O MAIS velho compromisso
existente da Santa Casa da vila da Feira está num caderno de papel sem
capa nem começo, a esfarelar-se de velhice, desbotado e amarelento. Ao
caderno faltam as primeiras folhas e a que
actualmente o principia tem o n.º 4 e abre no começo da primeira linha
pelos algarismos de um ano: 1594.
Alguém, em tempo já remoto, como esse número não ligava sentido com as
palavras seguintes, riscou-o. Felizmente com um simples e fino traço.
Segue-se o final de um preâmbulo que, na parte existente, parece
estar historiando a Misericórdia da Feira. Depois estende-se o
compromisso assinado pela provedora cessante
−
a condessa D. Joana, pelo seu filho D. Fernando Pimentel e Pereira
−
provedor escolhido para esse ano, e por Bermudo Pereira
−
escrivão da
Santa Casa, Botelho de Pinho que depois lavra o assento de aprovação,
Lucas Pinto que escrevera todo o compromisso com boa letra, João
Carvalho, Cristóvão Camelo, Lopo Soares de Albergaria numa bela
assinatura e mais quatro figurantes de que só posso asseverar serem os
últimos um Joseph e outro André.
No verso está o «assento que se fez daprovasão e retificação deste
compromisso» com a data de 19 de Abril de 1654. Neste assento é que
figura como provedor o D. Fernando; mas antes de começar o compromisso escrevera-se:
«a muito excelentíssima senhora D. Joana Frojás Pereira de Menezes e
Silva, condessa da Feira, terra de Santa Maria, que o presente ano serve
nela de Provedora»...
A condessa da Feira era considerada tal desde que o seu pai morreu aos
15 de Maio de 1608, sem herdeiro varão, por força do alvará de 26 de
Janeiro de 1605, que concedeu o título fora da lei mental. Assim é que o alvará de 17 de Novembro de
1617 se refere à condessa D. Joana, ainda sob a tutela da sua mãe D.
Maria de Gusmão, tendo-se como
dado o título por força da carta de 14 de Março de 1608.
A condessa D. J oana, a quem o título foi confirmado pelo segundo
Filipe, por carta de 12 de Outubro de 1620, casou
/
172 /
com o seu primo D. Manuel Forjaz Pereira Pimentel que,
em 14 de Outubro de 1628, teve o título de conde da Feira
e foi depois mestre de campo general da Flandres e castelão
de Anvers.
Na Flandres viveram e lá morreu o conde, voltando a
viúva a Portugal com os três filhos
− D. João, D. Fernando
e D. Maria
−
no domingo de Páscoa de 1646 (12 de Abril).
Ao filho D. João fora logo dado o título de conde da
Feira, pelo qual é tratado na carta deI rei D. João IV de 29
de Junho de 1648. Andava no exército, não podendo
por ausente interessar-se nos negócios da Santa Casa feirense.
O D. Fernando, filho segundo, doente como reza a tradição, aprendiz de clérigo, pensando já talvez em vir a ter
um dos mais pingues benefícios do reino no priorado de
Guimarães, estava ao pintar para o cargo de provedor da
Santa Casa, que só lhe dariam em 1654, ao tratar-se de regularizar a legalidade da Misericórdia, por ter atingido a maioridade.
Houve, pois, uma eleição ou escolha de provedor antecipada à data (2 de Julho) fixada no novo compromisso e
posterior a terem começado a escrevê-lo. Isto faz supor que
nesse intervalo completou o D. Fernando vinte e cinco anos,
indispensáveis para o cargo, e portanto, como era o segundo filho, que
os pais casaram por 1626 ou 1627.
Nesse compromisso diz-se claramente que a irmandade
da Misericórdia da Feira já existia. Bastam as palavras iniciais para fazê-lo presumir: «A conservação de uma irmandade»... Mas adiante manda fazer assento dos irmãos
existentes, dispensando da esmola de 500 reis os irmãos
pobres «respeito ao serviço que tem na irmandade».
