Luís Gomes de Carvalho, Memória descritiva da abertura da barra de Aveiro, Vol. XIII, pp. 70-74

PRIMEIRA PARTE

DA ESCOLHA DO LOCAL PARA A NOVA BARRA,

E MÉTODOS PARA CONSEGUIR A ABERTURA DA MESMA

ARTIGO I

Do local para a nova barra

1. Para se conseguir a restauração do porto, país, e cidade de Aveiro, se deverá abrir uma nova barra em O (fig. 1.ª, defronte do forte K, umas 1.000 braças ao sul da capela de S. Jacinto, ou Senhora das Areias, 3.600 braças distante e quase ao poente da cidade de Aveiro, 7.850 braças ao norte da barra actual X; e se deverá desprezar, e totalmente abandonar esta actual barra pelos motivos que adiante se dirão. Para esta nova barra se poderá aproveitar alguma pedra existente na Vagueira, únicos vestígios da infeliz tentativa de 1780 até 1783, junto ao sítio M do forte que ali existia e então foi demolido, e que são os únicos que aparecem de quantas tentativas e trabalhos de barra se têm feito até hoje, transportando a dita pedra de lá para o local escolhido para a nova barra O, duas léguas ao norte de M.

ARTIGO II

Do modo de abrir a barra

2. Para abrir esta nova barra V g C O defronte do forte K se deverá atravessar com um dique, construído de terras e fachinas da grossura de 60 palmos na base, o pântano, que na maior parte do ano é ocupado pelo álveo do Vouga, desde a Gafanha, do ponto A, em que se acha uma casa fora do disco das cheias, até B perto do forte K; este dique A B terá 388 braças de comprimento e 4 palmos superior às maiores cheias que ali sobem nove palmos acima de águas de verão; o qual se revestirá todo de bons torrões, que o país fornece de óptima qualidade; eles devem trazer pegados os juncos, e outras plantas e ervas que muito ajudarão a sua resistência contra o choque e ondulação das águas; para o mesmo fim se guarnecerá de ambos os lados de tramagueiras / 71 / por meio de competentes plantações que se farão. O efeito deste dique será obrigar as águas, que agora passam entre a Gafanha e o forte por toda a extensão A B, a correrem todas pela cale grande, que se vê entre o forte e o areal, ou dunas que lhe ficam defronte para o poente; a qual é ali o mesmo Vouga já reunido com as águas que entram em toda a ria, excepto o regato de Mira.

Feito isto se principiará outro dique B C (fig. 1) que começará na extremidade B do primeiro, e se dirigirá para oeste(1) atravessando sempre o rio, que tem ali na sua maior altura ou na cale 30 palmos termo médio; este dique será construído de fachinas, estacas, terras, pedras, etc.; sua grossura será de 72 palmos na base, logo que entre na cale B S, e será maior perto do mar; a sua altura será superior às cheias grandes; com ele se atravessará o Vouga, como disse, e igualmente o areal que medeia, e separa aquele rio do oceano; areal que o mesmo Vouga irá demolindo, e ocupando sucessivamente à medida que o dique avançar para a cale, e a tiver passado continuando para o mar; este areal tem 19 palmos superior em altura às maiores preia-mares na costa do mar, e forma com o rio uma extensão B C de 660 a 700 braças, conforme o mesmo areal se alarga mais ou menos na costa C, e tanto se dará a este dique de extensão.

Eis aqui o efeito deste dique: À medida que avançar de B para o rio, estreitará de igual porção o seu álveo; em consequência deste estreitamento as águas subirão um pouco do lado da corrente demorada nesta parte pela porção feita do dique que o estreitou; em consequência desta elevação das águas se aumentará a velocidade da corrente no restante álveo, e esta maior velocidade e força da corrente assim aumentada, não podendo atacar a testa do dique, pela forte construção que se lhe dará, atacará o fundo do álveo, e o alargará demolindo também na margem oposta, que são dunas e areias soltas, a porção necessária para restituir ao álveo suas preexistentes dimensões as águas e a mesma / 72 / velocidade, para cessar a demolição pelo equilíbrio também restabelecido entre a corrente das águas, e a resistência da margem arenosa, e do fundo existentes antes de começar o dique; e continuando desta sorte a avançar com o mesmo para a grande cale, e além dela, v. gr. até aos pontos F, G, H, as demolições sucessivas, e respectivas P q r, t u n, z y h, do areal S C, se prosseguirá em proporção da maior prontidão com que se avançar o dique B S C, até que enfim, demolido em frente da testa do mesmo o dito areal em toda a sua largura C S, e já convertido em álveo do Vouga, este rio se lançará por ali no mar, e com o peso da corrente romperá a nova barra S C V g, defronte do forte K, 1.000 braças ao sul da Senhora das Areias; 3.600 braças ao poente de Aveiro; e 7.850 ao norte da barra actual, que se abandona para sempre.


