Luís Gomes de Carvalho, Memória descritiva da abertura da barra de Aveiro, Vol. XIII, pp. 94-113

MEMÓRIA DESCRITIVA

OU

NOTÍCIA CIRCUNSTANCIADA DO PLANO

E PROCESSO DOS EFECTIVOS TRABALHOS

HIDRÁULICOS EMPREGADOS NA

ABERTURA DA BARRA DE AVEIRO

SEGUNDO AS ORDENS DE S. A. R.

O PRÍNCIPE REGENTE NOSSO SENHOR

 

POR

 

LUÍS GOMES DE CARVALHO

 

TENENTE CORONEL DO REAL CORPO DE ENGENHEIROS;

MEMBRO DA REAL SOCIEDADE MARÍTIMA, MILITAR E GEOGRÁFICA;

DIRECTOR E INSPECTOR DAS OBRAS DA MESMA BARRA

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SEGUNDA PARTE

SECÇÃO I

Resultado ou consequências da nova barra, supondo-a já aberta em O C V g

7. Suponhamos pois aberta já a nova barra e fixa em O; vejamos se ela desempenhará os fins desejados, isto é, se os campos serão escoados e restituídos à lavoura, e à sua antiga abundância; se as marinhas serão escoadas da água doce, e terão também as competentes marés salgadas para fazerem sal; se a saúde pública será restaurada; e além disto se esta barra será funda e própria para receber os grandes vasos do comércio, e por consequência capaz de restaurar completamente estas comarcas, e particularmente Aveiro e o seu porto. Para o provar se examinará: 1.º − Se Aveiro já em algum tempo esteve na posse dessas vantagens; 2.º − os motivos dela; 3.º − quais as causas que as fizeram desaparecer / 95 / inteiramente; 4.º − se estas causas ruinosas serão todas removidas pela nova barra projectada e, por um pouco agora, suposta aberta em O.

 

ARTIGO I

Prosperidade de Aveiro demonstrada por factos

8. A prosperidade de Aveiro é um facto demonstrado por muitos outros históricos; eu só referirei entre os mais modernos, e incontestáveis os que bastam para o provar. 1.º facto: Aveiro que hoje está reduzido a 900 fogos miseráveis, no ano de 1685 tinha 1.710 fogos; e em 1575 chegava o seu número a 2.500 que deviam além disso ser mais abastados, porque o aumento da população é uma consequência natural das facilidades, riqueza e vantagens que um pais oferece à felicidade da espécie humana, para a atrair e propagar.

9. Segundo facto: em 1585 tinha a marinha de Aveiro 60 navios próprios destinados à pesca de bacalhau, cujo comércio se perdeu e passou aos ingleses: além destes 60 navios havia mais de 100 embarcações costeiras, que transportavam o sal de suas marinhas para as nossas províncias do norte, e para as costas de Espanha; tudo isto desapareceu de tal modo, que não restam hoje nem os vestígios de uma só embarcação como já mencionei.

10. Terc6eiro facto: a lavoura dos campos, que acabou inteiramente até certo ponto rio acima, isto é, até onde a estagnação vai chegando, foi muito florescente, podendo servir de exemplo da antiga fertilidade os de Estarreja, que pagavam de ração 5 para 6.000 alqueires de milho e feijão às freiras de Lorvão, como consta dos livros da casa de Esgueira; os quais nada produzem actualmente; esses campos estão hoje convertidos em um pântano permanente; cujo junco e outras plantas aquáticas que produz andam arrendadas anualmente por 7.200 reis. O mesmo aconteceu aos de Vilarinho, Cacia, Sarrazola, Murtosa, S. Martinho de Salreu, Fermelã, Canelas, parte dos de Angeja, os de Frossos, etc. que estão uns já inteiramente perdidos, e outros quase de todo arruinados; privando esta comarca (entrando também os terrenos e ilhas da ria) de quase milhão e meio de alqueires de milho e feijão, ou seu valor de produção anual; como se verá logo que todo o mapa dos campos esteja levantado.

11. Quarto facto: esta alfândega rendeu antigamente grandes somas, e delas se fizeram aplicações pelos senhores reis para hospitais, e para a construção de fragatas na Ribeira da cidade do Porto; e no ano passado de 1801 rendeu a mesma alfândega 4.000 reis cativos dos ordenados e algumas despesas / 96 / ordinárias da mesma, como fui informado pelo juiz dela e desta cidade Clemente Ferreira França que servia de juiz da mesma alfândega.

12. Quinto facto: lembram-se os actuais habitantes deste país ser mais sadio pelo efémero benefício do rompimento do Vouga pelo Rigueirãà da Vagueira; e ainda hoje é nas estações frias e chuvosas nas quais não pode ter lugar a fermentação das águas estagnadas e dos corpos e matérias nelas envolvidos a ponto de fazer a insalubridade do mesmo país, que no estio se manifesta com indizível furor.

13. Sexto facto: muitas pessoas se encontram ainda que se lembram haver nesta cidade mais de 15 ou 16 casas com sege montada; hoje apenas restam duas, e essas subsistem porque as casas a que pertencem têm noutra parte uma avultada porção das suas rendas.

14. Sétimo facto: Aveiro assim como Esgueira(1) estão cheias de edifícios arruinados e caídos; grandes porções de bairros da cidade estão convertidos em quintais, como já disse; tudo isto atesta a grande população, riqueza, vantagens, e comércio de Aveiro nos tempos passados. Hoje Aveiro quase não existe; apenas restam alguns fragmentos e algumas testemunhas da sua total decadência.

15. As causas daqueles bens, de que Aveiro gozou, se explicarão indagando as que as fizeram desaparecer, as quais foram, como se verá abaixo, as consequências necessárias do afastamento da barra da sua antiquíssima e primitiva posição ao norte para a actual situação, seis léguas para o sul a respeito da embocadura D do Vouga na ria, perto da Murtosa; afastamento tão notável e visível, que há 45 anos ela tem corrido todo o espaço de quase légua e meia que vai da Vagueira, onde se achou acidentalmente àquela época, à barra actual; e andou 2.100 braças nos 24 anos desde 1778 até este ano de 1802(2).