Convencidos de já ter existência a Misericórdia da Feira antes de 19 de
Abril de 1654, vamos ver se entendemos o
que diz essa página 4, actualmente inicial do velho documento:
«1594 e o papa Clemente, que governava a Igreja de
Deus no ano de 1596 lhe concedeu uma bula de indulgência,
com o que animados os irmãos foram continuando até o presente».
A Misericórdia da Feira existia em 1654 e mesmo era
anterior a 1596, merecendo nesta data uma indulgência pontifícia e continuando até que teve compromisso aprovado
em 19 de Abril de 1654.
Existe um outro livro:
«Traslado dos estatutos: Compromisso da Irmandad. da
Santa Caza da Mes.ª desta v.ª mandados aqui copiar por se
acharem os velhos coazi om.os de se não poderem ler por
autoridade da Menza aonde se acrescentou alguas determinaçoiz p.ª o bom regimen da St.ª Irmand.e
e revogacão de
/
173 /
alguns capos E este vay rubricado com o meo sbbrenome de
Ferraz sendo eu Provedor hoje em 7 de Jan.º de 756.
«J. M. Soares Ferraz»
Chamava-se este provedor, como em outra folha do mesmo livro vi, José
Soares Ferraz. O M era provavelmente
a inicial do nome da mulher dele. Era esse o uso da época.
O compromisso que neste livro segue o preâmbulo é já
diverso do lançado no velho caderno.
A extensão do preâmbulo pode afigurar-se reduzida, pois
se contém todo em três laudas do exemplar completo,
quando no antigo caderno ocuparia mais de sete laudas se começasse logo
na primeira da folha 1. Mas quem sabe se
outro documento estaria copiado antes!
A parte final desse preâmbulo, que existe em dois exemplares, é contexte
e igual, deixando-nos supor ter sido idêntico também o começo perdido do velho caderno. Pelo
menos seria igual o princípio do período com que finda.
Os dizeres do livro de 1756 principiam definindo a Misericórdia e prosseguem, quase ao chegar à parte igual à subsistente do antigo caderno, desta forma:
«Com estes santos fundamentos foi principiada neste Reino e côrte de
Lisboa a irmandade da Santa Misericórdia,
a cuja imitação foi outra instituída nesta vila a qual o
senhor rei D. Manuel fez mercê ampliar os privilégios concedidos à de
Lisboa no ano de 1594 e...»
É este o tal número pelo qual começa a página 4 do
antigo caderno.
Tenho de notar que o «senhor rei D. Manuel» entra aqui
como Pilatos no credo. Mas é sina desta minha terra, impigirem-lhe sempre o D. Manuel, sem motivo nem razão.
Tendo morrido em Lisboa, aos 13 de Dezembro de 1521, esse senhor rei
não fez mais nada depois disso.
O que o venturoso monarca tinha feito foi ampliar os
privilégios da Misericórdia de Lisboa. Passou-se assim o
caso: o D. Manuel era casado, por então, com a filha mais velha dos reis
católicos de Castela e Aragão. O único filho destes morreu e os reis de
Portugal foram a Toledo para
serem jurados herdeiros do trono castelhano a 28 de Abril de 1498.
Ficou regente em Portugal a rainha D. Leonor,
irmã de D. Manuel e viúva de D. João II. Aproveitou o
ensejo e instituiu, a 15 de Agosto de 1498, a Misericórdia de
Lisboa.
À volta de Castela, o irmão aprovou este acto, ampliando
os privilégios da Santa Casa e edificando-lhe igreja na Ribeira,
perto do Terreiro do Paço. A esta igreja acrescentou uma
D. Simoa a capela mor dedicada ao Espírito Santo, mudando
/
174 /
mais tarde a invocação para o Santíssimo Sacramento. Do
terramoto de 1755 só essa capela escapou. É hoje a igreja
da Conceição Velha. A Misericórdia da capital instalou-se
na igreja de S. Roque que fora dos expulsos jesuítas.
