O
SENHOR
Dr. AARÃO DE LACERDA, na sua monografia O Panteon dos Lemos, ao referir-se ao túmulo de Duarte de Lemos, diz o
seguinte:
«... Onde numa cartela se vê uma inscrição cuja leitura dou com
reserva, não só pelo seu mau estado de conservação, pois as letras
encontram-se quase encobertas por uma camada de tinta com que a
branquearam, mas também porque se descobrem alterações evidentes nas
datas da construção da capela e da morte do seu fundador»:
«Aqui jaz Duarte Lemos filho que foi de João Gomes de Lemos e neto de
Gomes Martins o qual foi por serviço de Ds. por honra de sua linhagem
mandou fazer esta capela para seu pai e avós para si e para sua mulher
e foi feita esta capela na era de mil e 584 anos o qual faleceu aos
vinte sete dias de Junho de 1588.»
«Examinei a inscrição, principalmente nesta parte cronológica, de tão
grande interesse para o estudo do monumento; depois de limpar os
números com cuidado, a sua violação tornou-se evidente: na data da
construção, o número,
que julgo ser um três, foi grosseiramente transformado em oito; e na data da morte o terceiro algarismo sofreu idêntica
corrupção.»
Temos assim: dúvida quanto à corrupção da leitura;
dúvida quanto às datas da inscrição, que foram viciadas de
modo a atribuir-se ao 5.º Senhor da Trofa o túmulo e a construção da
capela, pois este, que também se chamou Duarte de Lemos, como o
terceiro, seu avô, é que deve ter falecido na data que hoje se lê na
inscrição.
Ora não há dúvida nenhuma de que aquele túmulo pertence ao Duarte de
Lemos
−
3.º Senhor da Trofa, porque este
é que foi neto do Gomes Martins de que fala a sua inscrição.
Mas este não vivia em 1588, pois em 1575 já o seu neto,
5.º Senhor da Trofa, era confirmado na posse do Senhorio,
sendo, portanto, falecidos seu pai João Gomes de Lemos e
/
246 /
seu avô Duarte de Lemos. Desta maneira; ainda que não fosse visível e,
por isso, indiscutível a viciação, teríamos de admiti-la em face do erro
cronológico. Quais eram, porém,
as datas primitivas, a da construção da capela e da morte do Duarte de
Lemos, seu fundador? Conjectura AARÃO DE LACERDA que foram 1534 e 1538
respectivamente, tendo assim sido substituído o 3 das duas datas por 8.
Tenho diante dos olhos o Tombo da Casa da Trofa requerido por Luís Tomás
de Carvalho e Lemos, da 1749. Começa pelo traslado do foral dado por D.
Manuel, seguido do título das doações e confirmações, e depois dos
novos aforamentos e seus julgamentos. As primeiras folhas, relativas ao foral, estão quase ilegíveis; à última falta uma
quinta parte. Encontrei-o num maço de processos do velho
julgado da Trofa. A última página traz a leitura de todas as inscrições
do Panteon dos Lemos, mas infelizmente, só duas completas. E diz assim a
de Duarte de Lemos: «Aqui jáz Duarte de Lemos filho que foi de João
Gomes de Lemos e neto de Gomes Martins o que por serviço de Deus e por
honra da sua linhagem mandou fazer esta capella para seus Avós e para
si e para sua mulher e para seus descendentes e foi feita está capella
na era de 534 D. e morreu aos 27 dias do mês de Junho de 1538».
Esta leitura, que me oferece o Tombo, parece dar confirmação plena à
suposição de AARÃO DE LACERDA. Mas tenho razões para duvidar também desta
leitura e é o que vamos ver.
O nosso Duarte de Lemos, fundador da capela, foi para
a índia em 1508, dois anos depois do falecimento de sua mãe,
na armada de Jorge de Aguiar, seu tio, como capitão-mor de quatro navios
pequenos, e de lá voltou em 1512, um ano antes da morte de seu pai. Em 1529 morre-lhe a mulher e em 1538 morre ele, segundo as duas leituras.