/ 97 / [Vol. XIII - N.º 50 - 1947]

Desenvolvamos tudo isto, e examinemos qual seria a primitiva posição da barra de Aveiro, ou foz do Vouga; quais foram as causas do seu afastamento progressivo para o sul; o que explicará com evidência a prosperidade passada, a decadência progressiva, e o cúmulo dos males actuais.

ARTIGO II

Da antiga posição da barra de Aveiro

16. O rio Vouga tem a sua embocadura D nesta ria, onde entra com uma direcção quase norte; e porque o terreno da Murtosa, e de toda a marinha que lhe fica naquela mesma direcção, é baixo, plano e formado de areias e conchas, desde a sua superfície (que pouco se eleva acima das águas da ria) até uma profundidade muito inferior às mesmas águas, o que bem claramente indica ter estado ali o mar, ou que ele para ali arrojou aquelas matérias ajudado dos ventos, que arrastam para mais longe o que o mar lança nas praias; quando aquele mesmo terreno por muito baixo podia receber aqueles depósitos; em ambos os casos nada havia então que pudesse opor-se, nem desviar a corrente do Vouga: ou em fim que esse terreno foi cavado por este rio quando, passando por ali, cavou seu leito; de qualquer maneira a consequência rigorosa é que o Vouga deveu primitivamente ter o seu leito sobre a marinha da Murtosa para o norte, e a sua foz entre a Torreira e Ovar pelo menos.

17. Outra prova desta verdade é que a cale grande, tão larga e tão profunda, como se vê do mapa e sondas, a qual da Murtosa para Mondazel, e dali para a barra, é o mesmo leito do Vouga na ria, e por ele cavado; esta mesma cale grande se estende ainda hoje 3 léguas ao norte da Murtosa até quase Ovar, não obstante séculos de sucessivos entupimentos pelas areias que os ventos lhe lançam, e pelos depósitos arrastados pelos regatos que ali entram, e onde ficam sem corrente sensível, e jamais capaz de os repelir; o que mostra que essa parte da cale grande ainda existente até Ovar / 98 / não pode ser senão obra do Vouga e do mar com suas marés na foz do mesmo; e faz ver que a foz deste rio, vindo do norte para o sul, correspondeu sucessivamente a todos os pontos da mesma cale grande em cuja época se profundou ou foi formada do mesmo modo que o foi do Mondazel para a barra; pois nem o mesmo Vouga, a não ser na sua foz ou barra, onde as marés correm com tão violentas correntes, abre ou podia abrir tão largo e profundo álveo(3); e muito menos podia então essa cale grande ser obra dos pequenos regatos que ao norte do Vouga entram na ria da Murtosa até Ovar; cujas poucas águas, e até sem queda ali, nenhum álveo fundo e largo podiam ter escavado; antes pelo contrário só poderiam concorrer e efectivamente concorrem, para o seu entupimento, depositando ali o que as suas águas arrastam do país que os alimenta.


ARTIGO IIl

Das causas do afastamento da barra ou foz do Vouga, da sua primitiva situação para o sul

18. Este rio, assim como todos os que recebem as suas águas de terrenos montanhosos e vizinhos, transportam nas suas correntes e mais quando vão cheios, as terras, e tudo quanto as águas escavam no país que atravessam, e as vêm depositar em grande parte na sua embocadura pouco dentro no mar, onde a corrente do rio diminui, e totalmente se aniquila, assim pela inércia da massa fluida indefinita em que entra, como pelo choque das ondas que vêm quebrar-se perpendicularmente nas praias, e foz dos rios. Estas matérias envolvidas nas águas correntes, e levadas até certa distância dentro do mar, de lá são arrojadas depois pelo contínuo esforço das ondas em direcção perpendicular às praias, e vêm no estio obstruir as embocaduras dos mesmos rios, que nessa estação têm menos força para as repelir; e as outras são pelas mesmas ondas, e depois pelos ventos, encostadas ao longo das praias, quando o terreno é baixo como aqui, formando uma barreira de areias entre o oceano, e o país contíguo, que se eleva muito e alarga continuamente.

19. Formadas assim as dunas ao longo destas praias, fica bem claro, que sendo os ventos nortes os mais secos, mais gerais, e constantes nesta costa, as areias devem ter um movimento progressivo para o sul arrastadas pela violência / 99 / e permanência dos nortes; e por consequência elas estreitarão daquele lado os rios que atravessam as dunas do nascente ao poente para se lançarem no mar; e porque um mesmo rio precisa de uma determinada largura para despejar as suas águas com a corrente que esteja em equilíbrio com a resistência das areias dos lados ou margens do mesmo rio, segue-se, que tanto entupirão estas o álveo pelo lado do norte, quanto o mesmo rio alargará para o sul, cortando deste lado igual porção à que os ventos entupirão daquela parte para moderar a corrente e restabelecer o equilíbrio alterado: efeitos que serão tanto mais rápidos e visíveis, quanto maior for a afluência das areias ao longo das costas do mar; flagelo que se manifesta com mais furor há dois para três séculos a esta parte pela devastação das matas, e outras causas não menos influentes, de que muitas são inevitáveis.

20. Logo, se o local em que o Vouga entrar no mar, atravessando as dunas desta costa, não oferecer um obstáculo invencível do lado do sul a que se encoste, e que segure o mesmo rio, então a sua embocadura ou foz, qualquer que seja a sua posição ou direcção, caminhará continuamente para o sul até encontrar esse obstáculo e apoio; ou até que diminuída a sua corrente, e filtradas as suas águas através de uma longa e larga massa de areias, a sua embocadura se tape no estio, ou princípio de outono, quando algum temporal lançasse muita areia na foz do mesmo; tempo em que o rio teria pouca força para as repelir; e resultasse uma inundação, que levantando-se depois acima do nível das dunas(4) as rompesse na parte mais baixa delas para se lançar no mar, e resultasse desta catástrofe uma barra, que poderia ser melhor ou pior, conforme a situação local do ponto onde rompesse (e que seria provavelmente o mesmo onde se tapasse, porque ali ficaria mais baixo e mais estreito o areal); mas sempre seria precedida das ruínas no país; estes períodos porém devem ser no Vouga bem afastados uns dos outros para os podermos observar, ou nos ser transmitido o seu conhecimento, e menos achar a lei que segue a marcha de tão extraordinários acontecimentos nas circunstâncias de um rio e foz como a do Vouga.

