Vaz Ferreira, Brasão de Justas., D. Inês de Castro e o calendário romano, Vol. XIII, pp. 114-123

BRASÃO DE JUSTAS, D. INÊS DE CASTRO

E O CALENDÁRIO ROMANO

DEPOIS destas notas escritas, hesitei no título.

Fui levado da simples descrição de uma pedra de armas a longínquas paragens históricas e até à cúria romana.

Os casos vieram enganchados como as dulcíssimas cerejas deste ano e vi-me, por último, a braços com uns propositados enganos do nosso primeiro cronista mor.

Preparem-se os leitores, se os tiver, para uma digressão através dos tempos e do modo de os contar.

O título, portanto, para não dizer tudo, o que o tornaria muito comprido, só, diz muito pouco.

Posto isto, comecem os leitores e, se tiverem paciência, ficarão sabendo tudo quanto escrevi.

Quem chega à Feira nos comboios do Vale do Vouga desce para o centro da vila pela rua do dr. Santos Carneiro, agora a pavimentar-se em paralelipípedos.

A meio desta entrada da minha terra, um pouco antes da nova cadeia comarcã, abre-se à esquerda um caminho pouco frequentado que segue para trás do cemitério.

Fica-lhe em frente o íngreme cimo de outro atalho vindo de Pombos através da Lameira.

Do lado do poente do caminho da esquerda, um pouco acima da rua, há uma antiga capela dividida pelos largos degraus de pedra da escada exterior das quase ruínas da velha «Casa de justas» que ainda conserva duas janelas guarnecidas de cantaria bem lavrada. Já a ela me referi num artiguelho do volume XI do Arquivo a pág. 174 (n.º 43) para mostrar que o marquês de Pombal era oriundo da Feira. / 116 /

Para o sul termina essa Casa de Justas por um corpo saliente de mais ligeira construção e passando em ponte por cima do caminho.

Estado actual da Casa de Justas e capela

Sobre a porta do que foi capela dessa moradia fidalga conserva-se um escudo bojudo, terminando no cimo em ponta formada por duas curvas reentrantes. É esquartelado, tendo alternadas as armas dos Leitões: as três faixas em relevo, nos primeiro e quarto quartéis e nos segundo e terceiro as dos Coelhos, como as descreve a quintilha de JOÃO RODRIGUES DE SÁ, senhor de Matosinhos:

Em campo doiro hũ lyão
de mui brava acatadura
coelhos por orladura,
dos Coelhos se dirão
armas sem outra mistura

Esta velha casa e capela abandonada é quanto resta do solar de uma família orgulhosa de descender do Pero Coelho, cujo coração D. Pedro o Cru trincou também cru. Era o Pero Coelho senhor de Felgueiras e casara com D. Aldonça Vasques, neta do conde D. Gonçalo Pereira. / 116 /

Um filho deste conde, também D. Gonçalo Pereira, começou por ser prior da freguesia de S. Nicolau da vila da Feira em 1296 e depois foi deão da sé do Porto, bispo eleito de Évora, bispo de Lisboa aos 21 de Agosto de 1322 e arcebispo de Braga em 1328, morrendo a 3 de Março de 1358. Além de sacerdote era guerreiro. Derrotou em 1336 o exército castelhano de D. Fernando Rui de Castro, que invadira Portugal, e tomou parte na batalha do Salado aos 30 de Outubro de 1340. E além de sacerdote e de guerreiro era apaziguador e ajudou a rainha D. Beatriz a compor a contenda entre D. Afonso IV e o filho D. Pedro. Este arcebispo guerreiro e apaziguador, assim como acumulava qualidades, ia acumulando bastardos e entre eles teve um que foi o dom frei Álvaro Gonçalves Pereira, balio da Ordem dos Hospitalários em Leça e, por isso, crismado por alguns em balio de Malta e prior do Crato. No tempo dele, ainda D. Sancho Il não doara o Crato à ordem, que só em 1530 adquiriu a ilha de Malta cedida por Carlos Quinto.

Seria este antigo, prior de S. Nicolau da Feira quem atraiu para esta vila os Coelhos aparentados com ele pelo casamento do Pero com uma sua sobrinha?