Entretanto, antes de 1537, Duarte de Lemos aparece-nos no Brasil, na
donataria de Francisco Pereira Coutinho. E, pouco tempo depois, na
donataria do Espírito Santo, de Vasco Fernandes Coutinho, para quem se
passou com homens e criados, prestando-lhe tais serviços, na luta contra
os índios, que naquele mesmo ano, a 15 de Julho, o donatário reconhecido
fazia-lhe doação da ilha de Santo António. Em 1540 Duarte de Lemos
estava em Portugal com Vasco Fernandes Coutinho, fazendo, perante o
notário público Gomes Eanes de Freitas, escritura de rectificação do
Alvará de 15 de Julho de 1537, pelo qual Vasco Coutinho lhe havia feito
doação da ilha de St.º António. E diz a escritura: «E apresentado e
incorporado o dito alvará de doação nesta escritura como dito
he o dito Duarte de Lemos disse que por ele Vasco Fernandes Coutinho até
ao presente lhe não poder fazer escritura e carta
/ 247 /
de sua doação conforme o seu alvará por alguns respeitos em Deus ser
servido de ele Vasco Fernandes ora vir a esta cidade
e corte de EI-Rei nosso Senhor lhe pede por mercê que lhe mandasse fazer
a sua escritura de que lhe assim tem feito
mercê doação pelo dito seu alvará por haver tanto tempo que
já entre eles estava assentado e vendo o dito Vasco Fernandes Coutinho
o dito seu alvará e como lho passara em tempo que
por outra maneira se não podia fazer por não haver oficiais na terra e
as mais lembranças que entre eles passaram e como o dito alvará não tem
vício nem borradura nem causa que o faça suspeito mas antes he o dito
alvará verdadeiramente feito e assinado por sua mão e havendo respeito
ao dito Duarte de Lemos se vir da capitania de Todos os Santos onde
estava na companhia de Francisco Pereira para a sua capitania e trouxe
seus criados e outras pessoas que por seu respeito Vieram com ele e o
ajudou sempre a suster e fazer guerra contra os infieis e gentes da
terra o que sem sua ajuda não pudera fazer e por desejar que ele em
algua maneira seja
agalardoado de seu serviço, perigos e riscos de sua pessoa em que se
muitas vezes com ele Vasco Fernandes Coutinho viu»...
Daqui seguramente resulta que Duarte de Lemos, antes de ir para a Capitania de Porto Seguro, estivera na Capitania de Todos
os Santos com Francisco Pereira; que em 15 de Julho de 1537 já tinha prestado a Vasco Fernandes Coutinho,
donatário do Espírito Santo, serviços valiosos na luta contra os
índios, «em muitas vezes que com ele se viu»; que estes
grandes serviços prestados por si, seus criados e acompanhantes, requereram em sua execução dilacção, que não poderia ser pequena; que as palavras de Vasco Fernandes Coutinho
na escritura «e havendo respeito ao dito Duarte de Lemos se vir da
Capitania de Todos os Santos onde estava na Comapanhia de Francisco
Pereira» denunciam que esta vinda fora contratada entre os dois e
solicitada pelo mesmo Vasco Coutinho, visto que se mostra grato por ela
e a recompensa; finalmente que, se Duarte de Lemos deixa a donataria de
Francisco Pereira, é porque as vantagens de Vasco Coutinho eram
superiores às que lhe dava Francisco Pereira; mas estas só com o tempo
ele as podia ter conhecido. De tudo resulta que Duarte de Lemos deve
ter vindo para o Brasil muito antes de 1537. Acompanhou talvez
Francisco Pereira em 1534.
Quanto tempo se demorou em Portugal após a escritura de 1540, não é
possível saber-se, mas, em 1546, Pedro de Campos Torinho, donatário de
Porto Seguro, é preso e mandado sob ferros para Portugal, deixando o governo da sua
Capitania a Duarte de Lemos, que abandonara Vasco Fernandes Coutinho,
certamente quando, no regresso, encontraram a capitania do Espírito
Santo inteiramente devastada pelos índios.
/
248 /
Em 1550 escreve Duarte de Lemos a D. João IIl uma carta em que lhe
confirma outra anterior. «Senhor
−
Eu escrevi outra a V. A. num navio
que deste porto Capitania de Porto Seguro partido para ho Reino de
Christovam Paresem que lhe dava conta como ho governador Tomé de Souza
me mandou a esta capitania de Pedro do Campo e que estivesse nela por capitão. até V. A. prover». Dava-lhe ainda outras
informações sobre o ouro e terminava por denunciar Vasco Fernandes
Coutinho; que partia para o Reino, de intenções contrárias aos
interesses do rei...