 

ARTIGO IV

Como o afastamento da barra para o sul motivou a ruína do país e da mesma barra

21. O que venho de expor (18, 19, 20) explica bem como a barra de Aveiro ou foz do Vouga esteve primitivamente ao norte da Murtosa, e perto de Ovar, e a sua marcha sucessiva para o ponto onde ela se acha actualmente; e mostra a razão porque o dique A B C, que abrir a barra(2, 3) se deve continuar até à baixa-mar para servir de encosto ao Vouga, fixar a sua foz, e fazer permanente ali a mesma barra a fim de que não possa mais fugir para o sul ao longo da costa, pois além desse grande inconveniente, ela não seria profunda se a corrente das águas na foz não ficasse dirigida sempre contra um mesmo, e determinado ponto do banco na barra.


ARTIGO V

Do estado da barra quando ela esteve perto, ou quase defronte da embocadura D do Vouga nesta ria


22. Vejamos agora qual terá sido o resultado da barra na primeira posição da foz do Vouga ao norte da Murtosa, v. gr., na Torreira, e daqui até ao bico do Mondazel; e quais os efeitos resultantes da sua marcha progressiva (19) para o ponto onde ela se acha actualmente.

Quando a barra estivesse da Torreira até ao Mondazel, v. gr., muito perto da embocadura D do Vouga nesta ria (plana quase nivelada e pouco superior no verão como se verá ao nível médio, ou nível de meias marés do mar), o declive natural deste rio sobre o mar devia ser muito sensível, rápido, e por consequência as cheias seriam menores e de menos duração pelo mais pronto expediente das águas para o mar; e como pela mesma razão elas 'profundariam mais o álveo do rio, este podia também melhor conter as mesmas águas nas enchentes para as minorar; e a barra também seria mais funda e mais larga pelo maior volume e mais vigoroso esforço das do Vouga nos mesmos tempos: e por todos estes motivos não haveria inundações grandes nem duráveis, e menos os pântanos permanentes que hoje existem; pois tudo seria escoado prontamente para os álveos fundos dos ramos do rio, e destes para o mar pela barra, e igualmente mais larga e mais funda do que é agora, como ainda se deixa ver claramente pelas sondas da cale grande do Mondazel até à barra para onde decrescem; e apesar de muito que se acha entulhada, ela é mais funda defronte ou para oeste da embocadura / 101 / D do Vouga, e diminuir para o norte e para o sul; e assim devia ser, porque para ambas as partes se afastava a barra da embocadura do Vouga, e do grande receptáculo da ria, onde ela é mais espaçosa.


23. Também é evidente, que levantando as marés do oceano bons 16 palmos nas nossas barras em preia-mar, esta elevação das águas na maré cheia daria, pela proximidade da barra, um grande declive sobre o Vouga, e sobre a ria, que então era menor e não devia passar da Senhora das Areias, pois a parte da mesma, que actualmente se estende para o sul da dita capela, é obra posterior do Vouga na sua passagem para as costas de Mira
(5), e por consequência dava grandes marés salgadas, e havia uma grande alternativa no nível das águas de baixa-mar a preia-mar sobre as marinhas de Aveiro para as escoar, meter águas e fazer o sal; e promovia a saúde dos habitantes, porque além de não haver então pântanos (22) eram nas praias e canais da ria renovadas as águas duas vezes em cada 24 horas pelo efeito das grandes marés salgadas, que devia então haver como lugares próximos à barra desses tempos. Quando a maré vazava, e o nível do mar descia os 16 palmos na baixa-mar, o efeito da vazante desta cheia periódica da maré ajudada com as águas do Vouga era muito favorável à barra para a conservar funda e larga. Tal foi a época da abundância do sal pelo benefício das grandes marés salgadas sobre as marinhas; ela foi também a da prosperidade da agricultura dos campos do Vouga, que estavam muito enxutos e muito superiores ao álveo do mesmo rio, e dos outros canais, que tinham a profundidade necessária para conter as águas de equilíbrio, transbordando só nos dias de cheias para fecundar os mesmos campos; nos quais não eram arriscadas então as sementeiras na primavera, nem as colheitas no outono, como agora acontece na parte ainda cultivada, por estar hoje o Vouga tão entupido, da Murtosa para cima, que em partes o seu álveo é superior ao dos campos para onde se derramam as águas, apesar dos tapumes que lhes fazem ainda em partes. Gente velha encontro que se lembra do rio ser muito mais enterrado nos campos, e conservam a tradição de que antigamente dos barcos que navegavam pelo Vouga só se lhes avistava meios mastros olhados do campo. Se fosse necessário eu demonstraria esta verdade, quase universal nos rios desta natureza. / 102 /

 

ARTIGO VI

Como a barra se arruinou à medida que se afastou muito
para o sul a respeito da embocadura D do Vouga na ria

24. Formadas, como se viu (18), as dunas ao longo da costa, a barra devia caminhar da sua antiga e primitiva situação para o sul (19), por não haver nenhum embaraço natural nem artificial que demorasse ou suspendesse a sua marcha (20); o que devia ser útil aos campos e marinhas de que a mesma barra se aproximava (23), vindo do norte até chegar ao Mondazel, e seria ainda muito boa até aos Galinhos, Senhora das Areias e suas imediações; mas dali para diante todos os passos que ela fez para o sul, afastando-se da embocadura do Vouga na ria, dos campos e das marinhas, foram outros tantos que prepararam, e enfim consumaram a ruína de tudo: e com efeito o declive do Vouga sobre o mar na vazante, e reciprocamente, começou a repartir-se por uma maior extensão dos pontos correspondentes da ria à barra que se afastava, e por consequência começou a diminuir a velocidade das águas do Vouga para o mar e fazendo as cheias do rio maiores e mais demoradas; e como por esta mesma razão profundava menos o seu álveo que não podia depois conter as suas águas, nem romper tão larga e tão profunda barra como dantes, daqui as inundações e a ruína da barra, em diminuição de profundidade e largura, cresceriam na razão duplitada das distâncias respectivas do seu afastamento; até que os álveos entupidos não podendo já conter senão muito poucas águas, elas foram obrigadas a correr vagarosamente sobre os campos, e marinhas, e não fazendo mais esforços para cavar seus álveos naturais; e tanto menos quanto a barra se afastava mais deles, até ao total entupimento do Vouga, muitos canais da ria, e da barra, actualmente distante 6 léguas para o sul do ponto D ou da embocadura do Vouga na ria; de que resultou a submersão dos campos mais baixos, e das marinhas ficando em seu lugar uma imensa lagoa, que mata com a febre os habitantes depois de lhes haver recusado o sal, e o pão.


