflexo, e do seu esforço de inteligentes pioneiros usufruímos nós, não apenas a recordação gloriosa, mas o próprio ambiente cultural e material que é possível, apesar de tudo, descortinar em determinados sectores da vida citadina de hoje em dia.

É, por consequência, de gratidão ou reconhecimento a dívida que a actual geração aveirense mantém em aberto para com a memória veneranda dos homens que a precederam. Uma ou outra figura da plêiade admirável tem sido incidentalmente recordada, mas falta por completo o estudo de conjunto dessa obra invulgar e notabilíssima, onde avultam aspectos sociais e culturais de primeira categoria em qualquer meio onde surgissem, e que na história aveirense constitui nitidamente uma época distinta, um período à parte.

Não cabe a nós, longe do ambiente onde se formou e eclodiu esse glorioso movimento, e onde melhor ele se documenta e / 246 / compreende, tentar estudo de tamanho vulto, nem aos aveirenses de nascimento desejamos de modo algum sobrepor-nos nessa, aliás, gratíssima realização, impedindo-lhes o prazer de reconstituírem uma época de tão grande significado nos anais da cidade que o Destino generosamente lhes outorgou por berço.

Da interessantíssima floração bibliográfica dessa excepcional geração, que em variados sectores ficou a documentar o seu magnífico esforço construtivo, permitimo-nos, no entanto, exumar desde já uma espécie da mais extrema raridade e real valor originada justamente no pensamento de dois componentes ilustres daquela brilhante plêiade de animadores e de inegáveis realizadores.

Já em 1933, ao procurarmos fundamentar e fixar plano que reunisse condições de exequibilidade para o Museu Etnográfico do município ilhavense, que veio a ser inaugurado quatro anos depois e que até ao presente se tem mantido, dentro da sua forçada modéstia, com geral agrado e público louvor, tivemos ensejo de estudar essas páginas valiosas adaptando quanto da sua doutrinação interessava ao ponto de vista em que deliberámos colocar-nos.

Formulámos então o voto de que viesse a ser reeditada essa obra de tão «grande alcance e inteligente regionalismo»(1).

Muito grato nos é, 14 anos volvidos, retomar o assunto e reeditarmos nós, visto ninguém mais o haver ainda feito, o raríssimo opúsculo regional intitulado Exposição alusiva à Ria de Aveiro, do Engenheiro MELO DE MATOS, pois outra não é a espécie bibliográfica posta em causa nas presentes linhas.

Estava-se em 1896; a Etnografia e o Folclore ensaiavam então os seus primeiros passos no País, sem sistematização definida, ainda, limitando-se à recolha de material e ao confronto, timidamente apresentado, dum ou outro elemento com fenómeno idêntico de além fronteiras.

É desse mesmo ano a primeira tentativa séria de compreensão e de isolamento da Etnografia no quadro das ciências, que em Portugal se regista; provocou o seu aparecimento a celebração do centenário do descobrimento da Índia, projectada para o ano imediato, e subscreveu-a o professor F. ADOLFO COELHO, intitulando-a singelamente: Exposição Etnographica Portugueza − Portugal e Ilhas hdjacentes(2).

São estas as primeiras palavras dessa ainda hoje valiosíssima sistematização, muito pouco vulgar também:

«Apesar de existirem várias publicações que têm por objecto o estudo do povo português sob diversos aspectos, / 247 / pode afirmar-se resolutamente que a nossa etnografia se acha na infância, já porque muitos desses aspectos, entre os quais alguns da maior importância, têm sido apenas levemente tocados, já porque a muitas daquelas publicações falta a precisão científica.

Carecemos nós, sobretudo, de um trabalho de conjunto suficientemente completo, impossível de organizar pela ausência de numerosos dados que a diligência dum só investigador ou até dum pequena grupo de investigadores associados não teria capacidade de reunir.

O estudo do povo português sob o aspecto físico está apenas iniciado: o que falta fazer, ainda dentro dos limites do estritamente indispensável, é quase tudo!»

Pormenoriza seguidamente aquele sábio etnógrafo como «a habitação portuguesa é um objecto, por assim dizer. intacto», como «a alfaia e o mobiliário domésticos esperam ainda um estudo que não seja um fragmento», como «o vestuário, das classes populares não foi ainda descrito e desenhado no seu conjunto, comparativamente, na sua distribuição geográfica».