Só em 1554 Pedro de Campos Torinho renuncia a favor do filho a
capitania de Porto Seguro, e não havendo notícia
de que Duarte de Lemos houvesse sido substituído, é de admitir que se
conservasse no seu governo até esta data, conforme a ordem recebida de
Tomé de Sousa.
Desta maneira, ou a data do falecimento de Duarte de Lemos está errada
ou mal lida, ou o Duarte de Lemos do Brasil não é o mesmo Duarte de Lemos
da Índia.
A última hipótese tem de ser desde logo abandonada, porgue não houve
outro Duarte de Lemos senão o neto do
da Índia, e esse, se em 1536 era nascido, não podia ainda
ter idade nem meios para andar pelo Brasil nos trabalhos e lutas da
Colonização. Por outro lado, Duarte de Lemos foi para o Brasil,
acompanhando ou seguindo velhos companheiros da África e Ásia, homens da
sua idade, que se notabilizaram por serviços e feitos valorosos. Duarte de Lemos
serviu na índia de 1508 a 1512; Duarte Coelho, donatário de
Pernambuco, de 1509 a 1527; Vasco Fernandes Coutinho serviu na mesma
época.
Estes homens não eram novos. Duarte Coelho morreu
em 1554, devendo ter setenta anos ou mais, pois já em 1503
acompanhou seu pai na viagem à Índia, não devendo ter,
portanto, menos de 15 a 18 anos. Vasco Fernandes Coutinho morreu em
1561, e Duarte de Lemos não deveria ser mais novo que eles, antes seria
mais velho, pois não é muito provável que lhe fosse dada a capitania de
quatro naus, em 1508, e ordem para suceder a seu tio Jorge de Aguiar,
caso este falecesse, como de facto faleceu, na capitania geral da
armada, se ele tivesse menos de 25 anos. E se em 1508 tinha esta idade,
em 1553 já tinha ultrapassado os 70.
Também o carácter que Duarte de Lemos revelou no Brasil, sobretudo na
carta que escreveu a D. João III, contra o seu amigo e benfeitor Vasco
Fernandes Coutinho, não é diferente daqueles sentimentos de egoísmo,
altivez e desenfreado
orgulho que ele teve na Índia com Afonso de Albuquerque.
Homem de emburilhadas na Índia, acusando Albuquerque
a D. Manuel, homem de emburilhadas no Brasil, acusando Fernandes
Coutinho a D. João III. O mesmo homem a vida toda.
/
249 /
Não podemos, portanto, fugir à verdade desta conclusão:
−
a data do
falecimento do Duarte de Lemos em 1538 ou está errada, ou mal lida.
Temos razões para crer que está mal lida.
Nas informações paroquiais da freguesia da Trofa, dadas pelo prior
MANUEL DOMINGOS COELHO em 1721 e publicadas
por louvável diligência de ROCHA MADAHIL, no Arquivo do
Distrito de Aveiro, n.º 7, de 1936
−
há uma leitura de todas as
inscrições tumulares da Igreja da Trofa.
Vamos dar as duas leituras, de AARÃO DE LACERDA, do prior MANUEL
DOMINGOS COELHO, e ainda as legíveis do tombo.
Aarão de Lacerda |
Prior Manoel Domingos Coelho
1721 |
AQVI lAS JOAl\l GVOMEZ DE LEMOS FILHO DE GVOMEZ MARTIZ DE LEMOS QUE FOI NO SEGVN DO SNOR DESTE LVGVAR FALECEU NA HERA DE 15. |
Aqui jas joam Gomes de Lemos filho de gomes Martins de Lemos que foi
Segundo senhor deste lugar faleceo na era de mil e quinhentos e quinze. |
|
|
AQVI JAS DONA VIOLANTE DE SEQUEIRA MELHER QVE FOI DE JOAM GVOMEZ DE
LEMOS FALECEO NA
HERA DE 15. |
Aqui jas D. Violante de Sequeira molher que foi de joam Gomes de Lemos
faleceo na era de mil e quinhentos e seis. |
|
|
AQUI JAZ CVOMEZ MARTIZ DE LEMOS QUE FOI FILHO DE CVOMEZ MARTIZ DE LEMOS
O VELHO SENHOR DE CVOIS O QUAL FOI O PRIMEIRO SENHOR DESTE LVGAR
FALECEO NA
HERA DE MIL E QUATRO CENTOS HE NOVENTA ANOS |
Aqui jáz Gomes Martins de Lemos que foi filho de Gomes Martins de Lemos
e velho Senhor de gois o qual foi o primeiro Senhor deste lugar faleceu
na era de mil e quatrocentos e noventa anos. |
TOMBO
Aqui jáz Gomes Martins de Lemos q. foi
filho de Gomes Martins de Lemos e velho
Snr. de Goes o qual foi o primeiro snr.
deste lugar faleceu na era de 1490.