25. Fica pois provado que a barra será menos funda, menos larga, e fornecerá menores marés, à medida que ela se afastar do ponto D para o sul; as actuais marés na ria se reduzem a uma simples oscilação; e que as estagnações, e as cheias cresceram pelo contrário na razão composta da diminuição da velocidade das águas nessas distâncias, e da menor capacidade do álveo do rio, e da barra, ou na razão duplicada desses afastamentos; à vista do que ficam bem patentes os imperiosos motivos que obrigam ao projecto de abrir uma
/ 103 / nova barra em O, mais próxima 7.850 braças do que a actual da embocadura do Vouga D, das marinhas e dos campos, na forma do mesmo projecto, que condena e abandona absolutamente a actual barra de Aveiro X. Depois direi porque não convém abri-la mais perto, ou mais ao norte daquele ponto O; porém antes disso quero ainda fazer ver mais outro grande inconveniente do actual e extraordinário afastamento da barra, e a maior necessidade de a aproximar de Aveiro na forma do mesmo projecto(I).


SECÇÃO II

De outros inconvenieñtes do grande afastamento da barra para o sul, e necessidade de a aproximar mais das marinhas, campos e da embocadura D do Vouga


ARTIGO I

Estudo das marés e cheias observadas na ria

26. O fluxo, e refluxo, que foi tão sensível na ria, é hoje quase imperceptível; em Ovar achei ser de quase uma polegada; de três polegadas no Mondazel; de 5 no forte K; 36 na Vagueira; e 58 perto da barra X; porém esta diminuição na altura da maré, observada à medida que aumentam as distâncias à barra, não é motivada por alguma elevação no álveo do Vouga, ou cale grande nessa extensão, porque ela conserva o seu dito álveo por toda a sobredita extensão até quase Ovar, tão funda que o dito álveo fica muito inferior à baixa-mar do oceano na foz, ou na barra actual do Vouga, e não oferece portanto o menor embaraço à entrada e saída das águas; tudo isto são factos observados por mim com muito escrúpulo e repetidos muitas vezes.

27. Outra observação feita no Mondazel me fez ver, que uma pequena chuva de trovoada, que não deu sensível aumento de águas no forte K, deu lá tanta elevação, que, observadas três marés consecutivas, sempre a baixa-mar ficou superior à preia-mar antecedente de algumas polegadas.

28. Os §§ 24, 25 explicam já grandemente os fenómenos das observações precedentes; porém há ainda outra causa não menos influente para os operar e explicar, que eu não quis omitir, afim de lançar a luz neste caos em que os fenómenos, e os elementos estão na ria; e fazer tão clara como o dia, se eu o puder conseguir, esta questão envolvida até hoje nas trevas, e capitulada por um impossível, que toda a arte não pode esperar vencer. Acumulando as provas que apoia o plano, eu destruo aquela errónea opinião, primeira vantagem / 104 / do meu trabalho a bem do serviço de S. A. R. e dos povos; e estabeleço a confiança no sucesso, e aproveitamento dos meios dispendiosos que devem ser empregados na execução; com tão fundados motivos não receio a difusão nem repetições, e vou ainda analisar outra causa porque as marés enchem, e vazam tão pouco nas grandes distâncias da barra; e tanto menos quanto o local está mais longe dela(6); a causa da facilidade das enchentes pouco motivadas no Mondazel, e que foram quase imperceptíveis no forte K, foram nulas na barra.


ARTIGO II

Da diminuição das marés na ria motivadas
só pela grande distância à barra

29. A água em virtude da sua fluidez, e do seu peso se move logo que a superfície da mesma toma uma pequena inclinação, que vença a recíproca afinidade desta com as paredes do vaso que a contém, e a fricção que retarda e modera o movimento; o seu estado de quietação supõe a superfície das mesmas águas no perfeito nível, ou tão próximo dele, que a tendência ao movimento não vença as forças que se opõem a ele, o que nas grandes massas fluidas é pouca cousa, em proporção do peso do mesmo fluido para o movimento; assim como também o dito movimento das águas indica uma inclinação da superfície das mesmas para o lado da corrente, cuja inclinação se mede pela velocidade das mesmas. Logo há-de haver a uma grande distância da barra X (fig. 2) um certo ponto a no qual a elevação h f de 16 palmos, ou o que bem for, que vão de preia-mar à baixa-mar na foz do Vouga X, distribuída por essa grande distância / 105 / a X, produza só a inclinação a f na preia-mar necessária para determinar as águas ao movimento sobre esse ponto a, que por consequência será aquele em que deixará de haver marés na ria; porque, quando for preia-mar na foz do Vouga X, é que pela hipótese o movimento das águas devia sentir-se nesse ponto a para as fazer ali subir; mas como no instante seguinte as águas começam a vazar na barra, esse movimento deve parar no mesmo instante em que devia começar, e por consequência nada pode ali subir a maré. O mesmo digo a respeito da vazante nesse ponto a; porque só se sentiria movimento para vazar quando fosse baixa-mar na barra, e houvesse o mesmo declive das águas a h em sentido contrário para descer deste ponto para a baixa-mar; mas como pela mesma razão ao momento da baixa-mar na barra se segue o começo da enchente, aquele movimento de vazar em a deve pela mesma hipótese parar quando começa, isto é, não pode ali vazar alguma causa a maré. Existe pois um ponto a em que as marés começam a ser nulas pelo único motivo da grande distância em que fica a barra. As propriedades deste ponto a são: 1.º que deve estar no mesmo nível médio g entre a preia-mar e a baixa-mar; 2.º que em a, onde a enchente é nula, será o mesmo em que a vazante o será também, porque se este ponto a estivesse mais alto do que meia maré g não subiria ali a água na enchente, porque lhe faltaria a necessária inclinação t a; mas desceria na vazante, porque a h já teria mais inclinação do que a necessária para as determinar ao movimento pela hipótese; e portanto desceria a água em a até ficar ao nível a g: e se estivesse mais baixo esse ponto a do que o nível de g, haveria pelo contrário enchente nesse ponto, contra a hipótese, e não haveria vazante, o que faria subir, até ficar nesse ponto a, o nível das águas ag, lá onde a grande distância por si só pode anular as marés, mesmo quando a barra fosse muito larga e funda nessa distância, o que não é além disso possível (22, 2.3).

