L. Chaves de Almeida, Um túmulo de rara importância arqueológica da escola de Coimbra, Vol. XIII, pp. 124-128

UM TÚMULO DE RARA IMPORTÂNCIA

ARQUEOLÓGICA DA ESCOLA COIMBRÃ

CADA vez me convenço mais de que a história do nosso património artístico está muito longe do que seria para desejar, impondo-se como base para ela a visita aos respectivos monumentos.

O túmulo do cavaleiro e esforçado guerreiro de D. Afonso V, João de Albuqerque, em Aveiro, para o qual chama a atenção dos estudiosos o Senhor Dr. FERREIRA NEVES, no fasc. n.º 14 do Arquivo do Distrito de Aveiro, de 1938, motiva as presentes considerações.

O artigo deste Ilustre Professor não é um estudo de erudição artística, mas de documentação iconográfica, cabendo-lhe a grande honra de ter exumado do esquecimento e criminoso abandono em que estava esta magnífica peça, restos de uma escola prestes a extinguir-se já à data em que foi executada.

O seu justo apelo, felizmente, despertou simpatias de verdadeiros amigos do famoso túmulo, que levaram o seu esforço até conseguirem a colocação dele no Museu Regional como documento digno de apreço e estudo.

Reforça o seu trabalho com uma proveitosa colecção de documentos referentes à pessoa de João de Albuquerque e sua mulher Dona Helena Pereira, marcando a sua vida desde que mandara fazer o túmulo em que ambos repousariam.

Quando em 1945 foi finalmente arrancado da parede a que estava argamassado, verificou-se então que necessitava de ser limpo com o maior cuidado e carinho.

Como recentemente se tenha concluído esse trabalho, tive a honra de ser convidado a visitá-lo pelo meu Ilustre Amigo e Senhor Doutor João Pereira Dias; para lá partimos em 25 de Abril último.

Interessado por tão raro monumento, seja-me permitido expor a minha opinião artística sobre as observações aí colhidas. / 125 /

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Esta arca tumular é obra da Escola Coimbrã (daí o meu verdadeiro interesse) dos fins do século de quatrocentos (1478) de estreito parentesco com as pias baptismais da Sé Velha e de Leça do Bailio, trabalhos incontestavelmente da mesma oficina, e feitas em pedra de Ançã; tem as seguintes dimensões: 2,30 de comprimento, 0,90 de largura por 0,95 de altura.

Principiarei por mostrar a arca feita aqui e seguida muito de perto por João de Albuquerque, que certamente teria a sua residência habitual nesta cidade (talvez sua terra natal) ditando ao mestre pedreiro o significado simbólico das paredes da arca em que se salientam os escudos heráldicos, seu e de sua mulher, já então, havia muito, falecida.

Em cada uma das faces laterais tem dois brasões seguros por quatro anjos, cujas asas graciosamente vão terminar em longas e movimentadas folhas de carvalheiras em estilo gótico.

No facial direito, os dois escudos têm um significado iconográfico tocante, mesmo cheio de ternura do marido para com a falecida esposa.

O de Dona Helena é o que mais próximo da cabeceira está, tendo na metade da esquerda do brasão as armas do marido e na outra metade a cruz florenciada dos Pereiras; o brasão é circundado por uma coroa de martírio em que intencionalmente faltam os clássicos espinhos.

O do cavaleiro João de Albuquerque é em forma de concha como os escudos de guerra, com a abertura para observar os movimentos do inimigo nos combates de cavalaria, e, como o da esposa, é igualmente circundado por uma coroa mas de flores e belos frutos.

Na face, aos pés, o simbolismo é igualmente digno de simpatia, atendendo à leitura da epígrafe estudada pelo Senhor J. M. CORDEIRO DE SOUSA, que diz: «Com ele jaz a muito virtuosa D. Helena Pereira, uma só sua mulher».

Aí o escudo é quadrado em lisonja e seguro por duas figuras entre folhagens, apenas revestidas de pelagem natural; a meu ver, elas devem representar Adão e Eva(1) símbolo da fidelidade conjugal.

Cobre a figurada Eva, com os seios nus, além da pelagem natural, uma longa cabeleira até aos pés; isto deve significar que, para o marido, não existia outra mulher; para a / 126 / mulher, não existia outro homem. Há lá significado mais poético, lembrando-nos o século XV!

Na face da cabeceira está outro escudo com o brasão de João de Albuquerque encimado por uma viseira, seguro igualmente por dois anjos de magníficas roupagens, cruzando-lhe o peito uma estola litúrgica.