AQVI JAZ DONA MARIA DAZEVEDO FILHA QVE FOl DALVARO DE MElRA E MOLHER QUE
FOI DE CVOMEZ MARTIZ DE LEMOS E FALECEO NA HERA DE 1453. |
Aqui jás C. na de Azevedo filha q foi de Alvaro de Meyra e molher q
foi de Gomes Martins de Lemos faleceo na era de mil e quatro centos e
trinta e três anos. |
|
|
AQVI JAZ DONA JOANA DE MELO
MULHER QUE FOI DE DVARTE DE LEMOS A QVAL FALECEO AOS DOZE DIAS DO MES
DOUTUBRO ANO DE MIL 529. |
Aqui jáz Dona Joana de Melo molher que foi de Duarte de Lemos a qual faleceo aos doze de Outubro do ano de mil e quinhentos e vinte e nove. |
TOMBO
Aqui jáz Dona Joana de Melb mer q.
foi de Duarte de Lemos faleceo
aos 12 dias do mes de obro de 1529.
/
250 /
AQVl JAS DVARTE DE LEMOS FILHO QVE FOI DE JOAM GOMES DE LEMOS
E NETO DE GOMES MIZ O QUAL FOI POR SERVIÇO DE DS POR ONRA DE SUA
LINHAGEM MÃNDOV FAZER ESTA CAPELLA PERA SEV-PAI E
AVVOS PERA SI E PERA SVA MOLHER E FOI FEITA ESTA CAPELLA NA HERA DE
MIL E 584 ANOS O
QUAL FALECEO AOS VINTE E SETE
DIAS DE JUNHO ANO DE 1588. |
Aqui jás Duarte de Lemos, filho
que foi de joam gomes de Lemos e Neto de Gomes Martins o quaol por
Serviço de Deos, e por honra de sua linhagem mandou fazer esta Capela
para seu pai e Auõs e para Si e para Sua molher e foi feita a dita
capela na era de mil quinhentos e trinta e quatro anos o qual faleceu
aos vinte Sete dias de junho, anno de mil quinhentos e trinta e oito. |
TOMBO
Aqui jás Duarte de Lemos filho q foi de
João Gomes de Lemos e Neto de Gomes Martins
o q por servisso de D; e por
honra de sua
linhagem mandou fazer esta capella p.a seos
Avós e p.a sua m.er pa seos descendentes e foi feita
esta capella na era
de 534 D. moreu aos 27 dias
do mês de junho de 1538.
AARÃO DE LACERDA, na inscrição de João Gomes de Lemos, leu: «faleceu na
hera de 15» − O prior DOMINGOS COELHO leu: «faleceu na era de 1515».
AARÃO DE LACERDA já não pôde descobrir, em 1928, os dois últimos
algarismos na data do falecimento; o prior, em 1721, pôde ainda lê-los,
mas deve ter trocado o último 5 por 3, porque João Gomes de Lemos em
1515 era já falecido, sendo seu filho confirmado no Senhorio em 1514.
Também na data do falecimento de D. Violante, mulher de João Gomes
Lemos, o prior leu 1506, onde AARÃO DE LACERDA só viu 15. Na inscrição
de Dona Maria de Azevedo, AARÃO DE LACERDA leu 1453 e o prior leu 1433
trocando o 5 pelo 3.
Isto significa que, já em 1721, o mau estado de conservação em que
estavam aquelas datas tornava possível a troca do 3 pelo 5 e vice-versa.
E sucedendo isto com as duas inscrições de João Gomes de Lemos e D.