30. Logo, tirando desse ponto a em que as marés são nulas, como vértice, duas linhas a f, e a h, uma à preia-mar, e outra à baixa-mar na barra, a primeira mostrará sensivelmente a superfície das águas inclinada para dentro da ria na preia-mar; e a segunda mostrará pelo mesmo modo a superfície das mesmas águas inclinada em sentido contrário da ria para o mar na baixa-mar; e estas duas linhas(7) formam com a base f h, ou a maré na barra, um triângulo isósceles no qual a distância c b entre os seus dois lados a h, a f tomada em / 106 / qualquer ponto b, h da ria exprimirá com suficiente aproximação para o presente caso, a altura da maré nestes pontos; as quais rigorosamente serão sempre tanto maiores quanto mais se aproximarem do vértice a, ou se afastarem da base do mesmo ângulo, seja ou não rectilíneo, que é a maré na barra(8).


ARTIGO III

Da maior altura que as cheias tomam na ria à medida que a barra se afasta mais para o sul, mesmo quando ela conservasse as mesmas dimensões nas grandes distâncias

31. Da mesma sorte que existe um ponto a (9), fig. 2, na ria em que 16 palmos de altura de maré no mar apenas dão às águas para esse ponto a inclinação necessária ao movimento, e as marés acabam (30) do mesmo modo nas cheias do Vouga; no inverno há-de haver queda do rio para o mar para despejar as suas águas; elevação que deve ser bem notável nas grandes cheias em que as águas têm corrente para o mar, mesmo na preia-mar. Suponhamos uma destas cheias; neste caso a altura e m da cheia sobre a, ou sobre e f nível da preia-mar na barra, deve exceder a linha a e, ou f g para que as águas corram para o mar mesmo no instante da preia-mar, e para isso, que m f tenha mais do que a inclinação necessária / 107 / para resolver as águas ao movimento (pois supomos haver na. barra durante a preia-mar uma certa velocidade), e teremos também no triângulo a f m feita a suposição de a f, f m rectas como se fez na nota § 38, que as alturas c n das cheias nos outros pontos da ria serão na razão das distâncias à barra, ou mais rigorosamente, que elas serão maiores quando a distância à barra for maior, sejam ou não bem rectas m f, a f; outro motivo que junto ao exposto (§ 33), faz com que as cheias sigam quase a razão triplicada dos afastamentos da barra a respeito de qualquer lugar(10).

32. Logo ainda que a barra actual, onde ela está, fosse tão funda e larga como o foi quando esteve no Mondazel (22 e 23), o que é demonstrado impossível, bastaria só o estar distante para que as cheias e inundações abismassem as marinhas e os campos, e para que as marés salgadas fossem imperceptíveis na ria; isto é, que mesmo se fosse possível haver uma barra muito mais larga e funda em X perto de Mira onde ela se acha, assim mesmo não teríamos marés nem saúde, nem escoariam os pântanos, não cessaria o flagelo das cheias, e portanto não se teria conseguido cousa alguma com tal barra pelo capital defeito da sua má e afastada situação, que por isso abandono e condeno absolutamente (I).


SECÇÃO III

Dos motivos porque não convém, nem é necessario, abrir a barra O mais perto do ponto D do Vouga

 

ARTIGO I

Dos inconvenientes de abrir a barra ao norte de O onde estava projectada abrir

33. Apesar das grandes razões dadas (22, 23 e 32) para se dever aproximar do ponto D a barra projectada O, contudo não convém abri-la em sítio algum ao norte do forte K como v. gr. na Senhora das Areias ou nos Galinhos, etc. Não convém abri-la entre o forte e a Senhora das Areias, porque era necessário fazer um muito mais extenso e dispendioso dique da Gafanha para o mar; e mesmo haveria também mais largo areal a demolir; e pouco se aproximava com isso para merecer tão grande sacrifício da Real Fazenda, / 108 / e demora, mesmo quando houvessem todos os meios para conduzir por ali a empresa ao seu fim.


34. Muito menos convém abri-la da Senhora das Areias para o norte, porque para isso seria preciso um dique de légua e meia para atravessar a ria de Aveiro ou de Vilarinho ou de... etc. até ao mar; e além disso se perderia a cale da Vila para os navios entrarem até Aveiro, a qual neste caso ficaria ao sul do dique e da barra sem uso algum; e até se não aproveitava a reunião de todas as águas que entram na ria necessárias para as manobras da abertura, e conservação futura da barra projectada; porque ficariam ao sul sem comunicação com a mesma barra, e excluídas as águas que vêm da parte de Vagos, as quais para o futuro formariam além disso novos pântanos, e alagariam o país ao sul do dique, e da barra nova, pela qual não poderiam escoar nem ter comunicação; nem elas poderiam abrir o rigueirão próprio para o mar sem alagar primeiro o pais cujo rigueirão não poderiam conservar aberto com as águas ordinárias tão escassas porque seria logo entupido na sua foz, ou barrinha, em razão de não haver força permanente para a conservar aberta contra as ondas que tenderiam fortemente a entupi-la na boca; por cujo motivo haveria cheias ou inundações intermitentes daquele lado além dos pântanos permanentes, e também se perderiam todas as marinhas que ficassem para o sul da barra, etc.; e finalmente custariam muito mais a conservar as tapagens das marinhas, e as marés poderiam em preia-mar ir atacar os campos perto de Angeja, sem por isso se dar uma notável vantagem à barra O, já suficientemente próxima de D, e perto da grande e mui larga porção da ria, de S. Jacinto para o norte.