A pesada cobertura da tampa é moldurada por um grosso cordão revestido de folhagem de carvalheira, tendo aos ângulos esculpida uma cabeça de animal; no espaço liso sobre a tampa devia de ter sido gravado o epitáfio referente a sua mulher apenas, em letras de relevo.

Eu estou convencido de que logo que João de Albuquerque terminou o contrato com os frades, o túmulo devia ter sido transportado para Aveiro e colocado na sua capela, ao centro, e feita então a trasladação das cinzas de sua mulher(2).

A arca devia primitivamente pousar em pequenos blocos de pedra, possivelmente esféricos e não exceder a altura da barba de qualquer pessoa, para se poder ler o que ali estava escrito.

Esta é a minha opinião enquanto à arca propriamente dita, porque a jacente e os leões nada têm que ver com o trabalho primitivo; as razões saltam aos olhos do observador atento.

Principia porque a pedra em que está feita não é a mesma da arca; é das pedreiras de Portunhos, mais branca do que a de Ançã e menos oxidável.

Segunda razão, é a estátua ser uma aplicação de que não há exemplo, porque o vulto em regra geral é tirado da pedra da própria tampa.

Terceira, é o estilo em que este trabalho está feito, puramente manuelino, distanciando-se da arca algumas dezenas de anos.

Outro motivo para reforçar o exposto, são os vestígios de terem sido serradas simetricamente as duas pernas entre os joelhos e os pés; chamei para o caso a atenção do meu Ilustre Amigo e Senhor Doutor Pereira Dias, mostrando que se me afigurava a estátua ter ficado mais comprida do que o vinco marcado na tampa, vendo-se por isso o artista obrigado a acertá-la.

Esta minha observação não encontrou apoio nas pessoas presentes, que atribuíram a mutilação ao facto da estátua se ter partido quando das muitas mudanças que lhe fizeram.

Há mais razões, se estas não bastarem: são as proporções avantajadas dos acrescentos, que se não harmonizam com o todo da arca; vê-se bem que foram feitos longe da vista da estátua, tendo o artista executado a obra sem a ter / 127 / visto, sujeitando-se às medidas que lhe forneceram, nem sempre rigorosamente exactas.

Túmulo de João de Albuquerque antes de ser retirado para o Museu de Aveiro, onde actualmente se encontra.

Num problema de arte como este, tudo deve ser bem estudado, mesmo os mais insignificantes pormenores; veja-se ainda isto.

Julgo que se não deve pôr de parte a opinião do cronista da Ordem, Frei LUCAS DE SANTA CATARINA, ao referir-se ao / 128 / túmulo, quando ainda estivera ao centro da quadra da capela de Jesus; a confusão deve ter partido quando dos melhoramentos (acrescentos) aí feitos da estátua e leões... E feitos por quem?

Eu julgo ser possível que por iniciativa de algum dos netos de João de Albuquerque, este Jorge Moniz talvez, que houvesse ido de visita aos túmulos de seus avós em Vila do Conde, na altura em que ali se estavam lavrando os motivos Renascença, que lá se vêem, por artistas de Coimbra.

E que ao passar, no seu regresso, por Aveiro, achasse pobre demais o túmulo que ali guardava as cinzas dos avós, resolvendo então mandar-lhe fazer a estátua e os leões como em regra geral todos os moimentos por ele vistos têm.

Agora mais do que nunca entendo que estas duas obras, a de Vila do Conde e a de Aveiro, estão ligadas pelas épocas e artistas que fizeram os melhoramentos que estão prendendo a nossa atenção.

A data em que a arca em questão foi feita, último quartel de quatrocentos, a escola francesa do Renascimento em Coimbra não havia influenciado os seus artistas, agarrados aos seus velhos processos herdados do Gótico prestes a extinguir-se.

Resta-me fazer uma última consideração: a epígrafe então aberta, em torno da famosa arca, foi gravada quando da colocação da jacente e dos leões, pelos artistas que ali foram assentar essas peças e não o devia ter sido em vida de João de Albuquerque.

O autor da preciosa arca deve ter sido um artista para nós mal conhecido, como muitos dessa época, em consequência do seu isolamento e da sua exagerada modéstia.

Convém ainda aludir ao brasão desta família, encontrado na Sé Velha e existente no Museu Machado de Castro; é do século XVI, em estilo manuelino, assenta sobre uma oval circundada por uma corda; por estar muito mutilado, não se podem ler os caracteres ali gravados.

Coimbra, 11 de Maio de 1947.

LOURENÇO CHAVES DE ALMEIDA
(Ferreiro de Arte)

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(1)Na Catedral de Valladolid existe um grupo identicamente revestido.

(2)Falecida havia oito anos. 1470. 

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