Maria de Azevedo, porque é que não sucede o mesmo com a de Duarte de
Lemos, isto é, não se leu 1558 em vez de 1538? Se sabemos que ele não
morreu neste ano, não é muito mais fácil acreditar que se trata de má
leitura, antes que de data errada, depois de verificarmos que se leu mal
nas outras inscrições? Assim como a circunstância certa e provada de
viver Duarte de Lemos longos anos depois de 1538 nos levou à convicção
de estar mal lida esta data do seu falecimento, assim também outra de
igual natureza nos convenceu de estar certa a leitura de 1534 para a
construção da capela. Este monumento artístico, então como hoje
aconteceria, levou tempo a ser feito; sem dúvida mais de um ano ou mesmo
mais de dois. Ora Duarte de Lemos, como vimos, deve ter deixado o Brasil
/ 251 / em 1554, e
não poderia, portanto, ter construído a capela neste ano. TEIXEIRA DE
CARVALHO, no prefácio à obra de VIRGÍLIO CORREIA sobre «a sepultura de
D. Luís da Silveira em Góis» diz que a Capela fora feita em 1554 (Panteon
dos Lemos, pág. 77). E possível que TEIXEIRA DE CARVALHO tenha visto
esta data em alguma má leitura, como as que analisámos.
Em favor de 1534 se apresentam os factos:
De 1531 é a construção do túmulo de D. Luís da Silveira, primo de Duarte
de Lemos, e este facto poderá ter influído no espírito deste. A mulher
de Duarte de Lemos faleceu em 1529. É natural também que Duarte de Lemos
pensasse no seu túmulo.
Duarte de Lemos deveria ter vindo, em 1512, com fortuna, da Índia. A
morte da mulher, deixando-o possivelmente só, pois os filhos, já homens,
seguiram o caminho da Corte: e a construção da Capela, de sua natureza
cara, diminuindo-lhe as reservas, levaram-no possivelmente mais uma vez
à vida aventurosa pelo Brasil, donde só terá voltado para morrer, pouco
depois, em idade avançada. O seu túmulo, com a estátua orante, se não
foi feito por ele nos dois ou três últimos anos da vida, foi-o
certamente por seu filho e sucessor João Gomes de Lemos ou por seu neto
Duarte de Lemos.
Se a leitura do Tombo da Casa da Trofa ainda em 1774 nos dá as datas
1534 e 1538, para a construção da capela e falecimento de Duarte de
Lemos, é porque nesta altura ainda não tinha sido feita a viciação delas
para 1584 e 1588.
Tem assim razão AARÃO DE LACERDA quando supôs que aquela alteração é
nova, possivelmente do século passado.
Também assim penso. Por um documento de venda do primeiro quartel do
século passado, que devo ainda possuir, em Portugal, fez à Igreja da
Trofa a venda de duas leiras de mato que possuía no sítio das Covas,
limite de Pedaçães, por duas libras, destinando esse dinheiro à
construção ou reconstrução do Cruzeiro perto da Igreja e a melhoramentos
nesta.
Foi certamente nesta altura que o prior de então, não podendo ler as
datas, socorreu-se da história, onde encontrou 1588, morte de Duarte de
Lemos, 5.º Senhor da Trofa, que ele confundiu com o 3.º do mesmo nome.
Ao tempo em que Duarte de Lemos chegou, em 1512, de volta da índia, seu
pai era ainda vivo e este é que vivia nos Paços daquela aldeia, cujo
senhorio tinha e onde era, além disso, grande proprietário.
Diz o foral da Trofa: «...e posto que no começo deste foral se declara
que os foros e direitos da dita terra de Crastovães e da Trofa não se
assentavam nele porque ficavam aprovados por um tombo em papel. Nos, sem
embargo disto
/ 252 /
havemos por melhor mandar largamente assentar e decretar neste foral
segundo por todos foi aprovado porque ficar todos das ditas terras para
sempre declaradas nele». Por estas palavras não tenho dúvida de que a
relação de terras reguengas e foreiras do foral, cuja cópia tenho
presente, faz parte
do mesmo foral. Esta cópia foi trasladada do exemplar que se guardava na
Casa da Câmara da vila da Trofa. Assim diz o escrivão:
«Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo aos três dias do mês de
Setembro do dito ano (1749) nesta vila da Trofa de que é snr. Donatário
da Casa Real Luís Tomás de Lemos Carvalho Vasconcelos e Almeida e nas
Casas de Aposentadoria do Dr. Faustino de Bastos mer. Juiz do Tombo da
mesma vila e mais foros pertencentes ao dito snr. Donatário, por
provisão de sua Magestade que Deus guarde comigo escrivão na fação do
dito Tombo, aí por José de Souza de Menezes e Lemos fidalgo da Casa de
Sua Majestade, irmão e procurador do mesmo snr. foi dito a ele juiz que
entre os mais bens que pertencem à Coroa Real e ao dito seu donatário
bem assim há um casal reguengo sito no logar de Crastavães, como tudo
melhor se Conserva a fls. doze verso e treze do dito foral escrito em
pergaminho, assinado por El-rei e concertado por Fernão de Pina o qual
se conserva no arquivo da Camara desta vila e se acha presente em poder
de mim escrivão...»