O meu querido conterrâneo e amigo D. FERNANDO DE TAVARES E TÁVORA numa carta publicada na Gazeta Feirense de 15 de Novembro de 1909 referia-se assim à Casa de Justas:

«O que lá existe ainda, sobre a porta da capela, é uma tosca e singela pedra de armas, sem elmo nem timbre, onde em uma das palas se distinguem os coelhinhos que recordam o feroz Pero Coelho. Coelho era ele; mas tinha sentimentos e impulsos de muito maior bicho, se apocrifa não é a palavra que lhe atribuem, única tal vez que possa reproduzir-se, das muitas e boas que teria jogado ao guloso D. Pedro que, só para prová-lo, lhe tirou o coração.

«Encontrá-lo-hás mais forte que de um leão e mais leal que de um cavalo». Com esta embatucou decerto el rei o senhor Cru, que, se algum dia se julgou com seus briosos quês de leão, não teria ainda pensado na honrosa semelhança que o aproximava do seu corcel de batalha. É assim a natureza humana; de tudo o que é bom queremos ter sempre uma boa parte: um bocadinho de leão, um bocadinho de cavalo. O perigo desta última percentagem, não sendo rigorosamente doseada, é o coice. Leão de menos, coice de mais. E é vulgar.»

Não resisti a prolongar a citação até estas considerações espirituosas e espirituais. / 117 /

Pois nesse pardieiro desamparado e em ruína, sobranceiro à cadeia nova da vila da Feira, nasceram a bisavó e o avô paterno do grande marquês de Pombal.

 

 
 

Brasão que se encontra sobre a porta de entrada da capela da casa de Justas.

 

Antes, outro ascendente do célebre Sebastião José de Carvalho e Melo nascera também em Justas; mas, filho segundo, seguiu a carreira da burocracia forense e foi enqueredor, contador e escrivão na comarca da Feira. Chamava-se Gaspar Leitão Coelho e casara com D. Cecília Pinto, filha de Pedro de Melo Soares, o do Púcaro e de D. Briolanja Pereira.

Houve aqui na Feira, nos tempos da criação do concelho de Espinho, um advogado e administrador, dr. Rufino Mota, rapaz alegre e com muita graça, que repetia, com especial acentuação de pronúncia, a velha sentença: lendo e meditando / 118 / se alcança o saber. Ora lendo e meditando cheguei por aquela alcunha de louceiro, a identificar o Pedro de Melo Soares na Lisboa antiga do visconde JÚLIO DE CASTILHO, tomo III da 2.ª parte, pág. 20. Cedo a palavra a este meu saudoso dirigente nas primeiras leituras na Biblioteca de Lisboa, a quem, com tanto prazer, ouvia nas instrutivas e deliciosas cavaqueiras em casa da veneranda baronesa de Almeida, nossa vizinha da rua da Barroca, quando ele tinha a paciência de aturar-me e eu só uma dúzia de anos. Agora, vou a mais de meio da sétima...

Voltemos ao púcaro.

O VISCONDE DE CASTILHO conta o caso assim:

«Como se sabe, serviam à mesa dos monarcas os primeiros senhores da corte. Estava uma vez de serviço Pedro de Melo (filho do 7.º senhor de Melo, Martim Afonso de Melo, e de D, Brites de Sousa). Quando atravessava a sala, desequilibra-se, talvez por dar nalgum tapete, inclina a salva, e deixa cair no chão, fazendo-se em astilhas, o malfadado púcaro, que el-rei pedira, e esperava. Riso geral nos circunstantes; confusão indizível no acabrunhado servidor.

Então el-reí... (alma grande! nas pequenas coisas é que se elas mostram!) franzindo o sobrolho, com um franzir que ele sabia, que era de fazer estremecer as carnes, exclamou firme e severo, com o seu modo vagaroso e no tom nasalado que lhe atribui Resende: − A que vem tanto riso? Caiu, sim, o púcaro da mão de Pedro de Melo; mas isso que monta? Nunca lhe caiu do punho a sua valente espada; essa não.

Basta às vezes um dito assim para ressuscitar um morto.

Daí avante, ficou ao Melo a invejável alcunha de o do púcaro, e por ela é conhecido.»