Ora em 1594 reinava em toda a península hispânica o Demónio do Meio Dia, a quem nós chamamos D. Felipe I
e os espanhóis dão o nome de Felipe II.
Não se refere, portanto, à Misericórdia da Feira a referência do rei D. Manuel, que ampliou os privilégios concedidos à de Lisboa, logo depois de instituída.
1594, esse número deixado pelo acaso sem sentido no
alto da página 4 do velho compromisso é, nem mais nem
menos, a data da instituição da Misericórdia da Feira.
Bem fadada foi esta Santa Casa que em dois anos mereceu uma bula de indulgência.
É bem provável, para não dizer quase certo, que, ao instituir-se em 1594, a Misericórdia da Feira tivesse o seu
compromisso ou outra regra escrita. Perder-se-ia, desencaminhada nesses tempos de predomínio das autoridades castelhanas ou na transformação resultante do primeiro de
Dezembro de 1640.
O preâmbulo diz em ambos os exemplares existentes:
«como nesta devota Irmandade não houvesse nenhuma regra
de próprio compromisso, e isto lhe sirva de bom embarasso»... No entanto a condessa da Feira D. Joana servia
de provedora no ano em que se começou lavrando o compromisso, de onde se deduz que todos os anos se nomeavam
provedor e oficiais para servir na Misericórdia da Feira, continuando a sua existência desde 1594, sem compromisso ou
com um compromisso desconhecido dos irmãos de 1654.
Talvez esta hipótese seja a mais provável. Nem parece crível que fosse concedida a bula de indulgência a uma irmandade sem título ou irregularmente constituída. Tinha havido
um compromisso ou um diploma equivalente, mas perdeu-se
a notícia dele e, em 1654, acharam-se os irmãos obrigados a
legalizar a situação.
O compromisso que, com o preâmbulo igual ao de 1654,
está no livro que venho referindo, tem a data de 10 de
Janeiro de 1756. Vê-se que sucessivamente se ia reformando
o compromisso e se integravam as emendas no anterior.
O marquês de Pombal planeou um dicionário corográfico de Portugal e para o compilar mandou expedir uns questionários a todos os párocos. Na Feira a freguesia única da
vila estava entregue aos cónegos seculares de S. João Evangelista (loios), desde o primeiro de Maio de 1566, por contrato de 17 de Abril do mesmo ano, e era abade dela o reitor
da collegiada que delegava num vigário escolhido entre os
seus conventuais.
/
175 /
Em 30 de Abril de 1758 o vigário José de São Pedro Quintela respondeu aos quesitos pombalinos no respeitante à freguesia
da Feira. Existem essas respostas na Torre do Tombo e do relatório
relativo à Feira extraiu cópia, há já uns bons vinte e cinco ou trinta
anos, o meu querido conterrâneo e dedicado amigo da nossa terra D.
FERNANDO DE TAVARES E TÁVORA. Publicou-as em 1921 no semanário Vila
da Feira o também meu querido e saudoso amigo dr. AGUlAR CARDOSO.
Vou lá respigar quanto diz respeito à Misericórdia da Feira,
compreendido na resposta aos quesitos onze e doze. Transcrevo alterando
a pontuação para melhor se perceber e apreciar:
«No lugar em que estava a freguesia de S. Nicolau e depois ficou a
capela de S. Francisco, se vê hoje a Misericórdia. Desta não se sabe a
origem, porém é tão antiga que el rei D. Manuel lhe concedeu muitos
privilégios e o papa Clemente lhe concedeu bula de indulgência no ano
de 1596. Conservou-se como irmandade, sem estatutos alguns aprovados
pela majestade até o ano de 1654, tempo em que o conde D. Fernando com
os da mesa fizeram o compromisso que aprovaram pela majestade.
Pelos anos dê 1689 ou 90 se começou a fundar a nova igreja, por estar a
antiga incapaz em a capela de S. Francisco, a qual tinha sido
freguesia, como dissemos (até 1 de Maio de 1566).