O ForaI é de 1516, mas a inquirição preparatória deve datar de alguns
anos antes. Um processo desta natureza ainda hoje levaria muito tempo,
com todas as nossas facilidades de comunicações. Naquela época levava
anos a chegar à assinatura real. A relação das propriedades reguengas e
foreiras contidas no foral é, por consequência, anterior a 1516, data em
que este foi assinado, e deve a diferença de anos ser grande, pois no
mesmo foral se declara que tal relação já andava escrita em papel, em
Crastovães, e por esta se vinham governando e cumprindo as obrigações
com o senhor da Terra.
O exame desta relação traz-nos muita luz sobre a vida dos Lemos. Vê-se
que ao tempo dela era vivo João Gomes, e o filho Duarte de Lemos, sendo
aquele o senhor donatário da vila da Trofa e um e outro proprietários na
mesma; que João Gomes ali tinha os seus Paços, e o filho tinha também
uma casa que lhes ficava junta; que não foi, portanto, o Duarte de Lemos
que fez o seu solar, pois este já vinha ao menos de seu pai. Transcrevo
algumas passagens que mostram a segurança destas conclusões.
«Mais traz o dito João Dias uma arróta na Mourisca para seu
filho, que parte do Soão com estrada pública; do Aguião e Travesia com
estrada que vai para a Trofa e com
/ 253 /
a arrota de Duarte de Lemos e do Abrego com Monte maninho...»
«Mais traz o dito (Garcia Rodrigues) uma arróta junto às suas casas em
que vive (Mourisca) que parte do Soão com a Estrada Coimbram e da
Travessia e do Aguião com a Arrota do Snr. João Gomes e do Abrego com o
cortinhal das ditas cásas...».
«Mais traz o sobredito um bacelo abaixo da Lapa da veia da Agua que
parte... do Aguião com um bacelo do Snr. João Gomes».
«João Torres do dito logar, traz duas casas na Trofa em que vive e um
bacelo na Junqueira que parte do Soão com vinha do snr. João Gomes...»
«Mais traz o sobredito (Afonso Dias) um outro (bacelo) abaixo da Fonte
que parte do Soão com horta do snr. João Gomes e com horta do Duarte de
Lemos e da Travesia com o chão do outeiro do Paço do snr. João Gomes.»
«Jorge Rodrigues da Trofa traz um bacelo na Junqueira que parte do Soão
com bacelo do Snr. João Gomes...»
«Mais traz o sobredito (Jorge Rodrigues) um pomar com seu salgueiral e
do Abrego parte com chão de Duarte de Lemos.»
João Gomes de Lemos só pode ser o pai de Duarte de Lemos, e não o filho,
do mesmo nome, que vem depois a ser o quarto Senhor. É que se este João
Gomes fosse o filho de Duarte de Lemos não podiam os Paços
pertencer-lhe, pois forçosamente seriam de seu pai, Duarte de Lemos −
3.º Senhor.
Donde viriam estes bens a Duarte de Lemos? Herança da mãe, falecida em
1506, do avô falecido em 1490»? É de estranhar que nenhum dos irmãos
apareça nestas confrontações, o que mostra que não eram senhores ou
possuidores de terras da Trofa.
Estas circunstâncias, extraídas do Tombo contido no foral, não deixam
dúvida, sobre a presença dos donatários João Gomes e Duarte de Lemos na
Trofa como moradores nela. E ali devem ter vivido também os seus
sucessores João Gomes e Duarte de Lemos segundo de nome, pois a tradição
forte que o último deixou de seus atrevidos gestos não poderia formar-se
se ele ali não vivesse no meio do povo.»