ARTIGO II

Da inutilidade de aproximar mais de D a barra projectada O, mesmo quando não houvesse os inconvenientes expostos no artigo precedente e outros


35. Além dos já referidos inconvenientes para se não dever abrir a barra nova ao norte do forte K, onde se projecta (I), também não há nenhuma necessidade disso para obter a sua bondade, e os resultados desejados; pois que ali ela será ao menos tão boa como o foi nos anos de 1500 para 1600, tempos muito florescentes de Aveiro nos quais certamente a barra já tinha passado havia muito tempo para o sul da Senhora das Areias, e se achava talvez muito mais distante do que agora fica esta nova barra porque só nos consta que estava para o sul da dita capela da Senhora das Areias, mas ignoramos quanto; e eu até suponho que seria
/ 109 / muito longe já a esse tempo, pois sabemos que já em 1643 estava abaixo da Vagueira, e de M onde se construiu então, certamente para a defender, um forte M; veja-se a nota (15). Os factos tirados dos livros da provedoria da comarca atestam que nos ditos anos de 1500 para 1600 já a barra estava para o sul da sobredita capela.


ARTIGO III

Factos que atestam estar a barra de Aveiro para o sul da Senhora das Areias no tempo em que Aveiro floresceu

36. Primeiro facto − «A folh. 273 = De Santa Maria das Areias») − Aos cinco dias do mês de Julho de quinhentos e quarenta e nove anos na vila de Esgueira, pousadas do Dr. Braz Cardoso, provedor, perante ele apareceu Francisco de Pinho clérigo de missa e procurador de Fernam Barbosa, e apresentou a ele provedor um frontal de carrim em folha branco, e uma saia para a imagem de N. Snr.ª do mesmo carrim; e assim uns picheis de estanho, que tudo ele provedor encarregou a André Pires escudeiro morador em Esgueira, para que o mandasse pôr na dita ermida às festas para serem de certo onde se conservassem; doutra maneira se poderiam furtar; e assim uma camisa de algodão branca, o que tudo ele André Pires recebeu e se obrigou dele dar conta .= Fernam Lopes escrevi = Braz Cardoso = André Pires.

O segundo − Em 22 de Fevereiro de 1553 anos na vila de Esgueira e pousadas do Dr. Braz Cardoso provedor, e perante ele apareceram Gomes Afonso e Mateus Gomes, mestres pilotos moradores em Aveiro, e lhe requereram que lhes mandasse entregar o frontal... saia e galhetas... atrás, para mandar concertar a imagem de Nossa Senhora, e a casa, e ser necessário reparo; e ele provedor, lhe mandou entregar tudo, e eles se obrigaram em suas pessoas e bens a tudo guardar e darem dele em todo o tempo conta; e ficou por fiador Simão Varela cavaleiro morador em Esgueira que disse que se obrigava aos sobreditos Gomes Afonso e Mateus Afonso darem do sobredito conta e entrega, sendo-lhe pedida; e ele provedor lhe mandou entregar tudo, e o entregou André Pires, que houveram de todo por desobrigado = Fernam Lopes escrevi = Simão Varela.


ARTIGO IV

Consequências destes factos, e conclusão geral

37. Dos dois factos acima (36) se segue que a barra àquelas épocas em que Aveiro floresceu (9 e 10), e consta / 110 / da história do nosso Portugal, e por factos no país, já estava ao sul e abaixo da capela, e casas da Senhora das Areias; aliás não existiriam ainda hoje a dita capela, e os pardieiros, e restos contíguos para o lado do mar de outra antiquíssima, porque a barra na sua passagem por ali nada podia deixar em pé, devendo ali mesmo, como em todos os mais pontos do areal, ter sido a mesma foz ou barra do Vouga.

38. Tenho explicado, com o afastamento da barra actual para o sul, todos os males que pesam sobre a cidade, comarca de Aveiro, e países dependentes da sua barra, isto é, a submersão das marinhas, de uma grande parte dos campos do Vouga, o entupimento geral dos esteiros, e canais do Vouga, e da mesma barra, e a privação quase absoluta do fluxo e refluxo das marés na ria; a grande altura a que se elevam as cheias, sua grande duração, a formação dos pântanos, e enfim a ruína da agricultura, comércio, navegação, e a infecção maligna do país. O projecto pois de abandonar inteiramente a barra actual e de abrir uma nova barra ao poente de Aveiro é o resultado das mais sérias reflexões e repetidas observações, de que apenas pude fazer menção das mais importantes para apoiar este meu projecto, que hoje muito reverente tenho a honra de pôr na presença de S. A. R., se ele tiver a venturosa sorte de merecer a régia aprovação e segurar ao mesmo augusto senhor de que por meio deste plano poderá conquistar, por assim me exprimir, um grande e belo país já perdido para a sua real coroa, e fazer a felicidade de milhares de seus vassalos, hoje desgraçados; e satisfazendo os desejos do seu paternal coração, eu me reputarei muito feliz, até em poder desde já fazer nascer as fundadas esperanças de tão feliz resultado. Porém se as minhas reflexões aqui expendidas não tiverem esse venturoso êxito, isso dependeu unicamente da insuficiência dos meus conhecimentos, ou da falta de melhor exposição das minhas ideias, mas não da falta de vontade ou diligências minhas. E o mesmo augusto senhor poderá em outra comissão mais análoga às minhas pequenas luzes, mais da competência de um engenheiro militar, ou em que eu seja mais feliz, experimentar o constante zelo com que desejo e protesto servi-lo enquanto eu viver, e esta honra me for concedida.=Aveiro 12 de Junho de 1802.

                                                   Luís Gomes de Carvalho

FIM DA MEMÓRIA
 

/ 111 /

Terminei esta 1.ª Parte do meu escrito com os respectivos documentos relativos à última e feliz empresa da nova barra.