Era, portanto, neto do escorregadio e desastrado fidalgo o desembargador Gaspar Leitão Coelho, filho do enqueredor e escrivão e da D. Cecília. Dele só averiguei ter sido um dos signatários do acórdão de 23 de Agosto de 1607, absolvendo uma Antónia da Costa de ter dado uma tremenda bofetada num alcaide que lhe levantara as saias, com o pretexto de verificar qualquer infracção das leis reguladoras do luxo dos vestidos. Conta o caso RIBEIRO GUIMARÃES no Sumário de Vária História.

Este segundo Gaspar não posso afirmar que nascesse na Casa de Justas; mas é possível que o pai Gaspar lá vivesse no tempo da primeira mulher e antes de ir morar na freguesia da / 119 / da Arrifana. A filha do desembargador Gaspar, D. Luísa de Melo, e o filho desta, Sebastião de Carvalho e Melo, é que com certeza nasceram ali naquele solar.

Esse Sebastião, avô do grande marquês, seguiu como os seus pai e avô a carreira da magistratura, acumulando com a de demandista, pois intentou acção contra os possuidores de morgadios e bens por ele pretendidos. No articulado que li impresso dessa questão se alega «que o Suplicado (Sebastião de Carvalho e Melo) se fazia natural da Vila da Feira, onde se foram avaliar os bens que ficaram de D. Luísa de Melo, e que esta naturalidade tinha o mesmo justificado e que nela se fundara».

Este avô do grande ministro não deixou fama de bom patriota nem figura entre os apologistas da restauração. Era amigo do Miguel de Vasconcelos e chegou a estar encarcerado no Forte por suspeito de participar na traição de Francisco de Lucena. O certo é que a sua ambição nobiliária foi contrariada, vendendo os bens em Cesár e Gaiate, nos arredores da Feira, e nos quais fundara pretensões a pingues morgadios.

Para a Casa de Justas voltou a família descendente de António Soares Coelho, irmão do desembargador Gaspar Leitão Coelho e também filho do escrivão de serventia e da D. Cecília Pinto. Casara o António Soares com D. Brites de Viveiros da Costa e o filho de ambos Estêvão Soares Coelho foi casado com D. Inês Godinho de Andrade Freire e destes foi filha a D. Ana Maria de Viveiros Freire, mãe de vários bastardos do último conde da Feira, D. Fernando. Estes detalhes sobre a família de Justas são-me fornecidos por notas manuscritas de ignoto informador à margem do exemplar do Teatro Genealógico da Biblioteca Municipal da Feira, ao qual já me referi a pág. 47 do volume XI do Arquivo.

Reza a crónica verbal cá da terra que o Manuel de Carvalho e Ataíde esteve hospedado na Casa de Justas, quando veio assistir a uma inquirição de testemunhas na demanda que herdara do pai e ainda transmitiu ao filho. Mas o que de mais evidentemente autêntico resta nesse velho pardieiro é a pedra de armas de Leitão e de Coelho, a atestar que ali foi o solar dos descendentes de um dos brutos matadores da linda Inês, na quinta das Lágrimas de Coimbra, aos 7 de Janeiro de 1355, isto é, no sétimo dos idos de Janeiro da era de 1392.

Nesse tempo regulava-se a cronologia nas Espanhas pelo calendário romano e pela era chamada de César, cujo começo se refere a um tributo lançado pelo imperador Augusto aos habitantes da península e para estes tão revoltante que começou daí a numeração dos anos, trinta e oito antes do nascimento / 120 / de Cristo. Ao ano do nosso almanaque somam-se 38 para achar a correspondente era de César. Portanto, ao dar-se o tal feito apregoado por bom, mas caso triste e dino de memória, decorriam os últimos meses da era de 1392, ano começado nas calendas de Março anterior.

A maneira de contar o tempo usada pelos povos dessa época era muito diversa da forma simplista e numérica de ir dizendo desde o dia 1 até ao último do mês. Em cada um dos meses do calendário romano havia três dias com nome especial: − o primeiro do mês dizia-se calendas, − o dia 5 ou 7 chamava-se nonas, − e o dia 13 ou 15 tinha a denominação de idos. Em Abril, Junho, Agosto, Setembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro eram as nonas a 5 e os idos a 13. Em Março, Maio, Julho e Outubro as nonas eram a 7 e os idos a 15. Uma trapalhada, a que é preciso habituarmo-nos, quando temos de estudar documentos dessa época.