«Tem a Misericórdia tres altares: um com a imagem da Senhora da
Conceição, da parte da epístola; outro, da parte do evangelho, da
Senhora dos Prazeres, antigamente intitulado Senhora do Campo. Tem
sua irmandade, que ainda conserva, com seus estatutos. E imagem de
muitos milagres e por este motivo se faziam a ela infinitas romarias de
todo o concelho, devoção que o tempo tem aniquilado, e, tendo a Senhora bastantes rendimentos, hoje só tem vinte mil reis. Tem breves pontefícios para altar privilegiado.
«A mesma Misericórdia, tendo muito boas rendas, hoje só conserva
quarenta mil reis, por muitos desvios que tem havido.
A esta Santa Casa caiu pelo terramoto da abóbada a maior parte e,
estando infinita gente à missa, deu tempo a se retirarem todos e caiu
sem ofensa nem da gente nem dos
altares, por cujo motivo se eregiu na mesma Santa Casa uma
nova irmandade das almas, tendo por padroeiro o Senhor do Bonfim,
imagem do Senhor Crucificado e novamente colocado no altar maior da
mesma Santa Casa.
Do tempo da criação da mesma Misericórdia se conserva nesta vila uma
casa de albergaria com os mesmos privilégios de padroado real, a qual
tem a serventia de acomodar os pobres viandantes dos quais, se acontece
adoecer algum,
/
176 /
se trata à custa da Misericórdia, porque esta albergaria só
conserva de renda tres galinhas.»
Vê-se que o vigário Quintela só viu o velho caderno do compromisso da
Misericórdia e não atendeu ou não lhe mostraram o livro onde está o
começo do preâmbulo. Faz confusão de épocas e considera o D. Fernando já
conde, quando ninguém pensava que viesse a sê-lo e ainda a mãe vivia.
No entanto dá-nos uma notícia da fundação da actual igreja da
Misericórdia em 1689 ou 1690. É pouco, mas já é uma curiosa indicação.
Não me dei ainda ao trabalho de examinar outros livros antigos,
investigando se lá se encontram quaisquer referências, lançamentos ou
indícios das obras da igreja.
Da referência do vigário Quintela infere-se que, regularizada a situação
em 1654, não mais se pensou em indagar a data da fundação da Santa Casa feirense.
O bom do vigário caiu na peta do D. Manuel a conceder privilégios à
Misericórdia da Feira criada em 1594, estando estendido no túmulo dos Jerónimos
havia 73 anos. É que, para se entenderem os documentos antigos, é
precisa uma
certa preparação, na qual se compreendem os estudos históricos e a memória das datas. Se
não nos guiarmos por uma
pauta cronológica, em que concatenemos os factos surgidos de várias
origens, dificilmente nos é possível apreciá-los e pô-los em ordem.
Nas tradições da Feira, dos seus condes, do seu castelo e de quanto lhes
respeita há uma grande baralhada de coisas repetidas, repisadas e
transcritas, anacrónicas e discordantes, nos mentideros históricos,
embaraçando sempre pela teimosia ignara, a dar-lhes crédito e foros de
certeza.
O maior inimigo da verdade é a ignorância com pretensões eruditas. Logo
após segue-se outro feroz opositor: é a credulidade mal empregada em
escritos pouco escrupulosos.
A minha terra enferma desse mau sestro. Têm-se escrito a respeito dela
algumas asneiras pouco críveis, mas muito repetidas e inveteradas.
Pois até um dos mais conhecidos historiadores lhe chamou
Chão da Feira
ou «Terra de Santa Maria», a páginas 452 do segundo volume da sua
História de Portugal popular e ilustrada, terceira edição, 1889.
Modernamente a última ofensa à minha terra são as estampilhas em que o
artista quis, mas não soube, desenhar o castelo da Feira.
Estes casos vêm a propósito porque estão a pedir misericórdia: Perdoai-lhes Senhor, que não sabem o que fazem.
Podia pôr isto em latim, mas em vulgar percebe-se melhor.
Feira, 13 de Junho de 1946.
VAZ FERREIRA |