N.º 11 − Aviso régio registado a fol. 84, Livro 4.º

«Ao Superintendente da Barra de Aveiro Tem S.A.R. Dado as Ordens para a continuação das Obras da mesma Barra; para se tratar ao mesmo tempo de escoar as aguas estagnadas, que infestam aquele Paiz, em outro tempo fIorecente: e o mesmo Augusto Senhor Foi Servido Recommendar-lhe que ouvisse sôbre este objecto ao Senhor Oudinot; com ésta occasião peço eu a.Vms. ambos que  hajão de remetter com a possivel brevidade um extracto das suas ideias sôbre a continuação da dita Obra e d'aquellas, que julgão poderem emprehender-se sem maiores despezas actualmente; mas que se-augmentem proporcionalmente até se-conseguir a completa execução das mesmas Obras: S. A. R. ha-de ter em muito particular consideração os Trabalhos que assim Vm. como seu Sogro fizerem subir á Sua Real Presença sôbre um objecto tão importante de que a sua intelligencia e zêlo promettem os melhores resultados. Deos Guarde a Vm. muitos annos.

Lisboa em 2 de Janeiro de 1802 = D. Rodrigo de Sousa Coutinho.

Sñr Luiz Gomes de Carvalho.»


N.º 12 − Aviso régio registado a fol. 84, Livro 4.º

«Recebi a Carta de Vm. de 17 do corrente, e em resposta vou certificar-lhe que S. A. R. Confia que os seus Trabalhos na Commissão de Aveiro correspondão perfeitamente á sua expectação.

Eu igualmente o desejo, assim como o podêr brevemente levar á Sua Real Presença o Plano e Mappa, e certificar ao Mesmo Augusto Senhor de que por meio das suas bem dirigidas Operações verão esses Póvos de uma vez mais apartados de si todos os males que d'antes os affiigião, cuja felicidade he o que mais toca o Paternal Coração de S. A. R. Deos guarde a Vm. Palacio de Queluz em 29 de Abril de 1802. = D. Rodrigo de Souza Coutinho. = Sñr Luiz Gomes de Carvalho.»


N.º 13 − Aviso régio registado a fol. 85, Livro 4.º

«Levei á Real Presença o Officio de Vm. com data de 26 de Maio d'este anno, e S. A. R. Louvando muito / 112 / o seu zêlo de novo lhe-Recommenda a continuação da sua actividade a bem do Real Serviço, e dos Póvos d'essa Cidade. Deos Guarde a Vm. Palacio de Queluz em 3 de Junho de 1802. = D. Rodrigo de Souza Coutinho. ao Sñr Luiz Gomes de. Carvalho.»


N.º 14 − Aviso régio registado a fol. 85 Livro 4.º

«Levei á Real Presença os Officios de VV ms. em datas de 16, 20, 22 de Junho, e lhes-participo que S. A. R. Teve muita satisfação á vista dos seus Planos os quaes lhe-parecêrão fundados sôbre principios firmes, cujos resultados he de esperar que sejão os mais felizes; e por esta razão o Mesmo Augusto Senhor Mandou guardar os Originaes, e depositar duas Cópias, uma na Secretaria d'Estado dos Negocios da Fazenda, e outra na da Sociedade Real Maritima: S. A. R. Espera que VVms. irão dando Conta de tudo o que forem observando, e do Curso que tomão as aguas, tanto que principiarem as enchentes.

Deos Guarde a VVms. Palacio de Queluz em 5 de Julho de 1802.=D. Rodrigo de Souza Coutinho.=Senhores Reynaldo Oudillot, e Luiz Gomes de Carvalho.»


N.º 15 − Aviso régio registado a fol. 85 Livro 4.º

«Recebi a sua Carta de 28 do mez passado, e quanto á sua pertenção respondo que S. A. R. Reserva a Remuneração dos seus bons Serviços para quando se conseguir o fructo dos seus Trabalhos; dos quaes o Mesmo Augusto Senhor está muito bem informado. Deos Guarde a Vm. Palacio de Queluz em 6 de Setembro de 1802. = D. Rodrigo de Souza Coutinho = Sñr Luiz Gomes de Carvalho. »


N.º 16 − Provisão registada a fol. 106 verso do L.º 1.º

Dom João por Graca de Deos Principe Regente de Portugal e dos Algarves d'aquem e d'além Mar em Africa e de Guiné, etc.

Faço saber a vós Superintendente das Obras da Barra da Cidade de Aveiro, que sendo-me presente a vossa Conta de 26 de Março proximo passado dirigida ao meu Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios da Fazenda a respeito da demolição dos Muros que circulão a parte antiga d'essa Cidade para se evitar a ruina que estão ameaçando, e podêr servir a pedra d'elles para as Obras / 113 / [Vol. XIII - N.º 50 - 1947] da dita Barra; e Mandando remetter á Junta dos Tres-Estados por Aviso do mesmo Ministro para ser ali presente, e se expedirem as convenientes Ordens: Sou Servido Ordenar-vos procedaes á demolição dos ditos muros, e appliqueis a pedra d'elles á mencionada Obra visto acharem-se no estado de ruina que representaes, e ésta Minha Real Determinação Mando, por Provisões de data d'ésta, participar ao Governador das Armas d'essa Provincia, e ao Thesoureiro Geral das Tropas para que vos não embaraçem a sua execução. Assim o-tereis entendido e cumprireis, e d'ésta se tome razão na Secretaria. O Principe Nosso Senhor o-mandou pelos Ministros abaixo assignados d'este Conselho e Deputados da Junta dos Tres-Estados. Francisco de Assiz e Costa a fez em Lisboa aos 8 de Abril de 1802. Izidoro José Botelho, Moniz da Silva, no impedimento do Secretário a fez escrever.=Marquez de Penalva=Marquez de Lavradio. = Registada a foI. 15. Rey. = Cumpra-se e Registe-se. Verney.

LUÍS GOMES DE CARVALHO

(Cópia de FRANCISCO FERREIRA NEVES)

_________________________________________

(1) Esgueira é uma vila situada a uma milha a nordeste de Aveiro, que foi a cabeça de comarca; a decadência de Esgueira é tal que os habitantes de Aveiro, no meio da sua actual pobreza, compram ainda naquela vila propriedades de casas só para lhes aproveitar a telha e a pedra! E sem as expressas e positivas ordens que se obtiveram para proibir a saída de tais objectos dos comprados e demolidos edifícios, já não restaria senão muito pouco do que ainda resta desta antiga cabeça de comarca.