Começavam os meses pelas calendas, que eram o dia um, seguindo porém a contagem para trás. E ainda havia outra diferença do sistema moderno: o ano principiava nas calendas de Março. Portanto os meses de Janeiro e Fevereiro pertenciam à era anterior. Por esta razão, quanto a estes dois meses, à era deduzem-se só 37 para achar o ano cristão correspondente.

O que acontece muitas vezes é, neste caso especial, o escriba referir-se à era das calendas − e não à verdadeira era anterior − que tinha findado na véspera delas. Não é de admirar tal inexactidão.

Como os dias se contavam das calendas, das nonas e dos idos para trás, o segundo dia, a que chamavam pridie ou «véspera», se traduzirmos a palavra, era o dia anterior e o terceiro era a antevéspera das calendas, das nonas ou dos idos. Assim o pridie ou a véspera das calendas de Março vinha a ser o 28 de Fevereiro da era antecedente, que é como quem diz do ano findo ou do próximo passado. O terceiro dia ou antevéspera das calendas de Março era o 27 de Fevereiro e assim sucessivamente. Não digo «e assim por diante», porque era tudo a seguir para trás.

Mas nos anos bissextos o pridie ou véspera das calendas de Março era o 29 ou último de Fevereiro, e o sexto dia das calendas de Março vinha a ser o 25 de Fevereiro, e então o dia 24 chamava-se «bis sexto dia das calendas de Março». Disto provém o nome de bissextos para os anos em que tal acontecia. Depois continuava a numeração inversa até aos idos.

Por outras palavras: o dia acrescido nos anos bissextos não era o 29 de Fevereiro; mas um dia intercalado entre o 25 e o 23. Fevereiro não tinha o dia 29, tinha dois dias 24: o bis e o 24. / 121 /

Mas cuidado. O ano bissexto no calendário romano era o anterior ao bissexto no nosso almanaque actual, porque era aumentado um dia ao 24 de Fevereiro, no fim do ano. Só agora o ano começa no princípio de Janeiro.

Já se vê por isto que o dia primeiro de Janeiro, nesse tempo, e até 1422 em Portugal, era um dia vulgar, como outro qualquer; porque o dia de ano bom era nas calendas de Março. As de Janeiro eram o primeiro dia do undécimo mês do ano, sem especialidade nenhuma, como agora o primeiro de Novembro.

Õ nosso D. Pedro I, o tal Cru, depois de trincar o coração cru do Pero Coelho, declarou aos 12 de Junho de 1361, peremptoriamente e sob juramento, que tinha casado com D. Inês de Castro. Testemunharam esta declaração Álvaro Pereira e Gonçalo Pereira, irmãos daquele ascendente dos condes da Feira Rui Pereira, o Bravo, que morreu na gloriosa manhã de 18 de Julho de 1384, a bordo da nau Milheira, com um virotão espetado entre os olhos, quando levantara a viseira para enxugar o suor.

O então bispo da Guarda, D. Gil, jurou que, sendo deão, casara D. Pedro é D. Inês, havia sete anos, mas não se recordava da data.

Estêvão Lobato, criado de el-rei, foi quem precisou ter em Bragança o deão casado D. Pedro e D. Inês em o primeiro dia de Janeiro.

Tinham portanto casado três anos antes de ser morta a mísera e mesquinha.

FERNÃO LOPES durou, como eu, oitenta anos, nascendo ainda no século XIV e, sendo desde 1418 guarda da torre do castelo de Lisboa, hoje chamada Torre do Tombo, assistiu ao promulgar da lei de 15 de Agosto de 1422, na qual se mandou substituir o calendário romano pelo almanaque cristão. No seu tempo de rapaz, e até mesmo nas suas funções oficiais de bibliotecário, usou ainda da era hispânica de César. Pois leva uns capítulos da sua crónica a discutir a falta de memória do D. Pedro I, chegando a escrever «em dia primeiro de Janeiro que é primeiro dia do ano», fazendo-se esquecido de que no tal dia não tinha começado ano nenhum e de que 1354, ou para melhor dizer: o ano 1392 da era de César principiara nas calendas de Março e quando o primeiro de Janeiro tinha sido um simples dia vulgar do undécimo mês do ano anterior.

Devem consignar-se atenuantes ao bom do cronista mor.