Carecemos de conhecer o trabalho popular nas mais diversas formas; «os meios de transporte tradicionais, carros, embarcações marítimas e fluviais, etc., esperam ainda um estudo compreensivo, assim como o comércio nas suas formas populares»

«As belas artes populares, propriamente ditas, salvo a poesia, não foram ainda estudadas a sério. A música tem sido objecto de várias publicações destinadas, ao que parece, a darem dela ideia falsíssima.»

... «No domínio da poesia popular, dos contos, das superstições, dos jogos, das festas e outros actos solenes do nosso povo» ...«bastante resta averiguar para conhecimento completo dessas tradições e doutras». Etc.

O problema não passara despercebido à grande geração aveirense, e, assim, em 30 de Maio daquele mesmo ano de 1896 o "Campeão das Províncias", bi-semanário local de honrosas tradições, insere, no seu n.º 4574, uma carta dirigida Il.mo e Ex.mo Sr. Barão de Cadoro acerca de uma exposição alusiva à Ria de Aveiro, que em seguida circulou em separata de pouquíssimos exemplares.

Firma-a e data-a de 22 de Maio o nome dum estudioso de elevado critério, que, sem ser natural de Aveiro, aos problemas marítimos locais dedicou, repetidas vezes, labor verdadeiramente científico e altamente construtivo: o engenheiro dos serviços hidráulicos, MELO DE MATOS.

O Barão de Cadoro, que logo nas primeiras linhas da carta referida se fica sabendo ter encarregado MELO DE MATOS «da honrosa missão de organizar um programa para uma exposição / 248 / dos produtos da ria de Aveiro», era aveirense de nascimento (1849-1917), romancista e jornalista, e foi o grande animador (e reeducador, podíamos dizer também) da sociedade aveirense da sua época, em benefício da qual prodigalizou os avultados meios de fortuna que possuía, não se alheando de problema algum, cultural ou social, que à cidade interessasse, tornando possíveis iniciativas que para sempre ficaram memoráveis.

Pessoa do mais fino trato, distintíssimo, conheci-o ainda, embora já a caminho da decadência em que veio a terminar, no belíssimo palacete em que vivia e que generosamente franqueava, em festas brilhantíssimas, de grande estilo, por largo tempo recordadas.

MELO DE MATOS, esse (1856-1915), pela sua notável dedicação à cidade, que dedicadamente serviu, granjeou direito incontestável a ser incluído também nessa geração de aveirenses famosos que a esta época sem igual ligaram imperecivelmente o seu nome. Nascido no Porto, veio para as obras da Barra e da Ria de Aveiro em 1887 chefiar a 2.ª circunscrição hidráulica como engenheiro que era, após ter participado nos trabalhos da linha férrea da Figueira da Foz a Alfarelos e ter dirigido a construção da ponte de Vila Velha do Ródão.

Em Aveiro dirigiu, igualmente, a construção do farol da Barra e da estrada marginal para a Costa Nova, notabilizando-se em serviços, distintos que lhe valeram louvor especial do Governo português.

O Estado francês condecorou-o com a «Legião de Honra» pela assistência inteligente que prestou por ocasião do naufrágio do torpedeiro Avant-garde, daquela nacionalidade.

Após 11 anos da mais prestável permanência aqui, este aveirense honorário deixou a cidade, em 1898, para assumir o lugar de Director das Obras Públicas no distrito de Braga(3).

Mas a Aveiro pertenceria a quase totalidade da sua valiosa obra de escritor; constituída principalmente por separatas de revistas diversas, conseguimos laboriosamente reunir as seguintes espécies que dispomos pela sua ordem cronológica:

Laboratório marítimo de Aveiro. Porto, 1894, 82 Págs. e 1 gráfico desdobrável − (É separata dos N.os 9 a 11 do vol. 3.º da Revista de CiêncIas Naturais e Sociais). / 249 /

Os trabalhos recentes acerca de Piscicultura em Portugal. Porto, 1895; 16 Págs. (Sep. do N.º 12 daquele vol. 3.º).

Questões aquícolas. Resposta a uma apreciação. Porto; 1895; 16 Págs. − (Sep. do N.º 13 do vol. 4.º daquela mesma revista).

Questões aquícolas; s. l. 1895; 4 Págs. − (sep. do n.º 14 daquele vol. 4.º).

− Carta dirigida ao Il.mo e Ex.mo Sr. Barão de Cadoro acerca de uma exposição alusiva à Ria de A veiro. Aveiro, 1896; 8 Págs. − (sep. do n.º 4574 do Campeão das Províncias».

Exposição alusiva à Ria de Aveiro; s. I. n. d. 12 págs. (sep. da Revista Florestal, de 1896).

