DOMINGO, 25 de Setembro de
1910. Iam realizar-se, daí a dois dias, no Buçaco, as festas
comemorativas do
primeiro centenário da derrota do general francês,
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Massena,
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no fim das quais, como é sabido, D. Manuel lI
declarou haver conquistado o exército, pois a sua inexperiência do mundo
e dos homens facilmente tomou como seguras as
manifestações que nessa ocasião, e em presença do neto de
Lord Wellington, que veio assistir, lhe foram feitas.
O Rei vinha do Norte. Dizia-se que estivera em Carregosa, de visita ao Bispo-Conde, e nesse domingo dirigia-se para o
Buçaco, de automóvel, acompanhado de bastante numeroso séquito.
A cerca de seis quilómetros a sul de Oliveira de Azeméis, precisamente à
entrada da parte da estrada real que passa ao
sopé da elevação onde, dominando vasto e deslumbrante
panorama que se estende até ao mar, plácida e graciosamente
se ergue a vetusta povoação da Bemposta, o automóvel régio
teve uma avaria. Sua Majestade e os que o acompanhavam
abandonaram os carros. À esquerda, um muro alto, negro do tempo, encimado por extensa ramada, e, a certa altura,
dele, um caramanchão de glicínias.
Junta-se gente, muita gente, em irresistível curiosidade
e toda se fica embasbacada, a olhar o Rei e os «fidalgos».
Vêm raparigas, muitas raparigas, com os seus fatos domingueiros, descalças, lenços na cabeça... O dono daquele muro
e daquele caramanchão de glicínias logo aparece também,
apressado, sorridente, de chapéu na mão, e convida os viajantes
a descansar à sombra durante o tempo necessário para a
reparação da avaria;
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oferecimento que de bom grado foi aceite, pois estava um calor
ardentíssimo.
Os hóspedes transpõem o grosso portão de castanho da
propriedade, e atrás deles, sem convite, seguem os curiosos. E eis que
em breve as raparigas organizam na ampla eira daquela antiga habitação
uma animada dança, que os viajantes complacentemente vão aplaudindo, de
mistura com a conversa.
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Meia hora, talvez não mais, passara. O Rei e a comitiva saíram para a
estrada e vagarosamente se foram dirigindo para os automóveis,
seguidos dos populares, cujo
número havia aumentado.
Ora nessa ocasião, de regresso da vila, chegava um lavrador, de seus
cinquenta anos, em mangas de camisa, com o casaco ao ombro, e um lenço à
volta do pescoço por via do calor. A maneira de andar, pouco firme, e a
voz, algum tanto arrastada e pegajosa, facilmente davam a entender que o homem entrara em muitas tabernas e nelas abundantemente
sacrificara ao deus Baco...
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Como está Vossa Majestade?
−
disse ele, dirigindo-se
a D. Manuel, empertigado, com o braço direito estendido e a mão aberta,
bem espalmada.
O Rei, sorrindo-se e trocando rápido olhar com o Marquês de Lavradio,
correspondeu ao inopinado cumprimento, apertando a mão que se lhe
oferecia.
Mas o lavrador prosseguiu, sem acanhamento:
−
Faz muito bem Vossa Majestade em não se desprezar de apertar as mãos calosas dos lavradores como eu, que são tão honradas
como as dos fidalgos!
−
Pois é claro!
−
conveio o Rei, para fugir à catadupa de palavras, que via iminente. E depressa se instalou no automóvel,
cujo motor já trabalhava.
Então o campónio acercou-se do monarca, encostou-se
ao carro, bateu familiarmente no ombro do Chefe do Estado e disse-lhe, como em segredo:
−
Tenha cautela com a República!
Todos acharam graça, o Rei mais uma vez apertou a mão ao lavrador, e o automóvel arrancou, para em breve desaparecer na
próxima curva da estrada, seguido pelos restantes.
Dias depois, a revolução estalava, e o secular trono dos
Braganças caía em estrondosa derrocada, porque, se os reis nunca tinham
pensado a sério em que era necessário ter cautela com a República, os
seus serventuários e admiradores,
salvas poucas excepções, antes que o monarca destronado chegasse à
terra do exílio já se declaravam perfeitamente amoldados às
instituições nascentes, habilitando-nos assim a afirmar que quem fez
cair o trono português e enterrou a
Monarquia foram os próprios monárquicos...
Quantas vezes se não terá recordado deste verídico episódio o último rei de Portugal! Quantas vezes lhe não há-de ter passado pela
memória a lembrança daquele lavrador-conselheiro que, a dois passos do 5
de Outubro, lhe recomendava cautela!
JOSÉ PEREIRA TAVARES |