Houve uma época de transição, em que já se indicava o dia pelo almanaque cristão e a era ainda pelo calendário ibérico.

Dos tempos de D. Fernando e D. João I existem muitos diplomas assim datados, hibridamente, e nestes é vulgar ser / 122 / a era indicada pelo número correspondente ao ano cristão, aumentado de 38, mesmo para Janeiro e Fevereiro. Nestas condições estão as cartas régias de 27 de Janeiro de 1382 e 10 de Fevereiro de 1372 publicadas a págs. 138 e 139 do volume I e 78 e 79 do volume VII do Arquivo, referentes à Terra de Santa Maria da Feira, porque a primeira é, com certeza, posterior à de 30 de Junho da era de 1420, também publicada a pág. 142 do mesmo volume I. A Terra de Santa Maria foi doada ao irmão da D. Leonor Teles em 1372; mas, como o alcaide do Castelo da Feira, Gonçalo Garcia de Figueiredo, era amigo e partidário da rainha, conservou-se-lhe a alcaidaria. Tendo morrido por 1378, ao renovar-se a doação ao já conde de Barcelos, em 1382, para ele e seus descendentes, foi-lhe mandado entregar o Castelo da Feira, como pertença e cabeça da mesma Terra.

Sendo portanto a carta de 30 de Junho de 1382 consequência e complemento da de 27 de Janeiro da era de 1420, tem esta de ser anterior e, por isso, do mesmo ano de 1382.

O que admira é o FERNÃO LOPES, insistindo tanto nesse esquecimento do D. Pedro I da data precisa do seu casamento, cometer o erro grosseiro de atribuir a bula de dispensa apresentada em 1352 à autoria do papa João XXII, Jacques de Euse, morto desde 1334, dezoito anos antes e quando o noivo só tinha treze.

Sendo de João XXII a bula teria a data de 18 de Fevereiro de 1325 (nono ano do seu pontificado), quando D. Pedro não tinha ainda cinco anos de idade. A bula é datada de Avignon no «duodécimo das calendas de Março, do nosso pontificado ano nono». É dirigida ao «infante Dom Pedro, primogénito do muito amado em Cristo nosso filho muito claro rei de Portugal e do Algarve Afonso» e o santo padre declara-se «demovido àcerca de tua pessoa com especial favo» concluindo «querendo condescender a tuas preces e de el-rei D. Afonso teu padre». Claramente se refere às preces do infante D. Pedro que, com certeza, as não faria aos cinco anos nem em tal idade se lhe dirigia directamente o papa.

Nem a bula poderia ser anterior à viuvez de D. Pedro e a primeira mulher deste, D. Constança Manuel, morreu em 1345, onze anos depois de falecido o papa João XXII.

A bula deve ser com toda a evidência de Clemente VI, Pedro Rogério, de cujo pontificado o nono ano decorreu desde 19 de Maio de 1350 a 18 de Maio de 1351, tendo assim a data equivalente a 18 de Fevereiro de 1351, ou seja nono das calendas de Março da era de 1388, precedendo mais de um ano o casamento presidido pelo deão feito bispo e atempado pelo Estêvão Lobato. Esta precedência resulta de Janeiro de uma era ser depois de Março e até de Dezembro da mesma era. / 123 /

O FERNÃO LOPES, influenciado pelas argúcias jurídicas do João das Regras, queria deixar bem evidente a primazia do filho da Teresa Lourenço, indiscutivelmente bastardo, e não lhe convinha indicar argumentos favoráveis à legitimação dos filhos da linda Inês. Para fazer a boca doce ao D. Duarte, já que não podia legitimar-lhe o pai, punha em duvidosa aceitação a legitimidade dos tios, com o subterfúgio de errar a autoria da bula, mantendo a probidade histórica de a transcrever na íntegra e com a data certa. Sendo esta referida ao pontificado e visto ter mudado o nome ao papa, julgou indecifrável o enigma. Conseguiu, pelos séculos além, que nenhum investigador se lembrasse de verificar em algum velho bulário a existência da dispensa concedida por Clemente VI. É que a grande maioria dos estudiosos de história está desatenta ao calendário.

Bem faço eu estudando sempre os factos com o almanaque à mão, por medo dos anacronismos.

Feira, 12 de Junho de 1947.

VAZ FERREIRA

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