Resta-nos agora saber qual deles é que deu autorização para se fazer da
sua capela mortuária uma igreja, aproveitando aquela como capela Mor.
Ao tempo do Foral a Igreja era em Covelas. Ainda não estava feita a
Capela, pois Duarte de Lemos só a fez em 1534.
Esta Igreja de Covelas vem de tempos antigos, possivelmente do meado do
século XII, como a antiga basílica de St.ª Maria de Lamas. Nas
inquirições de Afonso lI,
/ 254 /
de 1220, lê-se − «De Covelos. Menendus gunsaluiz prelatus. Petrus petri.
Martinus Gonsaluiz. Dominicus Alfonso. Pedreiros. Menendus pelagis,
Gunsaluinus. Martinenes. Jurati et interrogati da patronati ipsius
ecclesie dixerunt quod dominus rex erat inde patronus, sed dominus rex
sancius dedit uillam de Couelas quam ibi habebat dommo Alfonso petri
galleco».
Na inquirição de D. Dinis, Mighael Johannes de Seghadaes disse «que
ouviu dizer que a y iii caualarias que têe os herdadores, e disse que
ouviu diser que parte Couelas cõ ho reghaego de Crastouães pelo rego que
uay per ãntre estas uilas e que esto a eygreia da parte de Crastouães...»
A igreja existia, portanto, nos princípios do século, não como coisa
nova, mas antiga, pois já o D. Sancho l, dando a vila de Covelos a
Afonso Pedro Galego certamente reservou para si o patronato: as
testemunhas inquiridas dizem «Quod dominus rex erat inde patronus».
E certamente esta reserva se manteve nas sucessivas doações e
confirmações até ao tempo de Fernando Alves de Maia. A carta de doação
de D. Afonso V a Gomes Martins é como segue:
«D. Afonso por graça de Deus Rei de Portugal e AIgarve Senhor de Ceuta
etc. Aqueles que esta nossa carta virem fazemos saber que por as
maldades e traições que Fernando Alves da Maia cometeu contra nossa
pessoa e real estado sendo com o Infante D. Pedro na batalha de
Alfarrobeira que com nosco houve, por dito feito assim ser notorio e o
dito Fernando Alves assim ser em ela todos os seus bens moveis e da raiz
e terras pertencem a nós de direito e os podemos dar a quem nossa mercê
for. Agora querendo nos fazer graça e mercê a Gomes Martins de Lemos,
fidalgo da nossa casa por os muitos grandes serviços que dele recebemos
e havemos de receber ao diante de nossa justa, propria, livre vontade,
de certa sciencia, poder absoluto, sem no ele pedir nem outrem por ele.
Fazemos pura e irrevogavel doação entre vivos valedora deste dia para
todo o sempre em tal guisa que nunca em algum tempo possa ser revogada
da nossa terra da Trofa que de nós trazia o dito Fernando Alves ao tempo
que foi, a qual doação lhe fazemos por todo o sempre, de juro e herdade,
para ele e todos os seus filhos e netos e para todos os seus
descendentes que dele naturalmente descenderem em linha direita
masculina. Convem saber que por seu falecimento venha o seu filho maior
legitimo varão que a esse tempo assim for achado e por falecimento do
dito seu filho venha o neto maior varão do dito Gomes Martins filho do
seu filho varão e assim venha diante linha direita masculina sempre
descendente nem passando nunca em algum tempo à linha travessa e sem
nunca ser vendida
/ 255 /
escambada nem desmembrada toda nem parte dela, quer que ande sempre
assim e pela maneira que pelos reis que antes nós foram é estabelecido
nas outras nossas terras da Coroa do Reino. E mandamos que falecendo
algum descendente legitimo varão do dito Gomes Martins a dita terra
fique logo e seja tornada a Coroa de nossos Reinos para nós e para
nossos sucessores fazermos dela o que nossa mercê for como de causa
nossa propria a qual terra assim herdamos de juro e herdade com todas as
suas entradas e saídas e pertenças e direitos...
E nossos contadores, almoxarifes oficiais e pessoas de nossos Reinos a
quem pertencer, que metam em posse da dita terra ao dito Gomes Martins o
ano certo procurado e lha deixem haver com todas as rendas, direitos,
foros e pertenças, que lhe direitamente pertencerem assim e tão
compridamente como o dito Fernando Alves havia ao tempo que foi na dita
batalha...