ARTIGO III

Até onde se deve continuar o dique que abrir a barra

3. Aberta a barra se continuará o dique sempre na mesma direcção até entrar no mar, e chegar mesmo à linha de baixa-mar; esta operação de levar o dique B C até à baixa-mar na costa tem por objecto fixar a barra, e fazê-la ali permanente, sem o que ela fugiria para o sul, como adiante se verá, e os seus resultados além de menores, seriam de muito pouca duração (2)


ARTIGO IV

Do orçamento da obra até a abertura da barra

4. A despesa dos diques A B, B C poderá importar de 240.000 a 250.000 cruzados, até ao rompimento da barra, podendo este orçamento sofrer as mesmas alterações que podem resultar dos diversos incidentes e combinações até dos elementos, que se hão-de combater durante o processo dos trabalhos na execução. / 73 /


ARTIGO V

Outro modo de abrir a barra em um só ano

5. O método de abrir a barra pela demolição progressiva do areal, à medida que se avançar o dique, empregando por único agente as águas (2), supõe que se trabalha com poucos meios; porque se estes forem tais, que se possa tapar o rio em um só verão, e fazer os diques A B, B S com todas as suas dimensões, neste caso então se deveria logo fazer uma porção S 2 para evitar a demolição do areal, e não se alargar mais o rio B S, que se pretenderia tapar, e depois se faria B 2 ao modo ordinário (2). Feito isto, as águas do inverno seguinte, achando o rio tapado inteiramente, fariam uma extraordinária cheia ao norte dos diques, cujas águas necessariamente romperiam e fariam caminho pelo areal para se lançar no oceano, onde aquele fosse mais baixo do que a cheia; e como esta o não deveria nunca ser, para não abismar o país tom uma tal cheia, se faria de antemão um largo fosso S C 3 m que atravessasse o dito areal no prolongamento S C da direcção do dique B S, desde a sua testa S até perto do mar; mas sem o comunicar com este senão a final, porque, sem esta cautela, as ondas e marés o entupiriam logo; a profundidade do fosso deveria ser pelo nível das cheias ordinárias para não ser tão fundo, e tão custosa a sua escavação. Dispostas assim as coisas, as águas da grande cheia artificial, pela inteira tapagem do rio A B S, entrariam pelo dito fosso, e ficariam com toda a ria muito superiores às do mar; então é que se acabaria de cortar a areia restante na extremidade do fosso para o comunicar com o oceano no mesmo momento escolhido para a operação do rompimento da barra. O Vouga, então, superior ao mar pela hipótese, se lançaria nele com grande impetuosidade até evacuar por ali a grande massa de águas deste imenso receptáculo de muitas léguas quadradas de superfície, que oferece a ria, com as marinhas e campos em que as águas estivessem tão elevadas; e deste modo ficaria aberta uma larga e profunda barra no sítio desejado O, pelos trabalhos de um só ano; empregando sempre como agente o esforço das águas combinado apenas com o pequeno trabalho dos homens na escavação de um fosso pouco fundo, ou muito superficial, sobre as areias S C 3 m.


ARTIGO VI

Modo de abrir a barra em mais de um ano pelo método composto dos que se expuseram nos artigos Il e V

6. O que se acaba de expor ultimamente para abrir a barra em um só ano, se aplica a qualquer época da sua  / 74 / continuação ou progresso; pois tapando-se do mesmo modo o rio no estado em que então estiver o seu álveo, depois da demolição de alguma porção do areal pelo avançamento do dique B S,  se taparia todo como acima se disse (5) até topar no areal, e depois se abriria o fosso no restante do mesmo areal que a esse tempo existisse, do mesmo modo que se faria para todo ele no caso precedente; e o processo seria o mesmo, e o resultado ainda mais rápido, e seguro pela maior proximidade do rio ao mar, e menor massa de areias a demolir. Logo, a empresa de abertura da barra de Aveiro não só é possível; mas até se pode conseguir com grandes ou pequenos meios sem outra diferença mais que no método que deve seguir-se, e no tempo que deverá empregar-se, segundo o estado das finanças que se destinarem para esta obra.

Continua na pág. 94 − ►►►

FRANCISCO FERREIRA NEVES
(Cópia de FRANCISCO FERREIRA NEVES)

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(1) Esta é a direcção mais conveniente para a embocadura do rio na barra, a fim de que os navios possam entrar e sair com os ventos nortes, que são os mais gerais e constantes nesta costa; e também para se refugiarem neste porto os mesmos navios nas tempestuosas travessias que nas nossas costas os fazem encalhar e naufragar; esta direcção é a melhor também para que as ondas não entupam o canal fundo que o rio vazando corta no banco colocado sempre a pouca distância, e paralelo à praia nas barras de areia, como esta; o que aconteceria, se a direcção da corrente e por consequência o corte do banco, e a barra ficasse oblíqua e não paralela à direcção das ondas que vêm quebrar-se por direcções perpendiculares ao mesmo banco, e às praias que lhes ficam paralelas, e são como as paredes do grande vaso que contém o fluido agitado, contra as quais, segundo é demonstrado em hidrodinâmica, a sua acção é sempre perpendicular.

(2) O outro meio de ajudar a fixar a barra para o futuro e conservar a ordem que a barra de Aveiro terá, será a sementeira de pinhais por todo o areal de Ovar até à barra e mesmo continuar para o sul da mesma barra; esta sementeira embaraçaria o livre movimento das areias ao longo das costas, e as fixaria em beneficio da barra do Vouga, e do pais; e teria a dobrada vantagem de fornecer madeiras de excelente qualidade às bordas mesmas de rios navegáveis, com um porto de mar para facilitar a sua extracção do pinhal, e depois a exportação para outros pontos do reino para onde conviesse, de que tanto se precisa. 

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