(2) A barra antes disso havia estado muito para o sul da Vagueira, e perto de Mira, como agora está, não só porque muita gente se lembra disso antes do Rigueirão da Vagueira, mas também porque ela já estava ao sul da Vagueira em 1643; pois havia um forte M, que foi demolido na tentativa de 1778 até 1783 para lhe aproveitarem a pedra, do que ainda achei vestígios muito claros; e bastante gente vive que lá trabalhou. Este forte foi obra do senhor rei D. João IV, de gloriosa memória, segundo consta da inscrição que achei em uma pedra do mesmo forte que casualmente encontrei entre os restos da pedra resultante da demolição da mesma que ali estava debaixo das areias, o que prova que em 1643 já a barra estava ali defronte, e servia o forte para defender a entrada da barra; ou estava já abaixo do forte M, e este servia ali para defender a entrada rio acima dos navios que entrassem pela barra ao sul do dito forte, uso que provavelmente teria o forte moderno K principiado. Eis ai a inscrição:

ANO 1643 REY D. PORTVGAL I. IIII

A pedra onde existe esta inscrição está guardada. 

(3) − O Vouga acima da embocadura D é todo estreito, e tão baixo, que de verão não tem profundidade para a navegação dos muitos pequenos barcos chatos que o frequentam.

(4) A barrinha da lagoa de Paramos é um exemplo em pequeno disto mesmo, pois frequentes vezes se tapa no ano, e inunda os terrenos contíguos e o caminho público de Ovar para o Porto, por cujo motivo os habitantes são obrigados por acórdãos a ir cortar a água para o mar, abrindo um fosso quando a água, tendo subido muito, está quase a salvar as areias no ponto tapado da dita barrinha; cuja operação é segura porque o nível desta lagoa está superior ao do mar, e o istmo a cortar é só de 5 ou 6 braças, e quase no nível das águas da lagoa.

(5) A ria nunca do lado do sul pode exceder o ponto onde esteve a barra pois é a corrente na barra quem a forma; a qual vai ficando feita quando a mesma barra vai ocupando sucessivos pontos andando para o sul: o mesmo digo a respeito do lado do norte; e ainda por maiores razões deste lado existe só do que foi ria o que as areias ainda não entupiram.  

(6) As grandes sinuosidades que fazem as dunas ao longo da grande cale tais como a que se observa ao norte, e ao sul do Bico do Mondazel, nos Galinhos, na Vagueira, etc., mostram que a barra se demorou mais tempo na sua passagem ajudada das circunstâncias favoráveis da margem oposta da dita cale naquele lugar para dirigir as águas a um determinado ponto do areal; pois é fácil de ver que onde a barra se demorou, o areal deve alargar ao norte e logo contíguo a ela, porque ali o areal é sempre baixo e pouco elevado por ser formado sobre o que pouco antes era a mesma foz do Vouga: e é sempre o estreito porque a corrente na entrada e saída da barra chanfra e faz agudo pelo norte dela o mesmo areal; nas tempestades as grandes marés e ondas salvam ali o dito areal, e arrastam muita areia para a ria formando uma restinga saliente para o mesmo rio, que se vai alargando, e desviando o rio para a margem oposta, que sendo de areia solta se irá cortando á medida que a restinga, feita pelo mar, alargar para o rio; e tanto mais quanto se demorar ali a barra no mesmo lugar, sendo as mesmas as outras circunstâncias. Além disto é evidente que os ventos do mar vão sempre alargando as areias para o interior da ria e do país; e o que é mais antigo é mais largo necessariamente, salvo alguma causa particular, como uma corrente que ali a corte interiormente, etc.

(7)Estas linhas a h, a f não são rigorosamente rectas, mas para simplificação, clareza e inteligência da matéria que pretendo pôr ao geral alcance, o suponho assim, sendo certo que isso não altera sensivelmente os resultados, e em nada a verdade das consequências que pretendo tirar.

(8)Se se tirar do ponto a uma perpendicular à base h f do triângulo isósceles a h f. ela cortará peIo meio g a altura h f da maré da barra, assim como todas as marés c b dos diferentes pontos b, e será uma linha horizontal por ser perpendicular á vertical h f. Logo as meias marés de todos os lugares da ria, a meia maré g na barra, e o ponto a em que elas acabam, estão todas na mesma linha de nível. Fazendo aqui as abstracções da nota antecedente, e supondo que a ria só recebe água da maré e que o Vouga nada mete na ria, o que sem erro sensível se pode supor no verão, pois é tão pouca a do Vouga em proporção da grande capacidade da mesma ria, que nada pode alterar esse nível durante 6 horas de maré, supondo que só recebe águas da barra; nem altera portanto a consequência tirada de que me aproveitei para haver o nível do mar a respeito da ria, das marinhas, e dos campos, enquanto o mar não consentiu pela sua mobilidade havê-lo de outro modo. 

(9) Ovar, que está a mais de 9 léguas da barra actual, parece estar já mui perto desse ponto de nulas marés, pois ali é quase insensível a diferença da baixa-mar à preia-mar, e não chega a uma polegada; só se observa naquele lugar elevar-se a ria algumas polegadas no fim de 4 ou 5 dias depois das marés vivas; dias nos quais sucessivamente vai ficando alguma água na mesma da que entra em cada maré pelo muito que se elevam então na costa do mar e na barra; mas que torna a descer nos quartos de lua ou águas mortas; ocasião em que o mar, abaixando o seu nível na preia-mar e ria, lhe restitui nas marés mortas o que havia recebido nas vivas precedentes, de maneira que se observa nesta ria uma espécie de maré semanária, quero dizer, que ela enche em uma semana de lua o que vasa na seguinte de quarto na mesma lua; de sorte que nos equinócios passados essa diferença foi de 12 polegadas além da maré de cada dia. Isto é geral na ria segundo maior ou menor distância de cada local à barra..  

(10)Sendo as circunstâncias as mesmas v. gr. o rio da mesma largura todo, etc., pois mudando elas, como acontece defronte da Senhora das Areias, ou Mondazel, ainda o efeito das marés pode ser menos sensível empregando-se as águas a encher esse maior receptáculo, para não poderem chegar a um ponto a tão remoto.

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