Dada em nossa muito nobre e leal cidade de Évora a 13 de Novembro de
1449.»
Nesta doação não se fala em padroado ou porque o rei o não tinha ou
porque ele andava incluído nos direitos do anterior donatário, que, por
serem todos transferidos ao novo, não havia necessidade de mencioná-lo.
Acredito que o rei o não tivesse e fosse do povo, pela razão que adiante
vai exposta.
Todas as cartas de confirmação dadas aos sucessores legítimos varões em
linha direita do donatário Gomes Martins de Lemos − Primeiro Senhor −
compreendem apenas os direitos da carta de doação, sem aumento,
diminuição ou modificação. Em nenhuma destas confirmações se fala no
direito de padroado.
João Gomes de Lemos, neto de Duarte de Lemos, 5.º Senhor, confirmado em
1652 por D. João IV, não deixou sucessão, porque era padre da Companhia
de Jesus. Por sua morte passou para a Coroa o Senhorio da Terra da
Trofa. Um filho de sua irmã Jerónima de Lemos, Bernardo de Carvalho e
Lemos, requereu ao rei lhe fizesse doação da Terra da Trofa,
justificando a sua petição com a invocação dos grandes serviços
prestados na guerra de Castela pelos seus três irmãos Bernardo, António
e João. O Rei deferiu a petição, doando a Terra da Trofa ao peticionário
em duas vidas, sendo-lhe passada carta em 1699. Por sua morte, seu filho
Luís Tomás de Carvalho e Lemos, requereu a confirmação, por ser a
segunda vida. Esta confirmação foi-lhe dada por D. Pedro II em 1705.
Ora a carta de confirmação deste donatário diz assim: «Pedindo-me o dito
Luís Tomás de Carvalho e Lemos que
/ 256 / porque ele era filho legitimo varão mais velho que ficava por
morte de seu pai Bernardo de Carvalho de Lemos a quem eu fizera mercê
pela carta nesta incorporada da vila e Casa da Trofa em duas vidas, de
que o dito seu pai fora a primeira, e como tal lhe pertencia a segunda
vida como tudo constava de uma justificação que oferecia do Dr.
Bartolomeu Jorfel (?) Fidalgo da minha casa, do meu Conselho, e da minha
fazenda e juiz das justificações dela, lhe fizesse mercê mandar passar
carta de confirmação por sucessão da dita Casa da Trofa com todas as
suas jurisdições (?) oficios e Padroado da Igeja na forma que o
dito seu pai teve...»
Esta é a primeira carta em que nos aparece o direito de padroado que
pertenceu a este donatário como também pertenceu a seu pai Bernardo de
Carvalho e Lemos, segundo se lê na mesma carta.
É tradição, e ao que parece verdadeira, que um dos fidalgos da Trofa
concedera licença para se fazer de sua Capela uma Igreja, por estar em
más condições a de Covelas, mas pusera a condição de ficar para ele e
sucessores o padroado da mesma igreja. Desta maneira, se na carta de
confirmação, em 1652, do donatário João Gomes de Lemos, último Lemos na
linha recta descendente, não se falava em padroado; se também na de
Bernardo de Carvalho, novo donatário, se não fala nela, mas a do filho,
em 1705, diz que o pai teve este direito, creio que poderia concluir que
quem deu esta licença foi o mesmo Bernardo, e portanto entre 1699 e
1705. Não obstante, inclino-me para que fosse o seu antecessor, João
Gomes de Lemos. Este era padre. Deixou a Companhia para vir possuir e
provavelmente viver em seus Paços. Sabia que não teria sucessores: que
por sua morte se devolveria o Senhorio da Trofa à Coroa, e que a Capela
não teria quem a conservasse e sustentasse, porque seus parentes não
viviam mais ali. Ele talvez fosse o último habitante dos Velhos Paços de
seus maiores. Estas reflexões o determinariam a conceder a licença ao
povo da freguesia, com as condições de padroado e conservação.
Fosse como fosse, a transferência na Igreja de Covelas para a Trofa deve
ter sido feita na segunda metade do século XVII. Porque logo em 1721 diz
o pároco Domingos Coelho que a igreja era na Trofa.
Rio de Janeiro.
AUGUSTO SOARES DE SOUSA
BAPTISTA |