Assistance maritime − Les «Compromissos» de la cote d'Algarve. Paris, 1904, 22 Págs. (tese apresentada ao Congresso Marítimo Internacional de Lisboa, daquele ano).


De data que nos é difícil de precisar, possuímos ainda:

Aproveitamento dos tanques; s. I. n. d. 4 págs., sep. da Revista Florestal.

La Pisciculture pratique − Bulletin des sociétés de pêche et de pisciculture de France; s. I. n. d. 2 págs.

__________________

− No almanaque aveirense para 1896 «À Beira Mar» há «Uma carta de Melo de Matos», de Págs. LVII a LlX, propondo solução para o problema do hospital aveirense indevidamente localizado no centro da cidade.

− Nos «Subsídios para a História de Aveiro», de MARQUES GOMES, anda igualmente uma carta de MELO DE MATOS sobre o Forte da Barra.

− Na Revista Engenharia e Arquitectura, (1.º e 2.º vols., de 1891 a 92) publicaram-se também artigos seus acerca de Laboratórios marítimos.

− Em O Instituto, de Coimbra, vols. 38 e 39, de 1891 a 92, encontro ainda «Algumas observações acerca dos §§ 3.º e 4.º do artigo 380.º e outros do Código Civil Português».

− Na Revista de Obras Públicas e Minas, vol. e ano que não posso neste momento precisar, publicou ele uma memória sobre a arborização das dunas da Ria de Aveiro.

E não sei, finalmente, se a MELO DE MATOS se não deva atribuir a autoria duma esplêndida e bem fundamentada / 250 / «Representação aprovada no comício que em 3 de Abril de 1893 se realizou na cidade de Aveiro com o fim de pedira estabelecimento de um serviço de dragagens na Ria da mesma cidade», impressa em Aveiro naquele ano, em 11 pags. de grande formato. Assina-a, como Presidente, CASIMIRO BARRETO FERRAZ SACCHETTI; como Secretários, EDMUNDO DE MAGALHÃES MACHADO e JOSÉ MARIA DE MELO DE MATOS; ora o exemplar da nossa colecção apresenta dedicatória manuscrita ao Visconde de Balsemão, Governador Civil do Distrito, traçada, indubitavelmente, pela mão de MELO DE MATOS, embora o oferecimento seja de A Comissão promotora do Comício; se o indício não ê decisivo para a identificação que sugerimos, o teor da representação e os valiosos conhecimentos técnicos aduzidos reforçam a nssa suposição (4).

Ao Barão de Cadoro e a MELO DE MATOS se deve, pois, esse projecto de exposição alusiva à Ria de Aveiro, lamentavelmente não realizada, por motivos que de todo desconhecemos, mas dignamente pensada e proveitosamente possível, ainda hoje, tal qual era proposta, apesar dos grandes progressos conseguidos na técnica e na sistematização da ciência etnográfica de então para cá.

Sobretudo − e é este um dos mais elevados merecimentos do projecto − MELO DE MATOS sentiu a unidade geográfica e etnográfica da Ria e região envolvente, por ela condicionada, realidade a que nem sempre se tem devidamente atendido em arrumações territoriais de que, alias, aqui não cumpre tratar.

Trazendo de novo a público o magnífico programa duma exposição que se não realizou ainda e que, não obstante, encerra em si as bases reais dum autêntico Museu regional, grato nos seria se com estas páginas despertássemos na moderna geração aveirense, a que não falta cultura nem possibilidades de realização, o ânimo necessário para corporizar o elevado pensamento de MELO DE MATOS, do mais puro regionalismo ribeirinho, que das páginas imediatas brilhantemente ressurge em perdurável ensinamento a todos nós.

 

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(1)Etnografia e História − Bases para a organização do Museu Municipal de Ílhavo. Ílhavo, 1933.

(2)Lisboa, Imprensa Nacional, 1896. 46 págs. 

(3) − Da parte da sua carreira pública decorrida já fora de Aveiro, apurámos ainda ter desempenhado, após a estada em Braga, os cargos de Chefe de Secção na Repartição das Estradas, Director das Obras Públicas no distrito do Funchal (1900). Chefe de Repartição da Propriedade Industrial, Director do Montepio Oficial, Membro da Comissão de Explosivos e da Comissão de Verificação de Pontes.

(4) − Oportunamente reeditaremos esse valioso texto local nesta mesma colecção de reimpressões patrocinada pelo Arquivo do Distrito de Aveiro..

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